28 Julho 2017
Economista, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP) e secretária Municipal de Planejamento na gestão de Fernando Haddad (PT), Leda Maria Paulani afirma que um dos grandes erros da esquerda em sua história foi ter menosprezado a importância da democracia, em especial em um país subdesenvolvido como o Brasil, no qual a elite carrega um caráter senhorial, como bem dizia Florestan Fernandes.
“No Brasil temos como tarefa primeira garantir que a democracia não seja completamente destruída (e está sendo). Quando não há democracia, quem mais sofre são as pessoas de esquerda e a população em geral. As elites se ajeitam com governos ditatoriais, eles sempre souberam se entender”, afirma.
Resultado desse pouco cuidado com o aprofundamento da democracia, segundo Leda, é a situação atual, em que as transformações importantes feitas pelos governos do PT no padrão social e na distribuição de renda não se mostraram sustentáveis. Faltou o maior enfrentamento do capital, das “exigências tirânicas da riqueza financeira”, enfatiza. “Eu sempre dizia, ao primeiro vento contrário que soprar isso pode desmoronar”.
No início de junho ela foi uma das convidadas para o 22º. Encontro Nacional de Economia Política (Enep), na Unicamp, promovido pela Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), a qual já presidiu, e falou sobre o papel dos movimentos sociais brasileiros, alguns deles respeitados no mundo inteiro, como o MST, para pressionar justamente no sentido de enraizamento dos valores democráticos e de pôr em xeque os limites da democracia representativa.
A entrevista é de Ana Paula Guidolin e publicada por Brasil Debate, 27-07-2017.
Eis a entrevista.
Atualmente existe uma crise do neoliberalismo, ou não? Estamos vendo reações muito extremas no mundo todo e não se sabe ao certo se essa é a indicação de uma transição para outro regime ou se é uma exacerbação do neoliberalismo. Como você enxerga esse processo?
Quando houve a crise de 2008 eu recebi muitos telefonemas de jornalistas me questionando se o neoliberalismo havia acabado. Eu disse que enquanto a riqueza financeira for mais alta que a riqueza real, o neoliberalismo permanece como discurso dominante. O discurso neoliberal tem uma prática associada, que é a prática, numa palavra, da redução de Estado. Além da desregulamentação e diminuição de intervenção estatal, esse processo passa por privatizações e cortes de gastos sociais. Reduzir o tamanho do Estado implica reduzir direitos trabalhistas. É evidente que essas quase quatro décadas foram entrecortadas por um número elevado de crises, o que é da natureza do capitalismo financeirizado e faz parte de sua lógica. A grande crise de 2008 explicitou as mazelas desse período neoliberal da história capitalista. Quando a crise veio à tona, houve consequências políticas.
Para dar um exemplo de como a crise desmascara o neoliberalismo, o professor Costas Lapavitsas (deputado grego eleito pelo Syriza) pondera com relação ao euro que a União Europeia, equivocadamente, passou a ser vista como uma coisa progressista e a esquerda, de forma geral, achou que isso era um sinal positivo de que a Europa estava unificada e que não poderia mais haver conflitos bélicos. Isso ficou tão forte que falar contra a UE faria qualquer um se passar por conservador ou reacionário. E agora, depois da crise, fica claro quais são os resultados dessa política e as consequências em termos de concentração de renda, exacerbação da concorrência, perda de direitos e a própria exacerbação de uma vida alucinada em que as pessoas vivem correndo etc.
O neoliberalismo foi uma ideologia muito poderosa e bem-sucedida, e esse sucesso ocorreu porque, com a ideia de preservação do indivíduo, as pautas das minorias ficaram claramente associadas à questão da globalização, preservação da liberdade individual, meritocracia e aí acaba desembocando na redução de Estado no outro lado. Para resumir, acho que é cedo para dizer que o neoliberalismo está em crise, mas a crise de 2008 e seus desdobramentos estão gerando reflexos concretos políticos agora. Existe uma chacoalhada que se expressa claramente nesses resultados políticos do Brexit, do Trump nos EUA e da ascensão da extrema direita na Europa. Mas não é claro ainda o que vem pela frente.
Acabamos de sair de um ciclo de governos progressistas no Brasil e atualmente a esquerda está um pouco desolada sobre qual rumo tomar. Qual seria a saída de forma a não só ficar na defensiva, mas tentar fazer uma proposta pela esquerda nesse cenário atual?
Eu acho que esses momentos de grande crise sempre são muito dolorosos, mas ao mesmo tempo de alguma forma se ganham mais graus de liberdade. Fica tudo tão em xeque, tão questionável, que pelo menos teoricamente existe a possibilidade de vários caminhos de saída e não apenas de um. Claro que podemos ir para o pior dos mundos com um outro tipo de ditadura, talvez até pior que a dos militares, ou podemos conseguir resgatar a democracia. Eu particularmente acho que um dos grandes erros da esquerda em sua história foi ter menosprezado a importância da democracia. No Brasil temos como tarefa primeira garantir que a democracia não seja completamente destruída (e está sendo).
Falo isso e outros também, como o professor André Singer, e às vezes criticam a ideia como “pequeno burguesa”, mas tem que tomar cuidado. Quando não há democracia quem mais sofre são as pessoas de esquerda e a população em geral. As elites se ajeitam com governos ditatoriais, eles sempre souberam se entender. Nós que não temos essa cultura, pelo menos não aqui no Brasil. Em outros momentos da história quando a esquerda esteve no poder e desprezou isso, depois pagou muito caro. A história cobra seu preço. Depois que fosse garantida a democracia no país, viriam os ensinamentos do passado.
O período de governo do PT mostrou que as transformações a serem feitas no país têm que ser sustentáveis ao longo do tempo. O que se obteve, que não foi desprezível, foi uma mudança grande no padrão social e na distribuição de renda, mas não foi sustentável. Eu sempre dizia, ao primeiro vento contrário que soprar isso pode desmoronar. Você dependia, por exemplo, do aumento real do salário mínimo e, se o Estado ficasse constrangido por qualquer razão, quem se beneficiava desse aumento, que são os beneficiários do INSS basicamente, iria sofrer.
Com um sistema democrático de fato teríamos que lutar por um governo com um verdadeiro enfrentamento ao capital. Os governos anteriores não enfrentaram e eu escrevi o livro “Brasil Delivery” por causa disso. Não se enfrentaram as exigências tirânicas da riqueza financeira. Como o Brasil crescia, os governos do PT, preocupados com a desigualdade, conseguiram ao mesmo tempo sem afetar essa estrutura macro que estava por trás, com interesses do grande capital, também promover a ascensão dos de baixo. Isso causou a revolta da classe média que ficou espremida, se vendo mais perto dos pobres que dos ricos. Essa situação toda dependia de uma conjuntura internacional favorável que nem sempre existiria.
Os limites de uma política de conciliação são muito reduzidos e por isso as conquistas alcançadas são muito precárias. Tenho a impressão de que esse radicalismo das políticas neoliberais que esse governo golpista está implementando não são da vontade da população, pesquisas mostraram que a esmagadora maioria está contrária à reforma trabalhista e da previdência. Isso deixa claro que existe espaço democrático para o retorno da esquerda. Por mais que agora tenhamos que valorizar o que os governos do PT conseguiram produzir de resultados, a esquerda não pode cometer o mesmo erro que já foi cometido.
Em relação à atual situação do Brasil, com esse governo ilegítimo e essas reformas, o que você acha da questão política, que, mais do que nunca, está misturada com a economia?
Vou falar de uma questão muito particular. É uma proposta que eu ouvi pela primeira vez do senador Roberto Requião, que seria de fazer um referendo revogatório considerando esse governo como ilegítimo e o que ocorreu como um golpe, revogando tudo que foi aprovado sobre sua égide. Esse processo passaria pelo próprio STF reconhecer seu papel nesse golpe, porque foi conivente e até pior, já que seu papel na história deveria ser de guardião último das instituições. O processo de impeachment pela sua flagrante ilegalidade deveria ser barrado no STF e não foi. Tudo foi muito diferente do caso do presidente Collor, lá não havia dúvidas, a legislação previa o impeachment, o vice entrou no lugar, acabou o mandato e outro presidente foi eleito, era outra situação. O caso da presidenta Dilma deixou claro que foi uma armação empurrada por vários interesses. Pela sua fragilidade política com um governo ruim e com o aprofundamento da crise, quem defendia esses interesses percebeu espaço para dar o golpe e tirar o PT do governo federal, o que era tentado desde 2005 e não se conseguiu pela via eleitoral.
É necessário revogar as reformas já aprovadas e barrar as que ainda não foram votadas. E não há espaço para argumentar utilizando o voto do congresso, por exemplo. O congresso foi conivente com esse governo pelas piores razões. A maior parte dos congressistas fazendo esses acordos com o governo está querendo ou levar uma ou se livrar da cadeia. Esse decreto seria a melhor solução. Porque, senão, um novo governo vai ter que lidar com essas reformas já consolidadas. Você vai ter que lidar com terceirização, desmonte da Petrobras (com a redução do conteúdo local como ficam as construções já feitas?), PEC dos gastos etc. Como um governo vai trabalhar com a PEC dos gastos? A crise internacional ainda não dá sinais de que vá arrefecer muito cedo. O referendo revogatório talvez seja uma boa solução, de outra maneira mesmo que se consiga reverter a situação atual e voltar à democracia, o golpe terá sido medianamente bem-sucedido, terá conseguido impor mudanças que depois vão ter consequências inegáveis ao longo do tempo.
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"A esquerda menosprezou a importância da democracia", diz Leda Paulani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU