15 Outubro 2020
Neste texto, [1] vou tocar em questões teóricas e metateóricas e, contando alguns episódios decisivos na minha formação, espero falar também do mundo em que vivemos. Optei por este caminho porque penso que minha trajetória ajuda a explicar a visão que tenho do que é e do que deve ser a ciência econômica, escreve Leda Paulani, professora titular sênior na FEA/USP, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 14-10-2020.
Nasci numa família pobre, descendente de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil nos tempos da economia primário-exportadora, mas já depois do fim da escravidão, para trabalhar como colonos nas fazendas de café no interior de São Paulo.
Seus filhos e netos experimentaram a virada na direção da indústria, da vida urbana e da importância cada vez maior do mercado interno. Quando li o famoso capítulo 32 da Formação Econômica do Brasil de Celso Furtado, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, não pude deixar de pensar na história de minha família e em como ela era a expressão viva dessa transformação do país.
Com a família de lavradores já vivendo na cidade, minha mãe trabalhou dos 14 aos 28 anos, ou seja, até se casar, nove horas por dia em pé, na frente de uma máquina, como operária têxtil, numa fábrica no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Ela e suas irmãs, que tiveram o mesmo destino.
Quando li pela primeira vez o capítulo XIII do Livro I de O Capital de Karl Marx, onde ele afirma que com a maquinaria há uma subsunção ou subordinação real do trabalho ao capital e que o trabalhador funciona aí como vigia da máquina, não pude deixar de pensar em minha mãe.
A família de meu pai tinha praticamente a mesma origem. Minhas tias, suas irmãs, também eram operárias têxteis nas fábricas do Ipiranga. Meu pai, contudo, muito esforçado, desejando estudar, mas sem condições de fazê-lo, virou-se como pôde, estudando português e contabilidade — além de latim! — por correspondência e estudando inglês sozinho, depois de ter conseguido um diploma do nível primário (hoje fundamental I) num curso de Madureza (hoje chamado de Supletivo). Por isso não trabalhava em fábrica, e sim num escritório, mas sem ter diploma formal sempre ganhou muito pouco, nunca mais do que dois salários-mínimos, mesmo fazendo trabalho de administrador.
Apesar das carências materiais, tive muita sorte, pois vivi feliz numa família estruturada, com um pai e uma mãe que nos estimularam, desde muito pequenas, a mim e a minha irmã, a estudarmos, mas principalmente tendo um ensino de alta qualidade numa escola pública.
Em 1973 entrei na FEA/USP a fim de estudar Economia, matéria que começou a me intrigar desde os 10, 11 anos, quando ouvi meu pai comentar uma notícia que dava conta de que produtores de cebola estavam jogando cebola nos rios ou queimando toneladas delas.
Como assim, pensei eu, queimar cebolas? Elas não são plantadas para serem consumidas, para alimentar as pessoas? Por que destruí-las, depois que elas nascem? Perguntei a meu pai o porquê daquilo e ele me disse: às vezes isso acontece. Na época do Getúlio, se queimava café. Fiquei ainda mais intrigada.
Não foi por isso, porém, não foi buscando respostas a questões intrigantes da infância que, anos mais tarde, resolvi fazer Economia. Naquela época, início dos anos 1970, não se sabia exatamente o que se estudava num curso como esse. Não havia tanta informação disponível, ao menos em família da classe trabalhadora, sobre as diversas áreas do ensino superior. Sabia-se alguma coisa dos cursos tradicionais: Direito, Medicina, Engenharia, mas… Economia? Me parecia algo que combinava de alguma forma História com Matemática, duas disciplinas das quais gostava muito.
Tampouco tinha ideia que adentrava um campo ainda quase 100% masculino (não éramos mais do que 20 ou 25 meninas numa turma de 180 alunos). Só me dei conta disso quando meu pai comentou com um tio meu, o irmão mais novo de minha mãe, o único que conseguira estudar de uma fila de 10 filhos, fizera Administração, comentou com ele que eu entrara na USP, no curso de Economia. Ele franziu o cenho e declarou que Economia, para uma mulher, jamais. Nem Administração era área aberta às mulheres. O que eu conseguiria, no máximo, seria um bom cargo de secretária executiva.
De qualquer modo, ao começar o curso, lembrei daquelas questões e achei que o estudo de economia deveria ajudar a respondê-las. O primeiro ano foi um porre total – curso de introdução para todos os lados: Direito, Sociologia, Administração, Contabilidade, Informática, e, claro, Introdução à Economia; mas neste último só aprendi a famosa lei da oferta e da procura e porque o preço do alface é mais baixo no final do que no início da feira livre.
Não desanimei. Pensei que dali pra frente, quando tivesse sido ultrapassado o calvário das introduções, do segundo ano em diante, as coisas haveriam de melhorar e eu começaria a estudar a economia de verdade. Piorou 500%. Naquele tempo, na FEA, não havia disciplinas optativas, e disciplinas como História Econômica ou Teoria do Desenvolvimento ou História do Pensamento Econômico só apareciam no terceiro ano. No segundo ano era só Microeconomia, Estatísticas mil, Cálculo, Matemática Financeira. Eu já estava ficando desacorçoada com aquela coisa, querendo saber quando iria estudar o mundo real.
Entrementes, corriam os anos da ditadura e colegas sumiam das salas de aula, centro acadêmico era invadido. Eu não entendia muita coisa, porque, além de vir de uma família culturalmente periférica, como disse, o que eu tinha de referências políticas vinha de meu pai, bastante conservador, leitor da Times, tinha servido no exército na época da II Guerra, expressava apreço pelos militares e, dado o que vivera quando jovem, pelo momento que o mundo então atravessava, manifestava enorme admiração pelos EUA; em suma, pensava à direita.
Honra porém lhe seja feita, sempre lembra meu marido Airton Paschoa. Conservador embora, não podia ter-nos dado educação mais feminista, e pela qual ele, escritor maroto que só! se diz eternamente grato ao “sogrão”: “Vocês têm que estudar pra não dependerem de homem nenhum!”
Anedota à parte, pensava eu que a tal economia, que, de meu ponto de vista, ainda não estudara, havia de ter alguma coisa que ver também com aqueles generais de óculos escuros e com aquele pandemônio que fazia desaparecer meus colegas de sala. Frente àquela inquietação toda, o conteúdo de microeconomia me deixava cada vez mais exasperada com a nossa ciência. Pensava: então é isto a ciência econômica? Que ciência mais esquisita! O que ela explica, afinal? Como assim que existem infinitas firmas? Como assim que o lucro normal é zero? O que o custo marginal tem que ver com a queima de cebolas?
Fiquei tão intrigada com tudo isso que um dia perguntei a meu pai, que, como disse, trabalhava como uma espécie de administrador sem diploma, e seu emprego era numa empresa de comércio e indústria, que vendia pneus novos, mas também recauchutava pneus antigos e os revendia, perguntei então a ele se sabia o que era custo marginal e receita marginal e/ou se os patrões dele sabiam. Ele disse que nunca ouvira falar; sabia de receita e despesa, débito e crédito, encargos trabalhistas, impostos, incidência tributária, já tinha ouvido falar na famosa lei da oferta e da procura e até entendia como ela funcionava, mas custo marginal, receita marginal, isso ele desconhecia. Os patrões tampouco haviam sido apresentados aos termos (ele havia perguntado).
Corria o ano de 1974 e, no segundo semestre, logo no início do curso de Microeconomia II, o professor voltou a falar na tal teoria do valor utilidade. E, claro, não era a primeira vez que a mencionava. No curso de Microeconomia I, tinha usado diversas vezes essa expressão. Então caiu a ficha: por que teoria do valor utilidade? Por que não apenas teoria do valor? Se ele fala de teoria do valor utilidade é porque deve ter outra. Então perguntei: professor, porque o senhor fala todo tempo na teoria do valor utilidade, tem outra? Ele parou um pouco e disse: tem, Leda. Eu fiquei animada e perguntei: e qual é essa outra? Ele disse: é a teoria do valor trabalho. Só pelo nome já me soou mais interessante do que aquela que aprendíamos, era um nome que parecia fazer sentido. Então imediatamente eu perguntei: e como é essa teoria do valor trabalho? Ele disse: ah, essa eu não sei…
A despeito de “não saber” a teoria do valor trabalho (é claro que alguma coisa sabia, mas certamente não quis entrar no mérito, porque afinal os tempos eram perigosos), a resposta do professor me ajudou muitíssimo, pois fui atrás da tal teoria do valor trabalho. Aí, fiat lux, as coisas começaram a se encaixar. Descobri Adam Smith e Ricardo e também comecei a entender porque o tal de Marx era tão importante.
Mas meu primeiro contato com o velho barbudo se deu no terceiro ano, numa disciplina de Teoria do Desenvolvimento, onde nosso professor, Hélio Nogueira da Cruz, em decisão arriscada, permitiu que estudássemos, na base de seminários, alguns textos que quiséssemos. Um dos textos escolhidos foi um capítulo do livro de Paul Sweezy Teoria do Desenvolvimento Capitalista, que acabei lendo todo e era uma espécie de iniciação à teoria de Marx. Esse contato, ainda que indireto, me confirmou que o caminho de uma verdadeira ciência econômica tinha que passar por aí.
Finalmente comecei a entender o que era valor, ainda que sem saber nomeá-lo, o que só consegui anos mais tarde, já no doutorado, me dando conta de que valor é uma forma social, que tem uma substância, também social, que é o trabalho, e que os preços dos bens e serviços têm que ver com isso, ainda que os preços pelos quais as coisas são efetivamente trocadas tenham que ver também com a tal lei da oferta e da procura.
Quando estudei Adam Smith, já no último ano, no curso de História do Pensamento Econômico, uma das coisas que mais gostei foi aquela distinção entre preço natural e preço de mercado, porque ela punha as coisas no lugar certo. Era uma explicação meio newtoniana, mas que fazia muito sentido. Mostrava como se formavam os preços por meio do tempo de trabalho e como esses preços naturais funcionavam como um centro de gravidade em torno do qual flutuavam os assim ditos preços de mercado, ora acima, ora abaixo deles. Só uma questão me ficou: como a ciência podia ter regredido tanto? Se nascera assim, certinha, tornando tudo compreensível a partir da teoria do valor trabalho, por que essa teoria fora deixada de lado?
E foi a partir dessa e de outras reflexões que fui fazendo por conta própria, e, claro, pela convivência com colegas politizados, por força da situação política do país que fervia— em 1975, por exemplo, houve o assassinato de Vladimir Herzog, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), muito próxima da FEA, ensejando uma greve de um semestre em protesto, e acirrando ainda mais os ânimos no movimento estudantil; por força de tudo isso, fui colando os cacos do que via e aprendia dentro e fora da sala de aula: a ciência econômica, o capitalismo, os militares, a ditadura, a América Latina, o imperialismo, a queima de cebolas…
Em 1976 saio da faculdade uma pessoa decididamente de esquerda e com muita clareza de que se existia uma ciência econômica, se essa ciência explicava alguma coisa do mundo em que realmente vivemos, ela não morava nos livros de introdução à Economia, menos ainda nos manuais de microeconomia, em suma, não ia encontrá-la naquilo que é a corrente principal da economia ou seu mainstream.
A verdadeira ciência econômica morava na Economia Política, na ciência tal qual nascera nas mãos de Smith no último quartel do século XVIII. De Marx mesmo eu lera até então pouca coisa, o primeiro capítulo de O Capital com um grupo de colegas, tudo meio às escondidas, evidente, e o texto Salário, Preço e Lucro. Mas Marx curiosamente não foi um autor por que me apaixonei à primeira vista… foi paixão madura mesmo, dessas que levamos para o resto da vida.
Muitos anos depois me tornei diretora, vice-presidente, duas vezes presidente, e hoje voltei a ser diretora, da Sociedade Brasileira de Economia Política, a SEP, uma instituição que congrega professores heterodoxos, ou seja, críticos da ortodoxia neoclássica, de várias correntes, com alguma predominância de marxistas, e que foi formada em 1996, tentando enfrentar o levante neoliberal, ou, como afirmou o Prof. Mário Possas em texto famoso,[2] a cheia do mainstream naqueles meados dos anos 1990.
Há poucos anos, conversando com um jovem professor, ele me perguntou por que me tornei marxista. Respondi-lhe que me tornei marxista não por paixão política, mas porque penso que foi Marx quem conseguiu, cientificamente, desvendar os fenômenos da moderna sociedade do capital.
Na crítica ao mainstream, não podemos esqueceras correntes pós-modernas, que remam a favor da maré ortodoxa, transformando tudo em narrativa, em retórica, que relativizam todas as verdades e com isso deslocam a ciência de sua vocação emancipatória. Se o surto pós-moderno que tomou de assalto a filosofia e a reflexão epistemológica a partir dos anos 1980 serviu pra alguma coisa, foi pra cultivar o solo ideológico de onde brotaram rebentos horríveis como a tal da pós-verdade, da qual o terraplanismo é só o exemplo mais visível e escandaloso.
Ao mesmo tempo temos de reconhecer, na esteira da Escola de Frankfurt, a incorporação da ciência às forças produtivas, seu comprometimento talvez irremediável. O positivismo moderno, o racionalismo crítico de matriz popperiana, tão combatido por Adorno e grassando hoje em quase todos os campos do conhecimento, é obstáculo quase intransponível. Apesar de tudo, e parafraseando inversamente nosso Gramsci, é o caso de pessimismo na ação e otimismo na inteligência…
No curso de História do Pensamento Econômico, junto com os preços naturais e os preços de mercado, tomei contato também com os teóricos da chamada revolução marginalista, que acontecera no último quartel do século XIX e destronara a economia política clássica que nascera com Smith um século antes. Além do francês León Walras, de quem já ouvira falar nas aulas de Microeconomia, fiquei sabendo que também o inglês Stanley Jevons e o austríaco Carl Menger tinham contribuído para essa revolução e, de meu ponto de vista, para o retrocesso da ciência econômica.
Fiquei sabendo também que por trás dos manuais de microeconomia e da popularização do novo paradigma, convertendo os complicados e formalizados desenvolvimentos teóricos em saber fácil de ser ensinado e difundido, estava o inglês Alfred Marshall. Era ele, portanto, o pai do festival de gráficos que decorava os meus cadernos de Micro I e Micro II e que, na minha opinião, de pouco serviam pra entender o mundo em que efetivamente vivemos.
Mas o que quero destacar aqui é aquilo que, a meu ver, está por trás de toda a ciência econômica convencional, que é o mundo walrasiano, senão o modelo walrasiano propriamente dito, certamente a noção de equilíbrio, pano de fundo de todas as assertivas e de todas as teorizações, e indiretamente também a noção de concorrência perfeita, que colabora para o mesmo fim. Isso cria um mundo de fadas, de conto da carochinha, que não deveria nos preocupar — não comandasse o mundo prático e a política econômica de quase todos os governos, incluídos os ditos de esquerda, com consequências drásticas.
Para mostrar o que quero, volto ao David Ricardo, outro dos teóricos da economia política clássica, e adentro um pouco a questão metateórica, ou seja, a questão do método adequado à ciência da Economia. Diferentemente de Smith, Ricardo não era filósofo, mas ativo homem de negócios e membro do parlamento inglês. Tinha uma forma de raciocinar pautada pelo método dedutivo, ou seja, um raciocínio onde os resultados são consequências lógicas das premissas. Era assim, portanto, que ele discorria sobre os fatos econômicos, por meio de uma sequência de proposições logicamente conectadas. Ao que tudo indica, no âmbito da ciência econômica, é aí que nasce a ideia de montar modelos pra entender a realidade.
O caráter dedutivo das explicações de Ricardo era tão acentuado que incomodou Henry Brougham, seu companheiro no parlamento inglês, que assim se pronunciou sobre o colega: “As concepções do Sr. David Ricardo são na verdade abundantemente teóricas, às vezes muito refinadas para sua audiência, de vez em quando extravagantes, graças à propensão que o Sr. Ricardo tem de levar um princípio até às últimas consequências, como se fosse um ser do outro mundo, ou como se fosse um engenheiro que construísse uma máquina sem levar em conta a resistência do ar em que ela vai operar e a força, o peso e a fricção das partes que a compõem”.[3]
O desconforto do pragmático companheiro de Ricardo era, claramente, com o caráter absolutamente abstrato de suas formulações, ainda que se destinassem, ao fim e ao cabo, a referendar proposições concretas de política econômica. Parecia a Ricardo evidente que, se conseguisse demonstrar a verdade lógica de suas teses, suas propostas teriam de ser incondicionalmente aceitas. É por conta disso que Joseph Schumpeter, já no século XX, vai denominar “vício ricardiano” à vinculação de formulações abstratas a questões práticas.
Notem que outro economista inglês, Frank Hahn, um dos teóricos que mais colaborou para o desenvolvimento da teoria do equilíbrio geral walrasiana, reclama, em um de seus livros, exatamente disso, da persistência desse vício ricardiano, da indevida utilização que os monetaristas em geral faziam (e continuam fazendo) do paradigma walrasiano, como se estivesse ele descrevendo as economias reais, de modo a tornar viável o seu controle. Monetaristas são os economistas que entendem o que é a moeda e o dinheiro de uma forma que converge com o mundo neoclássico, com seus pressupostos teóricos assentados nos princípios marginalistas, e que pauta a agenda de política monetária hegemônica no mundo, de uma forma bastante radical, desde pelo menos os anos 1980.
Diz então Hahn: “Tendo gasto a maior parte de minha vida como um economista dessa teoria, confesso que tal interpretação jamais me ocorreu. Na verdade, era claro, desde o início, que nós só tínhamos meia teoria, uma vez que não havia (e não há) nenhuma explicação rigorosa sobre como o equilíbrio de Arrow-Debreu vem a ser estabelecido. Mas percebeu-se rapidamente que mesmo essa metade que nós tínhamos possuía sérias falhas: ela não podia explicar o dinheiro ou as mudanças de estoque; retornos crescentes não eram possíveis; não havia nenhuma teoria das trocas reais etc. (…) Se se toma a teoria walrasiana seriamente, não se pode levar a sério o uso que os monetaristas fazem dela”.[4]
Frank Hahn fala com a autoridade de quem participou ativamente da confecção do artefato teórico mais logicamente consistente com a ideia da ciência econômica como explicação dedutiva já produzido. O modelo de Arrow-Debreu que cita (na realidade trata-se do modelo Arrow-Debreu-Hahn, pois ele também fazia parte da trindade de teóricos que o elaborou) é o modelo walrasiano mais bem desenvolvido já construído, um modelo que resolve muitos dos problemas e das lacunas que Walras tinha deixado, muitas das quais por conta simplesmente de que a matemática de sua época ainda não estava suficientemente desenvolvida pra fornecer os instrumentos capazes de solucioná-las.
O objetivo maior do modelo walrasiano é provar a existência, na economia de mercado, de um vetor de preços de equilíbrio, ou seja, demonstrar matematicamente que o mercado, por seu próprio funcionamento, sempre encontra um vetor de preços que equilibra ofertas e demandas de modo a satisfazer todos os desejos. É surpreendente, portanto, surpreendente e digno de aplauso, que Hahn tenha sido tão franco na admissão da total insuficiência do paradigma do equilíbrio geral para explicar o mundo em que realmente vivemos. Mas isso nos leva imediatamente a perguntar: se não se trata disso, do que se trata então? A ciência econômica é como a Arte, um fim em si mesma? Pode se dar ao luxo de virar as costas ao mundo real?
Sobre essa questão não será demais lembrar, menos por seu caráter anedótico do que pelo que revela desse tipo de concepção de ciência econômica, um episódio ocorrido justamente com o economista francês Gérard Debreu – o Debreu do modelo Arrow-Debreu – quando da cerimônia de recebimento de seu Nobel de Economia em 1983. Segundo consta, ao final do evento, em meio a dezenas de jornalistas que o cercavam, foi-lhe perguntado o que achava ele, àquela altura o mais celebrado economista do planeta, da política de juros do presidente Reagan, a qual havia espantado o mundo por sua extrema dureza, tornando-se então o assunto predileto das rodinhas especializadas. Para estupefação e assombro de todos os presentes, Debreu respondeu singelamente que não fazia a menor ideia do assunto, pois não se preocupava com assuntos de política econômica, só fazia modelos abstratos…
Aos menos avisados, a inesperada resposta talvez tenha parecido tão somente a sonsice de um francês arrogante, que queria sutilmente revelar seu desprezo pelos assuntos americanos. Mas evidentemente não era disso que se tratava e sim de novo rompante de sinceridade de um teórico do equilíbrio geral, de natureza idêntica à manifestação de Frank Hahn que acabamos de comentar. Se Debreu não tinha de fato o que dizer, se todo seu conhecimento de teoria econômica, que lhe tinha rendido um Nobel, não lhe permitia pronunciar uma palavra sequer acerca de objeto tão escandalosamente econômico, cabe-nos repetir a pergunta que já havíamos feito: de que trata então essa teoria? de que mundo fala ela? que conhecimento é esse?
É o flagrante irrealismo dos pressupostos da teoria do equilíbrio geral que torna difícil senão impossível fazer uso de seus achados teóricos pra explicar o mundo real e fazer prescrições de política econômica sem incorrer no vício ricardiano. Para Frank Hahn, como vimos, os campeões desse erro são os monetaristas. Pois foi justamente o pai do monetarismo, o economista americano Milton Friedman, quem escreveu o artigo sobre metodologia mais influente de toda a história da economia justamente pra defender esse uso, ou seja, defender a utilização de pressupostos irrealistas na elaboração dos modelos teóricos.[5]
É bem verdade que Friedman refere-se aí não à versão walrasiana do paradigma do equilíbrio, mas à versão marshalliana dele, que trata de equilíbrios parciais. Sua crítica ao modelo walrasiano, contudo, se assentava em sua incapacidade de fornecer hipóteses testáveis, ― não na irrealidade do mundo por ele construído. O ensaio de Friedman teve repercussão extraordinária e marcou gerações inteiras de economistas filiados ao mainstream. O pragmatismo militante ali tão calorosamente defendido por Friedman fornecia aos adeptos da corrente os melhores argumentos para a defesa da crítica, a eles sistematicamente feita, de que a teoria de extração neoclássica partia de pressupostos irrealistas, devendo, por isso, ser abandonada.
Mas, através de Friedman, nós topamos o tema por mim estudado no doutorado: o dinheiro.
Concluído o curso em 1976, abandonei a FEA, migrei para a escola vizinha, a ECA, a fim de cursar jornalismo à noite, e fui trabalhar como analista macroeconômica num grande banco.
O trabalho era estreito, às vezes repetitivo, o ambiente quase 100% masculino, no pior sentido da palavra; para uma mulher, era quase irrespirável (lembrei do meu tio). Algumas vezes tinha que ir com o diretor de meu departamento a reuniões gerais entre os vários departamentos do banco (era um banco de investimentos), sempre sendo a única mulher. O diretorzão, um sujeito supermachista, nunca dirigia a palavra a mim diretamente. Chamava a todos os presentes de doutor (e ninguém era doutor ali, todos apenas bacharéis, como eu) e quando ele queria dizer alguma coisa sobre o trabalho que eu desenvolvia, em geral estudos setoriais, ou análises da política monetária e do processo inflacionário, ele se dirigia a meu chefe e dizia: precisa falar pra mocinha aí isso e aquilo, etc. A mocinha aí era eu… Minha vontade de sumir dali e voltar à universidade, tentar uma carreira docente, era enorme, e compreensível.
(Diga-se em desagravo do “diretorzão” que não era só ele nem seu tempo. Secretária de Planejamento do governo Haddad, já na segunda década do século XXI, nas diversas reuniões na Câmara Municipal, com a presença de outros secretários, a única mulher e doutora nunca era assim interpelada. Era eu sempre simplesmente Senhora… Doutores ― tão só os secretários homens, e bacharéis.)
Desde 1979 levava vida dupla, pois militava numa organização trotskista clandestina, que depois entrou no PT, praticando o chamado “entrismo”. Pela época iniciara também a árdua batalha pela legalização do PT. Liberdade e Luta, hoje objeto até de documentário, era o nome da organização no movimento estudantil. A vida de Alexandra (meu nome de guerra) retirava um pouco do cinza com que o ambiente do banco pintava meu dia a dia. Mas outra coisa também me ajudava a suportar tudo aquilo: a ECA. Ir para lá à noite, depois de passar o dia no banco, era um paliativo. Ali respirava e não me deixava emburrecer. Foi ali também que tomei contato mais intenso com uma área do conhecimento que só não me era inteiramente desconhecida por conta das aulas de História Econômica da FEA, ministradas pelo Prof. Iraci del Nero da Costa, nas quais Hegel se metera sorrateiramente. Tendo de estudar, por força do currículo do curso de jornalismo, os fenômenos relacionados com a chamada indústria cultural, mergulhei na Escola de Frankfurt e fiquei fascinada por Adorno, Horkheimer, Marcusee Benjamin (cuja trágica morte por suicídio para escapar das forças nazistas completou em setembro, por sinal, oitenta anos).
Capturada pela Filosofia, que viria a despertar em mim um apreço nunca diminuído pela interdisciplinaridade, a estreiteza do trabalho no setor financeiro parecia inda mais sufocante. Deixar o banco, arriscar a sorte na academia, contudo, não era decisão fácil ou viável pra quem não nascera em berço de ouro. Um belo dia porém resolvi encarar o desafio. Prestei o exame da Anpec e em março de 1983 lá estava eu, finalmente, de volta à casa, aluna do IPE— o Instituto de Pesquisas Econômicas da FEA/USP, responsável pelo curso de pós-graduação.
Foi quase uma insanidade cursar as disciplinas do mestrado em Economia e continuar a trabalhar no setor privado, mas as contingências materiais de minha vida não me deixavam outra saída e os bons resultados que obtive me valeram indicação pra passar direto ao doutorado. A perspectiva, longínqua então, de vir a permanecer na FEA como professora ficava um pouco menos utópica. Agarrei a oportunidade e decidi assumir de vez a academia, com toda a incerteza que isso representava em termos financeiros.
A partir daí, tudo foi acontecendo num turbilhão. A experiência da cátedra veio muito antes do que poderia imaginar e quando, em agosto de 1985, pisei numa sala de aula da FEA, pela primeira vez como professora e não como aluna (aprovada que fora a uma vaga de professor substituto na área de macroeconomia), a sensação foi de orgulho… e pânico. Em setembro de 1988, recebi com enorme alegria o resultado de um concurso para ocupar uma vaga de docente (desta vez não mais temporária) no Departamento de Economia.
Tinha que concluir o doutorado. A questão era sobre o que escrever. Inclinada inicialmente à área de história econômica, que sempre me fascinara, comecei a tomar gosto pela discussão teórica, em particular pelas visões heterodoxas, sobretudo na vertente materialista (já tinha lido muito mais Marx, então). Não sabia, contudo, a que me dedicar exatamente. O dinheiro era um objeto que me intrigava, mas ficava na dúvida se uma tese sobre ele iria render algo original… Mas o episódio que agora vou relatar facilitou minha decisão.
Numa tarde, num momento em que sempre rolava um cafezinho entre os estudantes da pós, surge um de nossos colegas e, com cara de quem tinha feito descoberta digna de Einstein, nos diz resoluto: “gente, descobri uma coisa, o dinheiro não existe!” “Como assim?” perguntamos todos. Ao que ele retrucou: “o dinheiro não tem lugar lógico, e se não tem lugar lógico não existe”. Nem é preciso mencionar a gozação que logo se seguiu, com todos dizendo, “ok, então passa isso aí que está no seu bolso para o meu…”, “te dou já meus dados para a transferência de seus saldos bancários” etc.
Ciente das principais considerações de Marx sobre mercadoria, dinheiro e capital, bem como de outras teorias sobre o dinheiro, tinha certeza de onde vinha a enormidade daquela afirmação. O colega estudava a teoria do equilíbrio geral, de León Walras. E de fato nessa teoria, no modelo que consegue provar do modo mais perfeito possível a existência de um equilíbrio geral a partir do funcionamento do mercado e do sistema de preços, — o dinheiro não existe. Se lembrarem da citação de Frank Hahn que li há pouco, ele diz aí exatamente isso: “Na verdade, era claro, desde o início, que nós só tínhamos meia teoria (…) Mas percebeu-se rapidamente que mesmo essa metade que nós tínhamos possuía sérias falhas: ela não podia explicar o dinheiro (…)”.
Me pus então a pensar que havia algo de muito errado com uma ciência que não dá guarida a seu objeto mais característico, assim como uma medicina que se recuse a compreender o sangue humano, ou uma química que ignore a tabela periódica. Fiquei imaginando o que pensaria um leigo passando desavisadamente por ali e ouvindo uma frase como aquela… Não sendo doido o doutorando, poderia até processar a faculdade, por malversação do dinheiro público; afinal, todos ali recebiam bolsas de pesquisa de instituições públicas de fomento. Decidi-me, afinal, pelo dinheiro como objeto de estudo da tese.
O que é o Dinheiro? A pergunta aparentemente simplória, capaz de ser respondida sem dificuldade por qualquer criança, faz referência a um objeto que está bem longe de ser simples. Em primeiro lugar, porque não é um objeto natural, por mais naturalizada que esteja a realidade social de nossa economia de mercado. Ademais porque, objeto escorregadio, não se deixa submeter facilmente às peripécias do processo de representação, pregando peça em muita gente boa. Quando se tenta precisá-lo, sua ambiguidade contamina o discurso e faz o analista perder o pé. Quando você pensa que já o prendeu em seus laços conceituais, ele já se escafedeu e escondeu-se no seu predicado, ou em um de seus papéis.
O já citado Milton Friedman, advogado número um do irrealismo dos pressupostos, pai do monetarismo, irritou-se muito, não por acaso, quando um aluno de pós-graduação pediu-lhe que conceituasse moeda. Indagou o aluno, com justa razão: “Em seu modelo, a moeda é o conceito básico, e, no entanto, o senhor não nos disse ainda o que é a moeda em termos conceituais exatos. Poderia ajudar-nos a entendê-la agora?” Friedman o arrasou, dizendo-lhe que nada entendia de metodologia científica, que Newton não precisava dizer o que era a gravidade, bastando mostrar o que ela faz, e que o mesmo se aplicava à moeda.[6]
E o que mais esperar de quem defende o irrealismo dos pressupostos teóricos? Mas então a ciência convencional, ou ortodoxa, é assim: o pai da teoria que leva o nome de um objeto, diz que não é preciso saber o que é esse objeto. O problema é o vício ricardiano, porque tira-se daí, desse conhecimento científico sui generis, e nobelizado, políticas econômicas que ao fim e ao cabo abatem vidas mundo adentro.
Até agora usei indistintamente os termos moeda e dinheiro, como sinônimos, mas de fato não querem dizer a mesma coisa. Na realidade um contradiz o outro, ainda que ambos sejam uma única e mesma coisa. A teoria monetarista, por exemplo, vê o dinheiro apenas como moeda, não o enxerga plenamente. Mas obviamente não vou aqui tentar expor minha tese e o que escrevi sobre dinheiro, porque não teríamos tempo; digo apenas que tentei justamente, com base em Marx, lido através das lentes de Hegel, capturar o dinheiro em sua obscuridade, com um discurso também escorregadio e que abraça a contradição.
Objeto obscuro, leia-se contraditório, para capturá-lo impõe-se igual discurso da obscuridade. Quando se tenta capturá-lo com discurso claro, ou seja, quando se tenta definir, clarificar um objeto obscuro, a contradição que é do objeto passa ao discurso e o discurso se contradiz. Na tese, fiz uma análise do pensamento sobre o dinheiro na teoria do equilíbrio geral, na teoria neoclássica, na teoria clássica, e mesmo na teoria keynesiana, indicando como a contradição do objeto contradiz esses discursos.
A tese sobre o dinheiro, resumidamente, é que, sendo ele logicamente sucedâneo da mercadoria, é, em sua essência, pura forma (uma forma social), mas que tem que aparecer como o contrário disso, como matéria absoluta. Parte das turbulências hoje vividas pela economia global decorrem do desdobramento histórico dessa contradição constitutiva do dinheiro.
Numa abordagem muito original, o Prof. João Sayad diz que o dinheiro é um mito, cuja existência e funcionalidade dependem da crença e da fé de quem o utiliza, assim como os santinhos religiosos; e o mito não pode ser desmitificado.[7] Por isso é tão difícil domá-lo pelo processo de representação que constitui o conhecimento (no caso, a ciência econômica, que, as mais das vezes, segundo Sayad, acaba forjando uma teoria monetária sem moeda). E se o dinheiro é mito, os regimes de metas de inflação e as reuniões periódicas de comitês que emitem bulas papais com as regras de seu manuseio figuram, para ele, como os rituais necessários, em tempos de dinheiro sem lastro, a fim de conservá-lo mito e salvá-lo da racionalização, que o destruiria. As conclusões de Sayad não estão muito longe das minhas e também nos dão pistas importantes para pensar o porquê do surgimento, hoje em dia, da tão comentada MMT, a Modern Money Theory, ou Moderna Teoria do Dinheiro (que, de fato, de moderna pouco tem).[8]
Daqui poderíamos partir para a discussão do capitalismo contemporâneo, da financeirização e do rentismo, temas que venho ultimamente pesquisando, mas quero dizer umas poucas palavras sobre uma área na qual também trabalhei bastante e foi muito importante para minha formação, a área de metodologia. Minha tese de livre-docência trata justamente de temas metateóricos, além de capitalismo contemporâneo. Mas vou trazê-la aqui para acrescentar à crítica que até agora fizemos da ortodoxia econômica mais um elemento. Desta vez, porém, não se trata da crítica da heterodoxia, da Leda Paulani, economista declaradamente marxista (e keynesiana eventualmente), senão de um autor célebre, ninguém menos do que Friedrich Hayek, o pai neoliberalismo.
Em meados de 2003, depois de ter passado pouco mais de dois anos pelo cargo de assessora chefe do gabinete da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, onde era secretário justamente meu amigo o Prof. João Sayad – tratava-se da gestão Marta Suplicy, então petista— resolvi retomar o projeto de livre-docência, interrompido naquele período para poder atender ao convite de Sayad. Tomei uns tantos ensaios, escritos ao longo dos anos por ocasião de uma bolsa de produtividade do CNPq, encadeei-os de outra forma, escrevi três ensaios novos e apresentei o volume no citado concurso sob o título Modernidade e Discurso Econômico (Boitempo, 2005).
O título da tese, que virou livro, inspirou-se numa obra do filósofo alemão Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade. Nesses anos todos, minha paixão pela filosofia, a carência de formação na área e a necessidade de aprofundar meus conhecimentos dentro da teoria marxista me levaram a fazer vários cursos como ouvinte, na FFLCH, dois com o Prof. Ruy Fausto, um sobre os Manuscritos Econômico-filosóficos de Marx e outro sobre a Lógica de Hegel, um com o Prof. Paulo Arantes sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel e um quarto sobre o citado livro de Habermas, com o Prof. Ricardo Terra.
O que tento fazer na tese é indiciar a contradição do discurso econômico convencional, ao mesmo tempo que tentar demonstrar quais foram os constrangimentos materiais que produziram determinados resultados teóricos e metateóricos. Almejava assim responder a uma das minhas perguntas, quando estupefata assistia às aulas de Microeconomia no meu curso de graduação na FEA: o que havia acontecido com nossa ciência?
O livro trata de muita coisa, muitos objetos, todos relacionados à necessidade da crítica do discurso econômico convencional. Por isso Hayek tinha que estar presente. O professor austríaco, altamente respeitado, havia sido trazido da Áustria em 1933 para a London School of Economics por outro compatriota, o economista Ludwig von Mises, muito conhecido hoje em dia por conta da ascensão dos grupos de extrema direita mundo afora. Mises buscara Hayek para enfrentar o dragão keynesiano que surgia no horizonte e, mesmo antes da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda do maldito inglês, causava arrepios aos princípios de livre mercado que pautavam a produção teórica de Mises.
Hayek não deu conta do recado. Conta um estudioso da trajetória de Hayek [9] que ao longo dos anos 1930 a academia inglesa viu Hayek surgir inicialmente como estrela de primeira grandeza na constelação dos economistas e, posteriormente, terminar a década completamente apagado, ofuscado pela glória keynesiana. Mas o que nos interessa aqui é a crítica que Hayek faz à abordagem neoclássica. A abordagem, que, como já dito, tem por trás de si o modelo walrasiano, baseia-se inteiramente na ideia do homem econômico racional, de modo que o equilíbrio que aí surge é sempre o resultado dessa visão dos agentes…
Defensor dessa concepção durante tempo substantivo de sua vida intelectual, Hayek, no entanto, muda radicalmente de postura em meados dos anos 1930. Num texto intitulado Economics and Knowledge, de 1937, Hayek procede a uma crítica demolidora da teoria neoclássica e de sua ideia de indivíduo. Resumidamente, assevera que, ao tomar o indivíduo e seu comportamento como dados a priori, a teoria neoclássica dá por resolvido aquilo que deveria resolver. O equilíbrio que aparece como resultado de seu desenvolvimento está em realidade hipostasiado, e, com isso, a teoria neoclássica, que deveria funcionar como a prova “científica” de que a sociedade de mercado consegue produzir o ótimo social, não passa de círculo vicioso — em que o fim, a provar, está na origem, postulado.
Com efeito, conforme o Prof. Sayad na orelha do livro que resultou da tese de livre docência,[10] a teoria neoclássica e o homem econômico que ela pressupõe não combinam com a imagem que temos da sociedade capitalista, de empresários visionários, populações inteiras desenraizadas e deslocadas para trabalhar em minas ou em plantations no Novo Mundo, gerações empobrecidas até a morte por causa de novas invenções, ou levadas à morte por causa do preço da batata… ou do arroz. O indivíduo econômico da teoria combina apenas com um Robinson Crusoé que toma decisões racional e calmamente, isolado numa ilha perdida no meio do oceano; ou com um hippie sossegado dos anos 1970, a escolher entre dois bens, pensando apenas no mais necessário e em paz com o mundo.
Havendo chegado à deplorável conclusão de que a teoria que deveria advogar cientificamente a economia de mercado não passava de falácia, Hayek simplesmente abandona a teoria econômica e passa a cuidar de outros temas, Legislação, Direito etc. Quando, em 1947,comanda intelectualmente a fundação da Sociedade Mont Pelèrin, espécie de certidão de batismo do neoliberalismo, já está ele ciente da impossibilidade de defender cientificamente a economia de mercado, que só seria possível defendê-la como fim em si mesma, enquanto solo único da realização da liberdade do indivíduo etc. etc. Ideologia em estado bruto, em suma.
Na citada orelha do livro, o Prof. Sayad ainda escreve: “Leda mostra que o pensamento de Hayek abandona o debate dos economistas sobre o funcionamento da economia capitalista e passa a defendê-la como um fim em si mesma […] O capitalismo e a economia de mercado não requerem mais justificativa ou análise racional. Daí que o pensamento econômico se torna raso, ou impossível de ser discutido racionalmente. A privatização é preferível porque é privada, o mercado porque é mercado. É essa escolha sem justificativa que a autora aponta como traço definidor do pensamento neoliberal”.
E temos assim um motivo a mais para reprovar a continuidade do vício ricardiano, que pensa construir uma ponte entre a demonstração científica do caráter virtuoso da economia de mercado e as prescrições de política econômica a seguir para mantê-lo. Levando em conta a desistência de Hayek, a pessoa que mais gostaria de dispor de uma arma como essa, a prova simplesmente não existe.
Chegamos com isso ao capítulo final de minha história, minhas produções mais recentes, todas elas vinculadas à crítica ao neoliberalismo, no Brasil e fora dele, e às transformações experimentadas pelo capitalismo contemporâneo, sobretudo ao processo de financeirização da economia, que é, para mim, apenas um dos fenômenos associados a um movimento de maior escopo, que chamo de rentismo.
Antes de iniciá-lo, porém, convém, por uma questão de honestidade intelectual, dizer ainda uma palavra sobre o paradigma convencional. Então ele não serve para absolutamente nada? Serve, sim; serve, por exemplo, pra explicar porque o segundo chope, num dia de calor escaldante, não é tão gostoso quanto o primeiro,[11] ou pra explicar, como já disse, porque o alface é mais barato no final da feira do que no início…
Defendida a livre-docência, terminei minha viagem ao planeta da epistemologia e da metateoria e fui voltando aos poucos a meu objeto de origem, o dinheiro. Entrementes a continuidade da gestão neoliberal do capitalismo, bem como o andamento político e econômico do país foram abrindo vias de associar tais pesquisas, mais teóricas, aos eventos concretos que foram marcando o país e o mundo nestas primeiras décadas do século XXI.
Estudei a autonomia das formas sociais e como vão elas tomando conta do processo de acumulação. Tentei mostrar como isso explica, de alguma forma, a persistência do que se convencionou chamar de financeirização da economia, assim como a continuidade do crescimento da riqueza financeira, desde pelo menos o início dos anos 1980, numa velocidade três vezes maior do que o crescimento da riqueza real.
Tudo isso decorreu de um movimento, mundial, de retomada da famosa seção V do Livro III de O Capital, onde Marx vai falar do capital financeiro, que ele chama de capital portador de juros, e do capital fictício, e onde ele vai mostrar como o capital portador de juros fecha o sistema. Marx começa da mercadoria, vai ao valor e ao dinheiro, chega a partir daí ao capital e finalmente retorna à mercadoria, já que o capital portador de juros não é nada mais do que o próprio capital transformado em mercadoria, ou seja, é a mercadoria capital.
Esse movimento teórico, que envolveu vários economistas marxistas, visava, claro, dar conta da nova etapa da história capitalista, começada no início dos anos 1980, com a débâcle da visão keynesiana e a crise que estourara nos anos 1970, uma crise de sobreacumulação, a meu ver. Nessa nova etapa, o capital financeiro vai ser o protagonista, comandando o processo de acumulação. O levante neoliberal que então se observa, capitaneado por Thatcher na Inglaterra e Reagan nos EUA, buscava recompor as condições de valorização do capital, avariadas pelo excessivo capital acumulado, pela pressão salarial em tempos de pleno emprego continuado e em parte também pelos direitos conquistados pelos trabalhadores. Em suma, buscava recuperar a taxa de lucro, mas buscava também liberar o mundo do complexo sistema de regulações e expedientes comandados pelo Estado que, ao longo dos chamados trinta anos gloriosos e sob os auspícios do Acordo de Bretton Woods, haviam colocado amarras à vocação de autonomização da finança, obrigando-a a se tornar parceira da produção.
A mercadoria capital é a que mais precisa de liberdade. Dólares aplicados hoje na Bovespa têm que ter a liberdade de amanhã estarem sendo aplicados nos títulos públicos do Nepal e depois de amanhã em debêntures de empresas inglesas na City de Londres ou em Wall Street. Como viver num mundo cheio de amarras, de quarentenas e regulações e porteiras e portarias?
Mas, a financeirização para mim, como já mencionei, é só um dos elementos de um processo de maior escopo, é só uma das formas de rentismo. Atinei com isso relendo a esquecida seção VI do livro III de O Capital. Nele, como se sabe, Marx analisa as formas segundo as quais a mais-valia aparece, a saber, Lucro, Juro e Renda, mas esta última foi ofuscada, por um tempo, pela abundante discussão sobre o capital portador de juros e a financeirização. O crescimento de fenômenos como a mercadoria conhecimento resgata a seção VI, desvelando coisas muito importantes que podemos utilizar para entender o capitalismo de hoje e os desafios abertos. Não tenho espaço aqui pra comentá-las, mas penso que a economia política, se quer de fato contribuir pra compreensão do mundo contemporâneo, tem que seguir por aí.
Vou parando por aqui. Teria ainda muita coisa a falar, por exemplo, de tudo que escrevi sobre nosso país e seu desenvolvimento neste século, sobre o Brasil Delivery (Boitempo, 2008), sobre governos de esquerda e políticas econômicas de direita, sobre artigos que discutem dialeticamente a natureza do processo de trabalho hoje, sobre o desenvolvimento da ciência econômica no Brasil e a originalíssima tese da inflação inercial, que não por acaso nasceu aqui, sobre neodesenvolvimentismo e o grande Celso Furtado, enfim, sobre muita coisa que talvez merecesse alguma menção.
Deixo apenas uma última observação. Penso que o conteúdo desta aula magna permitirá, no mínimo, altear a bandeira do pluralismo no ensino de Economia, absolutamente imprescindível neste momento. A universidade não é igreja, que divulga apenas determinado credo e cujas perorações se assentam numa bíblia. A universidade tem que ser o contrário disso, tem que ser plural. É obrigação da universidade apresentar aos alunos os vários paradigmas existentes, principalmente em se tratando de ciência em que a luta de paradigmas nunca deixou de existir, de ciência, sobretudo, que carrega tantas consequências sociais, as mais das vezes — trágicas.
Vivemos tempos apocalípticos, de enormes retrocessos, onde o saber e a pesquisa são atacados de todas as formas. Restringir o ensino a uma única visão, seja ela qual for, significa secundar o processo de devastação da vida no planeta.
[1] Versão modificada de Aula Magna do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) proferida em 9/10/2020.
Agradeço aos professores Fábio Terra, Fernanda Cardoso e Ramón Fernández o honroso convite. De dezembro de 2017 a novembro de 2019, fui pesquisadora e professora visitante junto ao Needs― Núcleo de Estudos Estratégicos em Democracia, Desenvolvimento e Sustentabilidade, da UFABC. No nome dos professores Olympio Barbanti Jr. e Gabriel Rossini, coordenadores do núcleo no tempo em que aí estive, aproveito igualmente para agradecer a generosa acolhida por parte de todos os colegas.
[2] POSSAS, M. L. A Cheia do Mainstream: comentário sobre os rumos da ciência econômica. Revista de Economia Contemporânea, volume 1, no 1, janeiro-junho 1997
[3] Fala do companheiro de Ricardo encontrada em: DAVIS, J. B. “David Ricardo”. In DAVIS, J. B., HANDS, D. W. e MÄKI, U.The Handbook of Economic Methodology, (eds). Cheltenham, UK, Edward Elgard Publishing Ltd, 1998, p. 423
[4]HAHN, F. Equilibrium and Macroeconomics. Oxford, Basil Blackwell, 1984, p. 309
[5] Trata-se do conhecido ensaio The Methodology of Positive Economics, publicado pela primeira vez em 1953.
[6] O episódio é relatado a Arjo Klamer pelo conhecido economista americano James Tobin em Conversas com Economistas, São Paulo, Edusp, 1988, p. 109-110
[7]Tais teses encontram-se em: SAYAD, J. Dinheiro, Dinheiro – Inflação, Crises Financeiras, Desemprego e Bancos. São Paulo, Portfolio Penguin, 2015. Utilizo, neste parágrafo, algumas reflexões que fiz na orelha do livro.
[8] Conferir entrevista do Prof. André Roncaglia da Unifesp ao Nassif: https://www.youtube.com/watch?v=H5e3Ec4Fseo&t=254s&ab_channel=TVGGN
[9] ANDRADE, R. de. “Friedrich A. Hayek: a contraposição liberal”. In CARNEIRO, R. (org.) Clássicos da Economia. São Paulo, Ática, volume 2, p. 177
[10] Modernidade e Discurso Econômico. São Paulo, Boitempo, 2005
[11] Para os não economistas: a microeconomia neoclássica trabalha a partir de variações incrementais nas variáveis. Assim, a satisfação (utilidade) que dá o primeiro chope é necessariamente maior do que a proporcionada pelo segundo, que, por sua vez, será maior do que a proporcionada pelo terceiro etc. Trata-se do princípio da utilidade marginal decrescente (cada unidade adicional de um bem agrega um quantum menor à utilidade que o agente já tem). É este princípio que está por trás da curva de demanda negativamente inclinada dos livros-textos. Em termos práticos, isso significa que cada agente está disposto a pagar mais pelas primeiras unidades de um bem do que pelas seguintes.
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O que é a ciência econômica? Artigo de Leda Paulani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU