21 Janeiro 2021
"Neoliberalismo, fascismo cultural e pandemia sem controle, em síntese trágica, devastam o país", escreve Leda Maria Paulani, professora titular da FEA-USP, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 20-01-2021.
A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, para ocupar o cargo mais alto da República nos quatro anos seguintes ainda será tema de debate, discussão e pesquisa por muito tempo. Teses e mais teses haverão de surgir, quiçá por décadas, na busca de encontrar a explicação mais consistente para a tragédia nacional. É inegável a complexidade do fenômeno.
São inúmeros e de variada ordem os elementos que devem ser considerados para compreendê-la: do golpe jurídico-midiático-parlamentar de 2016 à propagação indiscriminada de fake news; do desconforto dos estratos superiores com a circulação de pretos e pobres em espaços antes a eles interditados à armação jurídico-institucional impedindo Lula de concorrer às eleições; do generalizado sentimento antissistema que se difundiu a partir de 2013 à ininterrupta ascensão das igrejas neopentecostais, com seus valores fortemente conservadores; do ódio ao PT, cuidadosamente cultivado, a partir da operação Lava Jato, pela grande imprensa e redes sociais, à indiferença das massas frente ao impeachment, à prisão de Lula e mesmo à sistemática retirada dos direitos dos trabalhadores desde o golpe.
Contudo, o conjunto enorme de fatores talvez não tivesse sido suficiente para produzir o nefasto resultado se as forças que há muito tempo estão no comando do andamento material do país não tivessem visto, naquele indicado para chefiar a economia, a expressão maior de seus sonhos de ultraliberalismo. Já que o candidato preferido, tucano, fora barrado pelas urnas, a elite econômica (entenda-se o grande capital, os mercados financeiros e a riqueza financeira que operam) fechou com o capitão “antissistema”.
Agiu assim, mesmo sabendo que se tratava de fraude encarnada a bandeira da anticorrupção nas mãos de família farta e documentadamente corrupta há 30 anos, e que se corria o risco, dado o claro apoio militar à candidatura e o grosseiro perfil autoritário do personagem, de rifar de vez a já frágil democracia brasileira. A presença de Paulo Guedes na equipe de Bolsonaro, ainda por cima anunciado como superministro, tornou perfeitamente palatável um candidato, sob qualquer outro aspecto, até para uma elite estreita como a nossa, abaixo de qualquer crítica.
É verdade que o ataque neoliberal à possibilidade de construir por aqui alguma coisa minimamente parecida com uma Nação – o que se vislumbrou com a promulgação da Constituição de 1988 – não começou com o atual desgoverno. Desde os primeiros dias de sua existência, a efetividade da nova Carta Magna foi colocada em dúvida: não cabia no Estado, tornaria o país ingovernável etc. Turbinado pelo permanente terrorismo econômico que se forjou na esteira do trauma inflacionário, o discurso econômico convencional, de matriz ortodoxa e liberal, dominou todos os espaços, dos negócios à política, da mídia à academia.
Os resultados concretos desse levante não tardaram a aparecer. Estabilizada monetariamente desde o Plano Real, a economia brasileira foi se ajustando pari passu ao traje novo requerido pelo ambiente financeirizado global, elevando as garantias dos credores e rentistas, isentando-os de tributos, dando-lhes toda a liberdade possível de movimentação, abrindo-lhes novos mercados, adequando a política macroeconômica aos seus interesses, assegurando-lhes, quase sempre, os maiores ganhos do mundo, inclusive em moeda forte, etc.
Com exceção de uma ou outra medida, o movimento de adequação não cessou nem mesmo com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo federal. Uma boa medida das consequências desse rearranjo institucional da economia brasileira é a taxa macroeconômica de financeirização, entendida como a relação entre a oferta total de ativos financeiros não monetários e a oferta total de capital fixo.[1] Essa taxa passa de 0,16 em 1994 para 0,24 em 2002 e 0,55 em 2014, estando hoje (dado de 2019) em 0,65.
Como subproduto do processo, tivemos a reprimarização da pauta de exportações, a desindustrialização do país (a participação da indústria de transformação no PIB, que tinha ultrapassado os 35% em meados dos anos 1980, caiu a 11% em 2018) e seu total desacoplamento do processo de evolução tecnológica em pleno crescimento das exigências impostas pelo progressivo desequilíbrio ambiental e em plena maré montante da indústria 4.0.
O ultraliberalismo porém vai bem além disso. Trata-se, sem meias palavras, de um projeto de destruição. O mundo dos sonhos dos ultraliberais (e do nosso pesadelo) é um mundo onde o mercado domina todo o espaço social e o Estado não passa de avalista das regras do jogo econômico e financeiro. A essência do projeto neoliberal de Hayek não é outra: devolver ao mercado aquilo que por direito lhe pertence e está sendo indevidamente surrupiado.
No imediato pós-guerra, quando as ideias neoliberais são alinhavadas, a necessidade desse resgate decorria das medidas implantadas ao longo dos anos 1930 para enfrentar a crise econômica e a própria situação bélica (New Deal como paradigma). Três décadas depois, do ponto de vista dessa ideologia, realizar a tarefa vai se mostrar ainda mais imperativo, em razão da hegemonia das práticas keynesianas de gestão econômica, da construção do Estado do bem-estar social (Welfare State) nos países avançados e do fortalecimento do Estado empresarial no nacional-desenvolvimentismo do Terceiro Mundo.
A necessidade de demolir tudo isso para restabelecer o protagonismo do mercado era evidente. O forte descenso cíclico que resultou dos “anos de ouro” (do pós-guerra a meados dos anos 1970), a sobreacumulação de capital que despontava e o crescimento da riqueza financeira, começando a acelerar nos anos 1970, iriam fornecer o substrato material-estrutural para que a pregação, entoada solitariamente pelos membros da seita ultraliberal por quase 30 anos, ganhasse o proscênio e passasse, desde o início da década de 1980, a conquistar corações e mentes e governos em todo o planeta.
O que se convencionou chamar de neoliberalismo é tal projeto de destruição do Estado social. Por isso, quando se criticam as medidas de política econômica associadas ao neoliberalismo por seus pífios resultados, recorrentes são as queixas de que as receitas não foram aplicadas corretamente, ou na sua totalidade, ou na intensidade necessária. Louve-se pelo menos a coerência do queixume: enquanto a destruição não se completar e o mercado não tiver subsumido a sociedade, a tarefa não estará terminada.
Para além das querelas político-partidárias, o golpe de 2016 tinha objetivo claro: completar o trabalho que começara no Brasil no início dos anos 1990 e teria ficado a meio caminho. A Ponte para o Futuro, do conspirador e traidor Michel Temer, é um programa neoliberal puro-sangue (nos dois sentidos, nota meu marido, com e sem hífen), ou seja, sem os atenuantes sociais dos governos do PT. A inquietação que cozinhava em fogo brando desde as manifestações de 2013 escancarou o espaço político, no início de 2016, para pôr ponto final a esta sorte de “neoliberalismo progressista de Estado” (com perdão da heterodoxia),[2] que estava no poder desde 2003. [3]
A marcha acelerada da destruição constava ponto por ponto do programa de Temer: o teto de gastos, o fim das vinculações constitucionais de educação e saúde, a livre negociação trabalhista, a terceirização total, o endurecimento de regras e capitalização da previdência, a privatização sem peias, a liberdade comercial plena (fazendo tábula rasa de Mercosul, BRICS, etc.).
Em jantar com lideranças conservadoras em Washington (EUA) em março de 2019, Bolsonaro assumiu: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.” O enunciado da frase poderia levar a pensar que Paulo Guedes, com seu ultraliberalismo descabelado, servira como luva ao capitão, já que os dois falavam a mesma língua. A interpretação porém não se sustenta.
De origem militar, Bolsonaro, ao contrário, fora sempre um defensor do nacionalismo estatista da época dos generais. Deputado federal nos anos 1990, votou, por exemplo, contra a privatização das telecomunicações e da gigante Vale do Rio Doce. A “desconstrução” que o motiva provém de outra esfera da vida social, é moral e ideológica. Anticomunista doente, racista, machista, homofóbico, misógino e tirano, ou seja, um digno representante do “fascismo cultural”, viu como consumação de seus piores pesadelos as últimas décadas no país, com a liberação de costumes, a desvalorização da heteronormatividade e o avanço de direitos e oportunidades de não brancos. Era essa sociedade que ele tinha que destruir, já que tudo isso seria produto do domínio do marxismo cultural. Na mesma reunião, afirmou que sempre sonhara “em libertar o Brasil da ideologia nefasta da esquerda”, que nosso país “caminhava para o comunismo” e que ele ficaria feliz de “ser um ponto de inflexão” no processo.
Bolsonaro alardeava alto e bom som que não entendia nada de economia. Como não tinha projeto na área, entrou no bonde que estava passando, o da demolição (paradoxo à parte) de A Ponte para o Futuro, que corria em marcha acelerada desde o golpe. Paulo Guedes foi quem se apresentou para conduzir o bonde e os assessores de Bolsonaro certamente sopraram-lhe ao ouvido que o nome contava com o apoio da elite financista do país, ou seja, “o mercado”. Estavam certos: nossa elite rentista, globalista e vulgarmente refinada, embora torcendo um pouco o nariz aos modos grosseiros do capitão, ficou maravilhada com a possibilidade Guedes. Foi assim que a candidatura Bolsonaro ganhou um “programa econômico” e os dois projetos de destruição se encontraram.
É deste ângulo, portanto, que seria legítimo fazer um balanço da primeira metade de seu mandato e é justamente o tipo de análise que vem fazendo a mídia corporativa. É evidente que não perguntam se a destruição está sendo bem ou mal sucedida, mas os órgãos dos grandes conglomerados estão no momento engasgados de matérias recriminando Guedes por não ter entregue o que prometeu: a reforma administrativa está empacada, as privatizações não saem do papel, os trâmites para a efetivação da carteira verde e amarela não andam e a capitalização da previdência também não saiu, apesar de aprovada a reforma.
Não faz sentido avaliar o “programa econômico” de Bolsonaro em matéria de crescimento, de emprego, de redução da miséria, porque não são esses seus objetivos. Neste particular, só para registrar, o resultado do PIB havia sido desprezível em 2019 (crescimento de 1,1%) e já estava negativo (-0,3%) no primeiro trimestre de 2020, ainda antes de a pandemia poder ser apontada como variável determinante do fracasso. Outro dado no mesmo sentido é que o número de pessoas desocupadas, estimado pela PNAD Contínua do IBGE, já era de 12,3 milhões em fevereiro de 2020, antes de qualquer efeito da crise sanitária sobre a variável (hoje, o número é de 14,1 milhões – dado de outubro/2020).
É o caso de perguntar que efeitos teve o advento do novo coronavírus sobre o funesto encontro dos dois projetos de destruição que as eleições de 2018 ensejaram. O primeiro ponto a destacar é que a pandemia, a terceira destruição, se sobrepôs a uma economia já combalida por seis anos de recessão e baixo crescimento (o valor real do PIB no acumulado em 12 meses do primeiro trimestre de 2020 era ainda 3,7% menor do que o do segundo trimestre de 2014, ponto a partir do qual começou efetivamente a queda do produto).
As medidas imprescindíveis para minorar os efeitos da difusão do vírus afetam necessariamente o ritmo do desempenho econômico (em especial no setor de serviços, hoje responsável por cerca de 60% do produto), pois inviabilizam uma série de atividades, reduzem drasticamente o consumo e desestimulam completamente o investimento.
Num governo responsável, sem ultraliberalismo e, portanto, sem terrorismo fiscal com seu teto de gastos criminoso, era evidente que o único meio de fazer frente à catástrofe sanitária seria aumentando os gastos do governo, principalmente por meio de transferências diretas de renda monetária àqueles diretamente afetados (como feito, aliás, em praticamente todo o mundo). No Brasil isso parecia impossível, porque Guedes ainda não entregara o prometido zeramento do déficit primário e a vigência do teto de gastos implicava redução dos gastos públicos, não sua elevação. Ademais, as medidas exigidas pelas autoridades e órgãos internacionais de saúde batiam no muro do negacionismo presidencial, postura não surpreendente para um terraplanista que busca destruir um mundo onde a ciência tem valor central.
A despeito de todos os entraves, o ano de 2020 acabou sendo, do ponto de vista econômico, muito menos drástico do que se imaginava. Respondendo à enorme pressão social, o Congresso votou, ao final de março, o estado de calamidade e a PEC do orçamento de guerra, fazendo milagrosamente aparecer o dinheiro que não existia (quem naturaliza teoricamente a forma social dinheiro é que tem que explicar esse milagre). Assim, a pressão da sociedade civil ressoando no Poder Legislativo levou o governo de Bolsonaro, antes absolutamente arisco a qualquer medida dessa ordem, a implantar um dos mais robustos programas de auxílio emergencial do planeta.
Para se ter uma ideia, desde quando foi criado, em 2004, o Programa Bolsa Família (BF) desembolsou, em valores de hoje, cerca de R$ 450 bilhões, enquanto o Auxílio Emergencial (AE) vai somar R$ 300 bilhões. [4] Assim, por conta do AE, em apenas nove meses de um único ano se gastou com programas de renda compensatória dois terços de tudo que foi gasto em mais de 15 anos de Bolsa Família. Estudo do IPEA divulgado em agosto[5] mostra, ainda, que, para os domicílios de mais baixa renda, o AE elevou em 24% os rendimentos que eles teriam com as fontes habituais.
Os efeitos de tal massa monetária sobre uma população com múltiplas carências e enorme demanda reprimida não demoraram a se fazer sentir. Para algumas regiões do país em particular, foi possível com essa renda, como demonstram algumas pesquisas qualitativas, pensar até em “comprar um barraco”. Graças ao Auxílio Emergencial, a queda prevista para o PIB em 2020 não foi tão aguda quanto inicialmente se previa. Tendo chegado próximas a 8% negativos, e, para alguns, a 10%, as expectativas rondam hoje em torno de uma queda menor do que 5%.
Ainda será necessária muita pesquisa para afirmar que foi esse o fator determinante do aumento de popularidade de Bolsonaro nas pesquisas de opinião em meados do ano. É difícil, contudo, não levá-lo em consideração. A partir daí, o presidente passou a buscar, do jeito que fosse possível, uma forma de continuar a se beneficiar da popularidade conquistada via auxílio. Mas até agora, início de 2021, o imbroglio não foi resolvido (as alternativas até o momento sugeridas, não por acaso, saqueiam direitos e garantias que ainda restam: mexer nos recursos do FUNDEB, congelar o valor do salário mínimo, não reajustar aposentadorias etc.).
Tudo indica, portanto, que o advento da terceira destruição provocou uma desordem no bom andamento da combinação das duas outras destruições. Contudo, o desejo de Bolsonaro de ampliar os gastos do governo para dar continuidade ao robusto programa de transferência de renda monetária aos de baixo, mesmo isso implicando revogar, por exemplo, o teto de gastos, é só um dos aspectos da questão. Na realidade, o surgimento da pandemia porta potencial para provocar vários estragos nessa parceria até então mais ou menos “feliz”.
O combate ao vírus só é efetivo, como se sabe, se for coletivo, o que acaba por colocar em cena modos de agir, princípios e necessidades que se opõem aos valores entranhados tanto no conservadorismo cultural de traço fascista professado pelo presidente quanto no ultraliberalismo de seu ministro da Economia. Não se ganha tamanha batalha sem solidariedade, consciência coletiva, ciência presente e atuante, sistema público de saúde, Estado grande e forte.
Auxílio à parte, por obra maior da sociedade civil, cujos reclamos foram ouvidos pelo Congresso, o governo de Bolsonaro, exceção feita ao eleitoreiro interesse na prorrogação da medida emergencial, mobilizou o diabo para transformar a pandemia numa máquina de destruição muito mais letal do que normalmente já seria, pois tudo mais que deveria funcionar para minorar os terríveis impactos humanos não funcionou. O deboche renitente e criminoso do presidente, suas persistentes chacotas com relação às vacinas—elaboradas em tempo recorde, diga-se—, as campanhas oficiais em favor de tratamento precoce sem eficácia, a displicência e incompetência do ministro da Saúde na viabilização e logística da vacinação (o general não era especialista em logística?), o permanente descaso com as vítimas fatais, a mortandade obscena no Amazonas, por asfixia e sufocação, nestes primeiros idos de 2021, tudo isso fala por si, dispensando comentário.
Cabe, porém, dizer ainda alguma coisa sobre o encontro das três destruições, suas presumidas contradições e suas afinidades eletivas. A análise pode nos mostrar com mais clareza o que está por trás dos resultados funestos que observamos no Brasil. Vejamos inicialmente a relação entre as duas primeiras destruições.
A violência fundadora do sistema capitalista, consistindo na expropriação de trabalho não pago, precisa ser posta como lei para conseguir operar. O Estado como portador das garantias jurídicas é, portanto, fundamental. Ele põe na aparência a igualdade dos contratantes, para que a desigualdade essencial funcione. O mundo ideal do ultraliberalismo colocaria aí o ponto final da atuação do Estado. A impossibilidade de que esse ideal se concretize radica no fato de que o Estado, ao atuar dessa forma, encarna a comunidade ilusória pressuposta aos agentes que trocam. Assim, para que desempenhe bem o seu papel, o Estado precisa ser capaz de conferir a essa coletividade imaginária o seu momento de verdade, ou a ilusão se desnudará.
Essa “verdade”, fundamental à ilusão de comunidade, implica que o Estado possa, por um lado, corrigir minimamente as diferenças sociais, e, por outro, atuar como força de equilíbrio do sistema.[6] Os ultraliberais podem até concordar com a primeira dessas tarefas (a ideia de uma renda mínima aos mais pobres, só para lembrar, é de Milton Friedman, o famoso economista americano e um dos porta-vozes mais conhecidos do pensamento liberal radical), mas desde que sirva pra eximi-lo de quaisquer outras ações e instituições, deixando à provisão do mercado todos os elementos fundamentais à vida humana: saúde, educação, habitação, cultura, lazer, transporte, alimentação etc. Acresça-se ainda que, em tempos de sobreacumulação de capital como os que vivemos, “enxugar” o Estado (como candidamente se afirma) é absolutamente funcional, pois ajuda a encontrar novos ativos a partir dos quais o capital possa se valorizar.
Mas, para cumprir a segunda tarefa, ou seja, atuar como força de equilíbrio do sistema, o Estado não pode se restringir a transferir tostões às massas miseráveis perpetuamente produzidas. Ele tem que dispor de uma caixa de instrumentos muito mais apetrechada. Precisa de sistemas públicos de saúde e seguridade social, educação e cultura, pesquisa e tecnologia, ou seja, precisa de muitos respiros de não mercadoria (ou de “antivalor”, nas palavras do mestre Chico de Oliveira).
Precisa também fazer investimentos públicos, controlar a demanda efetiva e planejar a participação do país na divisão internacional do trabalho. Esse mundo de direitos e garantias, incluindo a segurança de que não haverá ondas devastadoras de desemprego, implica um sistema tributário robusto e saudável (leia-se, progressivo) e um enorme poder de intervenção do Estado, o que é absolutamente incompatível com o ideal de mundo do ultraliberalismo. É a partir daqui que vamos poder perceber que os dois primeiros projetos de destruição podem ser distintos em seu escopo, mas não estranhos um ao outro.
Ao longo das quatro últimas décadas, difundiu-se em todo o planeta, quase que em ritmo de fake news, uma ideologia devastadora: a de que a liberdade plena dos mercados e seu crescente domínio das atividades humanas constituiriam uma sorte de condição sine qua non do sistema democrático. E o colapso do mundo soviético no final da década de 1980, passando por triunfo do mundo capitalista, tornou ainda mais verossímil o engodo, favorecendo o ambiente ideológico para sua difusão. Assim, dado o fundo autoritário do pensamento conservador, poderíamos ser levados a pensar que existiria certa incompatibilidade de berço entre o ultraliberalismo de Guedes e o despotismo (longe de esclarecido) de Bolsonaro. Mas as afinidades entre os dois conjuntos de crenças são maiores do que as incongruências propagandeadas pelo citado embuste global e neoliberal.
Se olharmos para trás, poderemos lembrar a exaltação que faz Ludwig von Mises, no final dos anos 1920, às virtudes de Mussolini, pelo resgate que providenciara o fascista italiano do princípio da propriedade privada;[7] ou a defesa levada a cabo por Hayek de um regime autoritário que suprimisse o sufrágio popular, se necessário para preservar a “liberdade”, ou, ainda, sua aprovação do governo sanguinário de Pinochet, a primeira experiência de destruição neoliberal da América Latina.
Olhando para frente, veremos que a referida conformidade não vai se restringir a elementos episódicos e vai ganhar um caráter sistemático.
Não são poucos os autores que vêm chamando a atenção para o sucesso da estratégia de longo prazo do neoliberalismo no plano ideológico. Lembro aqui de Wendy Brown, de Pierre Dardot e Christian Laval, e de Nancy Fraser,[8] entre tantos outros. O denominador comum é que a vitória dos princípios liberais e a criação do sujeito liberal, acima e aquém das classes, foram expulsando de cena os valores da cooperação, do comum, do coletivo, do solidário, do público.
Os valores antípodas sempre estiveram no comando da sociedade capitalista, é verdade, mas depois de quatro décadas de avalanche da razão liberal, a hegemonia sem concorrência beira o totalitarismo. O Estado talvez nem precise mais encarnar uma comunidade ilusória. Prevalece o entendimento liberal-individualista de progresso, que, década a década, veio descendo às camadas mais baixas, carreado pelo trabalho infatigável da grande mídia e sustentado pela precarização e informalidade crescentes, e, ultimamente, também pela chamada uberização da força de trabalho.
Não custa lembrar que também ajudou aqui a difusão do evangelho divino do neopentecostalismo, valorizando a manifestação da graça via prosperidade individual, perfeitamente congruente, pois, com o fundamentalismo secular e midiático do ultraliberalismo. Tudo somado, temos que o pleno domínio do mercado transformou-se, em vez de avalista, qual pregava o Evangelho Segundo São Hayek, no coveiro da democracia.
Quais as consequências disso para um território periférico como o nosso?
No Brasil, o assalto continuado da razão liberal levou de embrulho o apreço pela construção da Nação, da “comunidade imaginada” que sonhávamos (no dizer de Benedict Anderson) e, pior ainda, também as condições objetivas de fazê-lo. As três décadas consecutivas de persistentes aplicações das prescrições neoliberais, radicalizadas pelo golpe de 2016 e perpetuadas por Temer e Bolsonaro, resultaram não só no desmonte do Estado brasileiro, hoje em situação quase terminal, mas também na enorme redução da possibilidade de, mesmo sem dispormos de uma moeda forte, sermos menos dependentes, termos mais autonomia, participarmos do progresso tecnológico.
Para isso é preciso, de um lado, investimento público continuado em educação, ciência básica e pesquisa e, de outro, indústria, dois elementos em adiantado processo de decomposição. O conservadorismo e o autoritarismo do presidente e da trupe que comanda o país, com destaque para os militares, não fizeram mais do que intensificar e tornar mais letal a vocação ultraliberal de destruir o Estado. Não é por acaso que o nacionalismo bolsonarista, tacanho e caricato, porta a infame divisa: o Brasil acima de tudo! (E abaixo dos Estados Unidos trumpistas! Melhor dizendo, debaixo…).
Mas vamos encontrar aqui, no elemento Nação, um segundo fator a considerar nesta análise dos entrecruzamentos das três destruições, envolvendo agora a terceira delas, a pandemia. Como dito, o potencial para provocar estragos na parceria das duas primeiras destruições tomou forma objetiva no auxílio emergencial, que o governo de Bolsonaro foi obrigado a implantar (gerando um quiproquó até agora sem solução). Ressalvada a exceção, a gestão da pandemia pelo atual desgoverno exponencia o caráter naturalmente destrutivo de uma crise sanitária desse porte, mal se distinguindo de fato de gestão da morte. O negacionismo do capitão, além do desprezo pelos fracos, característico das posições fascistas, explica a catástrofe, mas não a passividade da sociedade, indicando que sua atitude genocida prosperou em terreno fértil.
De um lado, a experiência da morte violenta é contingência desde sempre presente no cotidiano dos segmentos populares no Brasil, repleto de brutalidade policial e violência criminal, por parte de traficantes e/ou milicianos. Quando Bolsonaro reage à pandemia com o discurso do “e daí?”, do “todo mundo morre um dia”, está ressoando a dura experiência presente no dia a dia de parte significativa da população, em regra pobre e negra.[9] De outro, tamanha aberração sofre permanente processo de normalização, o qual, além de atualmente estimulado pelo sucesso da pregação neoliberal, tem raízes profundas nas peculiaridades de nosso processo de formação. [10]
Os fundamentos constitutivos do país como nação, como se sabe, nunca foram muito firmes por aqui, a começar da longa escravidão que nos marca até hoje histórica e politicamente. A normalização das mortes é consequência da normalização da desigualdade social abissal e da normalização do racismo estrutural — tudo isso se combinando em favor da política genocida de Bolsonaro, ele mesmo racista etc. etc.
Em palestra de 1967, Adorno ponderou que a democracia, enquanto continuasse a trair suas promessas, permaneceria gerando ressentimentos e despertando anseios por soluções extrassistêmicas. O autoritarismo fascista não seria, pois, mal exógeno e sim mal latente da própria modernidade burguesa. Para o filósofo, o principal responsável por tal atributo era o irrefreável processo de concentração de capital, aumentando permanentemente a desigualdade, degradando camadas sociais antes mais ou menos bem postadas na hierarquia social capitalista.[11] Pensando na Alemanha do pós-guerra, sentenciou em palestra de 1959: “Considero a sobrevivência do nacional-socialismo dentro da democracia (o grifo é meu) potencialmente mais ameaçadora do que a sobrevivência das tendências fascistas contra a democracia”.[12]
Adorno não podia prever o levante neoliberal iniciado nos anos 1980, tampouco quão gritantemente verdadeiras se tornariam suas palavras. Ao potencial demolidor dos anseios democráticos inerente à acumulação de capital enfatizado pelo pensador alemão, o levante das elites, com o totalitarismo da razão e dos princípios liberais que daí resultou, agregou elemento ainda mais pernicioso, pois normalizou a iniquidade social, destronando os valores que sustentam a luta pela democracia. Resultado do processo de destruição de longo prazo do ultraliberalismo, não é de causar espanto que, num país como o Brasil, com a Nação inacabada e à deriva depois do golpe de 2016, ele se combinasse com o desgoverno conservador de um presidente de vocação fascista, e com a normalização da morte de pobres e pretos, há muito tempo construída, para produzir o cenário devastador que ora nos rodeia.
[1] Me beneficio aqui de artigo escrito com Miguel A. P. Bruno, ainda inédito, “Developmentalist policies in financialized economies: contradicitions and impasses of the Brazilian case”. A metodologia de cálculo da taxa é de Miguel Bruno e Ricardo Caffé e os dados são de fontes oficiais: IBGE, IPEA.
[2] Me aproprio aqui, livremente, de termo difundido por Nancy Fraser e que alude à captura pelo capitalismo financeiro e cognitivo (conglomerados de tecnologia de informação e comunicação) das lutas progressistas de movimentos sociais como o feminismo, o antirracismo e os direitos LGBTQ.
[3] Em reunião no Council of the Americas em Nova York no final de setembro de 2016, um Temer já presidente admitiu, com todas as letras, que Dilma sofreu impeachment por não ter concordado com a aplicação do citado programa. Disponível aqui.
[4] O valor total com o AE, incluindo-se a prorrogação de R$ 300,00 pagos de setembro a dezembro, vai chegar a R$ 322 bilhões, sendo que, desses, R$ 300 bilhões foram pagos em 2020, ficando restos a pagar de R$ 22 bilhões para 2021. Um outro montante de valor semelhante ao do AE foi gasto pelo governo com outros programas de auxílio, como a ajuda a estados e municípios e o benefício para a manutenção do emprego.
[5] Disponível aqui (acessado em 16 janeiro 2021).
[6] Nestas reflexões sobre o papel do Estado, baseio-me, até aqui, nas ponderações feitas por Ruy Fausto no ensaio quarto de seu Marx: Lógica & Política – volume II (São Paulo, Brasiliense, 1987).
[7]A informação está no artigo sobre Hayek do livro de Perry Anderson, Afinidades Eletivas (São Paulo, Boitempo, 2002).
[8] Veja-se, por exemplo, A Nova Razão do Mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval (São Paulo, Boitempo, 2016), Nas Ruínas do Neoliberalismo, de Wendy Brown (São Paulo, Editora Filosófica Politeia, 2019) e O velho está morrendo e o novo não pode nascer, de Nancy Fraser (São Paulo, Autonomia Literária, 2019).
[9] Até aqui, neste parágrafo, reproduzi considerações de artigo coletivamente construído, com André Singer, Christian Dunker, Cícero Araújo, Felipe Loureiro, Laura Carvalho, Ruy Braga, Silvio Almeida e Vladimir Safatle, e publicado na Ilustríssima (on line) da Folha de S. Paulo em 28/10/2020. Disponível aqui.
[10] Como sempre lembra Airton Paschoa, com carradas de razão, penso eu, a pandemia veio se juntar a nosso famigerado fatalismo…
[11] A transcrição na íntegra da palestra de Adorno de 1967 foi publicada em português do Brasil pela Editora Unesp sob o título Aspectos do Novo Radicalismo de Direita.
[12] A palestra de Adorno de 1959 é mencionada em artigo de Peter E. Gordon publicada no site A Terra é Redonda, disponível aqui.
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Dois anos de desgoverno – três vezes destruição. Artigo de Leda Maria Paulani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU