02 Dezembro 2019
“O jogo político não é mais o mesmo do neoliberalismo clássico thatcherista, por exemplo. Este falava através dos partidos tradicionais e apresentava abertamente os seus projetos, mas atualmente o 'ultraliberalismo' dispensa qualquer mediação democrática que é substituída, portanto – de forma plena – pela 'instituição' fantasmática 'mercado'. O mercado 'subsume' a política e edifica novos valores de convívio, alheios às necessidades cotidianas de uma comunidade regrada democraticamente: no mercado não tem democracia, pois só tem 'voto' quem tem poder aquisitivo”, escreve Tarso Genro, ex–governador do Rio Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Su21, 30–11–2019.
Segundo ele, “quando o Presidente se recusa a falar sobre economia –– 'porque isso é com o Guedes'– e diz que nada 'entende' dela, na verdade ele diz muito mais do que isso. Diz que as decisões da economia não passam pela política, logo, não passam por eleições, partidos, programas e pluralidade de 'vistas' sobre o tema: a política só existe isolada na dimensão simbólica do fascismo – no gestual e na fala presidencial – e a economia, que orienta a sobrevivência cotidiana das pessoas, se expressa nas reformas ajustadas pela técnica ultraliberal. Estas, ao mesmo tempo que sufocam a política, diluem a sociedade de classes tradicional”.
Jean Delumeau – Professor do College de France – disse numa magnífica conferência que o século XX foi o mais criminoso da História, nele o “medo atingiu seu ápice”, pois, “ao extermínio dos judeus e dos ciganos que Hitler tentou levar a cabo, somam–se – antes e depois – o massacre dos armênios e os genocídios no Camboja e em Ruanda”. (“Ensaios sobre o medo”, Adauto Novaes, org. Ed. Senac,2004). Intuo que o século XXI vai vencer o século XX em barbárie, fome, desamor, fragmentação e precariedade nas relações humanas.
É evidente que as grandes narrativas históricas não perderam nem perderão o seu vigor, mas, se é verdade que “uma dezena de anos atrás os governos dos Estados soberanos não (sabiam) de antemão como os mercados (iriam) reagir” (John Gray), nesta etapa de integração mundial – pelo comando das agências do capital financeiro global – os mercados podem ser orientados para reagir segundo as necessidades de sobre–acumulação. Existem mercados livres de toda a influência da política democrática, mas não existem mercados financeiros livres do domínio e da técnica das agência globais deste capital.
Menciono estas novas características das finanças e das políticas totalitárias ou democráticas contemporâneas, porque toda a política e toda a economia se internacionalizou. E se de uma parte as grandes narrativas históricas não perderam sua validade, de outra, elas devem ser consideradas como capazes de fazer entender somente períodos mais curtos. Trata-se da soma e da superposição de cotidianos na sublimação do presente pressionadas pela contração do futuro. Assim como as táticas e as estratégias de sobrevivência se fundem na vida imediata, táticas e estratégia políticas tendem a se unificar, em cada momento de disputa, sobre os rumos da vida comum.
Os partidos libertários, democráticos e socialistas, não falam sobre isso e parece que não procuram cogitar sobre isso, para pelo menos avaliar se realmente há uma mudança gigante no modo de ver a política e de sentir as pessoas que navegam nos “black fridays” da vida. Parece que eles permanecem esperando as “grandes liquidações” dos grandes dias da História, como momento concentrado onde serão feitas as mudanças e revoluções, que aliás já chegaram pelo lado inverso.
Nem no neoliberalismo clássico houve tanta abdicação dos instrumentos regulatórios do mercado, como ocorre em nosso país neste momento. Basta lembrar que o Chile – mesmo num regime ditatorial de liberalização econômica radical – não renunciou ao monopólio estatal do cobre, que aliás tinha uma cota especial de recursos transferida diretamente para o financiamento das Forças Armadas. Foi uma decisão política “intervencionista” do Estado, de restrições ao “livre–mercado”.
Os estudiosos conhecedores do debate entre Popper e Hayek mostram que ambos, liberais em graus diferentes e moderados comparativamente a Guedes, sustentavam a necessidade de regulações estatais para garantir a “liberdade de mercado”, que implicava – por parte de ambos – no reconhecimento de um certo “casamento auspicioso entre economia e política.”
A visão dominante no liberalismo, todavia, que já corteja a ditadura para eliminar os entraves do Estado Social (que desloca renda “de cima para baixo”) já está formulada de maneira diferente: a política, as eleições livres, o dissenso democrático atrapalha a criatividade empresarial e a livre iniciativa. Trata–se da lógica defendida pelos que tem uma visão instrumental da democracia e a considera método decisório não apropriado para o convívio político, quando se trata de promover os imediatos interesses empresariais.
Diz um empresário típico do RS (ZH, “Dificuldades para Empreender”, 27.11. W. Lídio Nunes) como admirador do democrático presidente Bolsonaro : o “Estado (brasileiro é) interventor, burocrático, com um custo maior do que a sociedade pode suportar e governado pelo patrimonialismo clientelista populista da ‘próxima eleição’. Este contexto desestimula a geração de empregos, a competitividade sistêmica e o crescimento econômico necessários à inserção na economia globalizada”. Não passa pela sua lúcida cabeça que o Estado Social de Direito foi composto – historicamente – para proteger um pouco aqueles que tem “Dificuldades para Viver”, não somente os que tem “Dificuldades de empreender”.
István Mèzaros no seu já clássico “Para além do Capital” (pg.29, Boitempo, 2002), diz que “o grande erro das sociedades pós-capitalistas – como ele designava a URSS – foi o fato delas terem tentado “compensar” a determinação estrutural do sistema que herdaram pela imposição, aos elementos adversários, de uma estrutura de comando extremamente centralizada com um Estado político autoritário”. Nele a política desaparecia como movimento livre da sociedade civil.
O que Mèzaros procura esclarecer é que a tentativa de “revogar” as leis do mercado pela força da burocracia estatal – sem considerar as consequências sociais e políticas de cada Plano centralizado – sucateou a experiência soviética. A “remoção das personificações capitalistas privadas do capital – prossegue – não foi (…) suficiente, como primeiro passo”, para dar eficiência ao novo sistema e conferir um papel saudável aos burocratas, na “transição ao socialismo”. Os que rejeitam as eleições democráticas porque elas tem influência política no mercado, simplesmente propõe trocar os burocratas do Estado total, pela autoridade suprema dos burocratas das empresas amantes do mercado perfeito: o neoliberalismo “top model”, hoje na sua versão “ultra” radical.
A crítica de Mèzaros já estava explicitada treze anos antes, no livro de Alec Nove (“A economia do socialismo possível”, pg. 281, Ática, 1989) pela voz de Trotsky. Na sua crítica de princípios contra o regime burocrático stalinista, o fundador do Exército Vermelho e defensor da “militarização” dos Sindicatos, defendia a necessidade de “combinar plano, mercado e democracia soviética”, durante o que ele chamava “época de transição.” Plano, portanto, ligado ao mercado e à democracia, significariam para Trotsky a integração da política com a economia, para que esta não se amarrasse nos cálculos da burocracia, que cuidaria – no regime stalinista depois da Guerra – principalmente das condições para a reprodução do seu próprio poder.
Estas indagações sobre o mercado, que tem a ver com o socialismo e com a social-democracia, bem como tem a ver com a democracia política, são suficientes para provocar algumas reflexões sobre o que estamos vivendo no Brasil. É o país em que o neoliberalismo – aceito e fundido com a socialdemocracia em diferentes graus – foi substituído pelo “ultraliberalismo”, que separa – formal e materialmente – a economia da política.
Este “ultraliberalismo” que ora extingue o primado da política democrática na gestão do Estado, pode ser derrotado pela concepção neoliberal, já “civilizada” pela socialdemocracia? Tudo indica que não, como se vê dos próprios efeitos das reformas ultraliberais, que criam a sua própria base social e amortecem qualquer resistência de massas aos seus planos reformistas. As reformas obrigam uma massa enorme de trabalhadores a viver apenas no presente, sem perspectivas de proteção social. São grupos humanos que pensam que são “donos de seu nariz” e cujo futuro inseguro só se apresentará de forma concreta a médio ou longo prazo.
Trata-se de formular, então, uma outra pergunta, cuja resposta pode ser conformista ou provocar uma estratégia política inovadora, para nos opormos a uma situação sem precedentes na América Latina. O que fazer, se as forças do ultraliberalismo – extinguindo o mercado do Estado Social – delegarem a fala política diretamente ao “mercado” financeiro, por “fora” dos partidos? O mercado, logo, ocupando o território da política, com suas permissões ou vedações do que pode ou o que não pode na democracia capitalista.
Pergunto, porque o jogo político não é mais o mesmo do neoliberalismo clássico thatcherista, por exemplo. Este falava através dos partidos tradicionais e apresentava abertamente os seus projetos, mas atualmente o “ultraliberalismo” dispensa qualquer mediação democrática que é substituída, portanto – de forma plena – pela “instituição” fantasmática “mercado”. O mercado “subsume” a política e edifica novos valores de convívio, alheios às necessidades cotidianas de uma comunidade regrada democraticamente: no mercado não tem democracia, pois só tem “voto” quem tem poder aquisitivo.
A pergunta que segue é mais dramática e a sua resposta poderá ensejar uma estratégia inovadora: o que estamos vendo é um detalhe da crise da democracia liberal–representativa ou é a ante-sala de um novo tipo de fascismo – ao mesmo tempo “social” e para-estatal – onde o novo “Führer” político é a voz do mercado na mídia oligopólica? Parece–me que esta questão é decisiva para entendermos o que ocorre no Brasil, como experiência original – nova e radical – sobre a qual os partidos de esquerda não tem feito reflexões mais acuradas, seja em Congressos, seja pela manifestação educativa dos seus núcleos dirigentes.
Quando o Presidente se recusa a falar sobre economia –“porque isso é com o Guedes”– e diz que nada “entende” dela, na verdade ele diz muito mais do que isso. Diz que as decisões da economia não passam pela política, logo, não passam por eleições, partidos, programas e pluralidade de “vistas” sobre o tema: a política só existe isolada na dimensão simbólica do fascismo – no gestual e na fala presidencial – e a economia, que orienta a sobrevivência cotidiana das pessoas, se expressa nas reformas ajustadas pela técnica ultraliberal. Estas, ao mesmo tempo que sufocam a política, diluem a sociedade de classes tradicional.
O Brasil vive sob um pacto firmado entre classes e grupos dominantes para chancelar a separação radical entre economia e política. Guedes, entretanto – o responsável pela economia – não é um “neoliberal” no sentido clássico e “thatcheriano” da palavra, mas é um “ultraliberal”. Como tal, ele busca extinguir qualquer instituição regulatória do mercado, assim esvaziando a possibilidade de que a política possa ter um papel ativo na construção de uma nação soberana.
Bolsonaro é um intérprete da sociopatia do fascismo e a sua escolha – pelas classes dominantes locais – como implementador ultraliberal sem consciência, é um complemento simétrico de Guedes, este com consciência para fazer o que sabe. Ambos repartem aquilo que no Chile foi sintetizado num só homem: Pinochet, o assassino primata que não passou – como diria o articulista de ZH – “pelo crivo do clientelismo populista da próxima eleição”, mas sabia passar pelas armas os que resistiram aos seus delírios de autoritários.
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Ultraliberalismo é a revolução da barbárie – de Hayek, o “moderado”, a Guedes, o radical - Instituto Humanitas Unisinos - IHU