31 Agosto 2011
Atento cronista das ocupações de praças e das assembleias massivas dos chamados "indignados" na Espanha, Amador Fernández-Savater (Madri, 1974) analisa agora o que ficou daqueles protestos e o que continua do movimento. Uma nova visão, diz, que já não procura mudar o mundo, mas defendê-lo contra aqueles que o arruínam.
A entrevista é de Veronica Gago e está publicada no jornal argentino Página/12, 29-08-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Qual é a novidade do 15-M para a cultura política dos últimos tempos?
O jornalista Guillem Martínez cunhou o termo Cultura da Transição (CT) para nomear a cultura – no sentido forte: maneiras de ver, de fazer e de pensar – que foi hegemônica na Espanha durante os últimos 30 anos, aquela que nasceu com a derrota dos movimentos radicais dos anos 1970 (movimento operário autônomo, contracultura, etc.). A Cultura da Transição é uma cultura essencialmente consensual, mas não no sentido de que chegue a acordos mediante o diálogo dos desacordos, mas de que impõe já de entrada os limites do possível: a democracia-mercado é o único marco admissível de convivência e organização do comum, e ponto final. A Cultura da Transição se dedica então há 30 anos a colocar esse ponto final (uma e outra vez): "isso não se discute", "não sei do que está falando", "o passado passou", "não há alternativa", "ou eu ou o caos", etc. É uma cultura profundamente desproblematizadora: não se pode fazer perguntas sobre as formas de organizar a vida em comum fora do possível autorizado. E, portanto, profundamente despolitizadora: porque a política existe precisamente para fazer perguntas sobre os modos de estar juntos.
Percebe-se agora uma crise dessa Cultura da Transição?
O poder da Cultura da Transição foi se esvaziando com o passar dos anos. Por um lado, foram desaparecendo ou diminuindo os medos que a Cultura da Transição administrava e instrumentalizava enquanto "poder de salvação": golpe militar, terrorismo do ETA, ruptura da Espanha, etc. Ao mesmo tempo, foram se perdendo os direitos coletivos associados ao Estado do bem-estar social (privatizações, cortes, precarização generalizada, etc.) incluídos também no consenso. A Cultura da Transição é percebida cada vez menos como proteção e cada vez mais como a própria fonte dos perigos contemporâneos. Por outro lado, as novas dinâmicas sociais e culturais desgastam a legitimidade da Cultura da Transição: a população jovem consome cada vez menos Cultura da Transição e cada vez mais cultura de mercado, a internet habilita a possibilidade de um desborde do monopólio da palavra que estava nas mãos dos intelectuais e especialistas da Cultura da Transição, etc. Na Cultura da Transição, o consenso sobre as questões políticas e econômicas é absoluto: o sistema de partidos e o mercado não são nem podem ser objeto de discussão. No entanto, se encena um conflito permanente no qual estamos convidados a tomar partido: PSOE ou PP, esquerda ou direita, capitalismo ilustrado ou capitalismo troglodita, "as duas Espanhas". Essa polarização organiza o nosso mapa do possível. Pode-se falar sobre nacionalismo, a língua ou o laicismo, mas não sobre a precariedade, os despejos e as hipotecas. Pode-se discutir sobre o fumo, os limites de velocidade e os touros, mas não questionar a representação política. A extrema direita ataca agressivamente o direito ao aborto, o matrimônio homossexual e a disciplina de Educação para a Cidadania. A esquerda progressista responde educadamente com gestos simbólicos sobre o crucifixo nas escolas, o multiculturalismo ou o feminismo. Mas em qualquer um dos casos, a Cultura da Transição se assegura sempre o monopólio dos temas: decidir em torno do que se pensa e em que termos.
O 15-M então já expressa outra maneira de entender o mundo?
O movimento 15-M muda de tema. Evita cuidadosamente os debates itentitários que nos prendem ao tabuleiro da política-espetáculo e aponta diretamente ao maior dos tabus exigindo "democracia real já". Ou seja, afirmando que é o povo quem deve mandar e não os políticos nem o dinheiro. "Democracia real já" é um enunciado que altera completamente o monopólio das palavras e os temas trabalhados cotidianamente pela Cultura da Transição. A desafeição com relação à cultura consensual, que tem uma trajetória muito longa e que se expressou de mil formas diferentes ao longo dos anos (desde o fenômeno da abstenção eleitoral até os movimentos sociais), se organizou no 15-M como um fato massivo e completamente central, já não marginal, na sociedade. Em primeiro lugar como rechaço desafiante, explícito e sonoro da política de (todos) os políticos. As palavras de ordem mais gritadas são "não nos representam" ou "chamam-na de democracia, mas não é". Mas depois também como experimentação prática e positiva do enunciado-consigna "democracia real já’ em assembleias, acampamentos e redes sociais de todos os tipos. O 15-M é a maior brecha que nunca vimos aparecer na Cultura da Transição.
Mas quais acontecimentos assinalaria como precursores desta ruptura?
Movimentos como a insubmissão ao serviço militar ou a recuperação da memória histórica, contra as nossas leis particulares de ponto final, minaram profundamente as figuras e os relatos da Cultura da Transição. Mas creio que o 15-M se encaixa mais diretamente no plano subjetivo com esses outros momentos recentes nos quais gritamos massivamente "não nos representam" e "chamam-na de democracia, mas não é". Refiro-me, por exemplo, ao "não à guerra", em 2003, à reação social aos atentados terroristas de 11-M, em 2004, ao movimento V de Habitação [de Vivienda, em espanhol ], em 2006, ou às mobilizações contra a lei anti-descargas, a partir de 2009. Os modos de politização que esses movimentos inauguram já não correspondem aos dos movimentos sociais: nem velhos nem novos.
Em que sentido?
Enquanto não são convocados, protagonizados nem liderados por militantes ou ativistas, como no caso da ocupação, da insubmissão ou da antiglobalização, mas por pessoas sem experiência política anterior; não extraem sua força de um programa ou de uma ideologia, mas por serem tocadas em primeira pessoa por algo que acontece; não se identificam com a esquerda ou a direita do tabuleiro político, mas fogem dessa alternativa propondo um nós não identitário, aberto e includente no qual cabe qualquer um; não buscam destruir este mundo para construir outro, mas procuram defender e recriar o único mundo que há contra os que o estragam, sem programa utópico ou alternativa global de sociedade, etc.
Está falando de movimentos sociais que não são movimentos sociais?
Sim, quase diríamos antes Objetos Voadores não Identificados. Dificilmente perceptíveis aos radares do pensamento crítico tradicional devido à sua falta de pureza no que dizem e no que fazem, à dificuldade para somá-los aos movimentos sociais alternativos e/ou anti-sistema. Alguns amigos os chamam de "espaços de anonimato" e os perseguimos há anos, completamente abduzidos. O 15-M ressoa com toda esta onda de politização atípica.
Isto contrasta com uma espécie de ansiedade, especialmente midiática, para saber quem são e o que querem aqueles que saíram às ruas no 15-M...
Há algo que o 15-M fez em primeiro lugar que foi indefinir a questão da identidade. PSOE ou PP? Esquerda ou direita? Libertários ou social-democratas? Apocalípticos ou integrados? Reformistas ou revolucionários? Moderados ou anti-sistema? Nem uma coisa nem outra, mas todo o contrário. As exigências de nitidez e linhas precisas que imperam nas visões dominantes do político estão desconcertadas ante o 15-M. A natureza do movimento suscita tantas discussões intrigadas quanto o sorriso da Monalisa. Não há resposta à pergunta (policial) pela identidade: quem são? O que querem? Estamos em greve de identidades: somos o que fazemos, queremos o que somos. O 15-M é uma força política, mas antipolítica: coloca perguntas radicais sobre as formas de organizar a vida em comum que não cabem e alteram o tabuleiro político. Neutralizar essa potência de interrogação passa por lhes atribuir uma identidade: "são isto", "querem isto". Os políticos e a mídia pressionam para que o 15-M se converta em um "interlocutor válido" com suas propostas, programas e alternativas. Sabem que uma identidade já não faz perguntas, mas que ocupa um lugar no tabuleiro (ou aspiram a isso). Converte-se em um fator previsível nos cálculos políticos e nas relações de forças. Torna-se governável.
Desde o 15-M, a impugnação do sistema representativo convive com uma busca minuciosa do consenso obtido em assembleias. Como vincular ambos os aspectos?
São vividos como opostos. O consenso da Cultura da Transição funciona, como dizíamos antes, prescrevendo já de entrada os limites do possível: a democracia equivale a um sistema de representação no marco de um sistema de partidos (reduzido fundamentalmente a dois: PP e PSOE). No movimento 15-M, o consenso é uma ideia-força muito importante. Mas os acordos são construídos fazendo dialogar os desacordos em assembleias públicas onde qualquer um pode falar em nome próprio e não existem as facções-partidos. As lutas de poder são substituídas pela escuta ativa, pela elaboração do pensamento coletivo, pela atenção no que está se construindo entre todos, pela confiança generosíssima na inteligência do outro desconhecido, pelo rechaço dos blocos majoritários e minoritários, pela busca paciente de verdades includentes, pelo questionamento e requestionamento constante das decisões tomadas, pelo privilégio do debate e pelo processo sobre a eficácia dos resultados, etc.
Foi chamativa também uma espécie de coordenação espontânea em todo o país: começaram a se contagiar os acampamentos em outras cidades e em pequenos povoados...
A ocupação de todas as praças da Espanha é o gesto mais radical desde a autoconvocatória diante das sedes do PP para o dia de reflexão do 13-M, de 2004. O paradoxo é que esse desafio massivo se apóia em recursos mais rápidos: a não violência, a ideia-força do respeito, a linguagem despolitizada e humanista, a abertura sem limites, a busca a todo custo do consenso, a interpelação positiva à polícia, etc. Esse é o paradoxo em tensão que dá toda a sua força ao movimento. Sem o conflito, só seríamos uma simpática forma de vida "alternativa" a mais. Sem o lado empático e includente, só seríamos outro pequeno grupo "radical" separado e incapaz de morder a realidade. O sim sem o não é ótimo. O não sem o sim é puro desespero.
Como continua esse debate uma vez levantado o acampamento em Puerta del Sol?
Durante um mês assistimos a assembleias de cinco ou seis horas realmente apaixonantes, extraordinárias e únicas como experiências de inteligência coletiva. Mas uma vez abandonado o acampamento de Sol que funcionava como centro soberano em Madri, a situação se modificou, passou de acampamento a movimento, e há um grande debate aberto em torno da organização, da tomada de decisões, da noção de consenso e do espaço das assembleias. Segue sendo viável pensar o consenso como unanimidade? Esta ideia de consenso não cria obstáculos para a agilidade das iniciativas e das ações? Como organizar democraticamente um movimento com vários centros? Há algo assim como um movimento? Onde estão suas fronteiras entre o dentro e o fora? Pode-se articular sem totalizar? Como o movimento 15-M é uma novidade, o desafio é agora pensar todas estas perguntas a partir de um novo cérebro e não aplicar as respostas herdadas dos movimentos sociais ou outros.
Desde o princípio, no entanto, a pergunta era como ultrapassar de Sol...
Os acampamentos de Sol sempre souberam muito bem que sua força estava fora de Sol. Melhor dito: a força estava no vínculo vivo com o que um amigo chama "a parte quieta do movimento", ou seja, a população tocada e afetada por Sol, embora não participasse diretamente do acampamento. Sol nunca procurou a separação e por isso suscitou tantos fluxos de solidariedade dentro/fora (já no terceiro dia foi preciso fazer um apelo para que os moradores de Madri deixassem de levar alimentos que já não se sabia onde armazenar). Nunca se colocou como um fora utópico nem como outro mundo possível, mas como um convite ao outro desconhecido a lutar juntos em um plano de igualdade. Na realidade, Sol não era o Outro, mas este mesmo mundo (com suas creches, suas placas solares, sua biblioteca e sua enfermaria), mas construído e governado diretamente por seus habitantes. Em um grupo de debate, uma moça com menos de 20 anos disse: "nos acusam de que somos muito abstratos, mas os abstratos são eles". É a diferença entre a utopia e a heterotopia. A utopia é outro mundo. A heterotopia é uma pequena distância em relação à realidade que nos permite habitá-la de outra maneira. Sol era essa pequena distância.
Que experiências da crise o movimento do 15-M recolhe?
Entre janeiro e março aconteceram na Espanha mais de 15.000 desalojamentos forçados de moradia. Trata-se de pessoas que não podem assumir o pagamento das hipotecas que contrataram no passado e são expulsas de suas casas (o que não as exime da obrigação de pagar o resto da hipoteca pendente). Parece-me que os despejos são a imagem mais precisa da crise, talvez inclusive também a imagem mais precisa do capitalismo atual. Desalojar, expulsar, despojar, precarizar, fragilizar, jogar à intempérie e à incerteza... Para os mercados financeiros que regem o nosso mundo, todos somos matéria descartável, prescindível, supérflua. Ninguém está a salvo do grande despejo capitalista. A alteração de tudo é a norma, e a estabilidade de algo é agora a exceção. O medo de ficar fora é o incentivo de fundo que nos empurra a abrir passagem a cotoveladas no dia a dia. Uma das linhas de ação do 15-M, uma vez que os acampamentos perderam centralidade, é o bloco dos despejos em marcha. É uma imagem que diz muito sobre o movimento. Diz, por exemplo, que o 15-M não aponta para outros mundos possíveis e utópicos, mas antes poder habitar o único que existe. E isso passa por nossa capacidade de reinventar o vínculo social, porque não é o Estado quem pode deter a lógica do mercado, mas o outro desconhecido que se posta diante da minha casa e bloqueia o automatismo fatal do despejo. Hoje por mim, amanhã por ti.
A questão da moradia e dos desalojamentos é um tema central para pensar a continuidade do movimento, então...
Nenhum despejo havia sido notícia até agora. Um despejo não pode ser "assunto" para nenhum intelectual da Cultura da Transição. Quase por definição. Mas agora se fala deles. Os despejos aparecem na imprensa e na televisão. Por quê? Simplesmente porque algumas pessoas decidiram interromper esse mecanismo que se apresentava como uma espécie de fatalidade "natural", mostrando que se trata de um problema completamente político. O bloqueio de um despejo é um gesto que fura a cultura consensual: faz ver o que se queria ocultar, problematiza e politiza o que se queria "naturalizar", esquiva todas as armadilhas identitárias e nos interpela a todos.
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Depois da Puerta del Sol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU