16 Abril 2020
Como a riqueza financeira é serelepe e vive num ambiente que vem sendo há décadas construído a fim de lhe satisfazer o instinto predador em sua livre circulação, os mercados agem como crianças ricas que não podem e nem devem ser contrariadas, escreve Leda Maria Paulani, economista, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 15-04-2020.
A pandemia do coronavírus, com as duras exigências de isolamento social, provocou, dentre outros resultados, o fechamento das escolas. As consequências da medida para as relações familiares são complexas, com problemas de variada ordem. Para determinados segmentos da classe média brasileira, sobretudo nos estratos mais elevados, um dos desdobramentos mais visíveis é que pais por longo tempo desacostumados de filhos têm sido obrigados (é dura a vida) a conviver com eles 24 horas por dia, sete dias por semana, e por quanto tempo ainda nem Deus sabe.
Isso tudo sem as belas muletas de férias, com viagens, lugares lúdicos, inúmeras novidades e gentis organizadores (G.O.s) nos clubes Meds da vida. Não, nada disso. Trata-se agora da insossa vida cotidiana, na casa de sempre, com os problemas de sempre, sem passeios, sem amigos. Não por acaso a inédita situação vem sendo objeto sem fim de piadas e memes nas redes sociais.
Muitos vão descobrindo então como são mimadas essas crianças, como são de difícil trato, como são ranhetas. Os “mercados” (leia-se aqui fundamentalmente o mercado financeiro, ou a finança) são como essas crianças mimadas: ao menor sinal de contrariedade ameaçam com um estardalhaço de envergonhar qualquer pai ou com uma gritaria de enlouquecer qualquer mãe.
Num livro formidável, o economista grego Yannis Varoufakis, por curto tempo ministro das Finanças de um governo de esquerda em seu país, procede a uma descrição rica em detalhes de sua luta contra o establishment financeiro. No mundo pós-crise de 2008, ele buscava singelamente, qual Dom Quixote, fazer uma política econômica para 99% dos gregos e livrar o pequeno e histórico país da corrente de ferro de uma dívida que, ao fim e ao cabo, lhe fora imposta. Sintomaticamente, o nome do livro é Adultos na Sala (Adults in the Room, no título original em inglês; publicado no Brasil pela editora Autonomia Literária, em 2019).
O título alude a uma expressão utilizada por Christine Lagarde, à época diretora-geral do FMI, que, em meio a discussões estéreis, afirmou certa vez que a única forma de resolver o drama grego era ter uma conversa de gente grande, com adultos na sala. Como se estivesse dando um puxão de orelhas bem dado nos negociadores, representantes da finança, que se recusavam a entender os verdadeiros problemas daquele pequeno país da zona do euro, Lagarde chamou-os de crianças mimadas. O estratagema amiúde utilizado para repreender pequenos seres humanos mal-educados é dizer que não são mais crianças, que já são mocinhos, e que devem se comportar como tais. Christine inverteu o expediente: chamou de crianças ranhetas aqueles vetustos senhores, com suas expressões sisudas a tratar de assuntos tão complicados.
Mas esta teria sido toda a anedota se nosso autor tivesse conseguido seu intento. Ela não terminou aí, no entanto. O puxão de orelhas não era pra valer. Em outro episódio, sem ter mais o que dizer, em face dos argumentos absolutamente racionais e razoáveis levantados por Varoufakis, a mesma Lagarde, numa conversa privada, confessa a ele num arroubo de sinceridade: “Yannis, é claro que você está certo, é claro que você tem razão, mas nós já investimos muito nesse caminho dos resgates com austeridade e não temos como voltar atrás”… E não havia ninguém pra chamá-la de criança.
A triste história da Grécia, e das infrutíferas tentativas de resolver de modo não desumano a questão da dívida do país, é emblemática do comportamento dos mercados e de sua capacidade de chantagear a sociedade. Como a riqueza financeira é serelepe e vive num ambiente que vem sendo há décadas construído a fim de lhe satisfazer o instinto predador em sua livre circulação, os mercados agem como crianças ricas que não podem e nem devem ser contrariadas.
E quem diz isso não é a Leda Paulani economista marxista, esquerdista, esotérica e horoscopeira, segundo os desafetos. Quem diz isso é o arquiortodoxo mercadista hard Mansueto Almeida, este impagável secretário do Tesouro. Num evento virtual promovido por dois grandes jornais em 7 de abril, ele afirmou que estamos caminhando neste ano para um déficit primário em torno de R$ 450 a R$ 500 bilhões, frente a R$ 61 bilhões no ano passado. E completou: “Este ano isso é necessário, e a gente vai ter que aceitar isso de forma adulta”.
Ouviram, crianças? “de forma adulta”. Então calma, nada de jogar o prato no chão, nada de acionar o modo pânico porque o governo terá de pagar aos desvalidos meia dúzia de tostões pra ficarem em casa. Ah, e até o Henrique Meirelles concorda que está na hora de “imprimir dinheiro”! Comportem-se, pois. Passada a pandemia, poderão voltar a ser as crianças mimadas de sempre. Papai Mansueto estará lá pra garantir a má-criação.
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A pandemia, os mercados e as crianças na sala. Artigo de Leda Maria Paulani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU