Neoliberalismo e neokeynesianismo. Um círculo infernal cuja ruptura exige uma nova imaginação política. Entrevista especial com Bruno Cava

Lutar pelo retorno do modelo welfarista é saudosismo e representa o atraso. A nova luta deve ser pela Renda Básica Universal, diz o pesquisador

Foto: Rovena Rosa - Agência Brasil

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 19 Janeiro 2021

Enquanto 40 milhões de brasileiros encontram-se desempregados e as projeções para 2021 estimam que o número de novos miseráveis no país pode aumentar de 10 para 20 milhões somente neste ano, políticos e intelectuais associados à esquerda e à direita seguem se digladiando no debate sobre qual é o papel do Estado e do mercado no enfrentamento das crises econômica, social e sanitária que atingem o país. A resposta para esses problemas não está na livre atuação do mercado e na eficiência e tampouco está no Estado de bem-estar social fordista-keynesiano que entrou em crise nos anos 1970, porque "muitas propostas neokeynesianas não passam da vanguarda do atraso", alerta Bruno Cava, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

 

Crítico da "dicotomia infernal entre neoliberalismo e neokeynesianismo" e desafiado a pensar "algo novo, com uma nova concepção de Estado e mercado", Cava assegura que o desafio do século XXI é o da "imaginação política", ou seja, propor o “commonfare, ou Comum”, a partir da instituição de uma Renda Básica Universal. "Falta a imaginação política para ir além do mero reflexo defensivo, de pesquisas reativas que se limitem a diagnosticar um inimigo todo-poderoso que nos ameaça por isso ou aquilo. Na Renda Universal está embutido não somente um outro conceito de dinheiro, o que chamamos de biomoeda, como também uma plataforma para a potenciação das demais lutas. Assim como a política de Pontos de Cultura, poderíamos pensar um ecossistema irrigado por transferências diretas de democratização radical: Pontos de Saúde do Comum, Pontos de Ecologia, Pontos de Mídia Livre, Pontos de Ação Cidadã e assim por diante. Conjugando a transferência de renda à institucionalização de círculos multiníveis de participação direta daqueles que produzem a própria vida social", afirma.

 

Em A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança (Rio de Janeiro: MAUAD X, 2020), publicado recentemente em conjunto com Giuseppe Cocco, Cava reflete sobre os problemas monetários do nosso tempo e propõe uma alternativa às teorias que encerram o dinheiro estritamente ao mercado e ao Estado.

Na entrevista a seguir, ele comenta o livro em perspectiva com a crise atual e chama a atenção para os efeitos gerados pela distribuição de renda durante a pandemia. "Vivenciou-se em vários países do mundo um programa de renda básica existencial que teve efeitos em múltiplas dimensões: mitigou a miséria e a pobreza, estabilizou a demanda ao sustentar o consumo e sustentou o nível de atividade econômica dentro de um mínimo estrutural, além de ter atuado como variável de estabilização política. (...) O debate sobre a natureza do dinheiro se tornou nevrálgico em nossa atualidade tão intensa de questões, ganhando espessura conceitual e penetração na arena pública. O nosso livro, sem querer, acabou se inscrevendo num instante chave", diz.

 

Bruno Cava (Foto: Cristina Guerini | IHU)

Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e online, por meio do canal Horazul (Youtube). Autor de vários livros, além do livro A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança (Rio de Janeiro: MAUAD X, 2020), também publicou, entre outros, A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013) e, com Alexandre Mendes, A constituição do comum (2017).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Diante de uma conjuntura de recorrentes crises econômicas e financeiras, qual a importância de se refletir sobre a moeda, tema do seu novo livro, A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança?

Bruno Cava - Há um ano, seria inimaginável a proliferação de auxílios de renda como ocorreu ao longo da pandemia. Governos que há poucos meses tinham como principal pauta a imposição de medidas de austeridade, redução do deficit spending e tetos de gastos públicos, abriram a torneira do orçamento e emitiram um grande volume de dinheiro para os repasses emergenciais diretos às populações.

No Brasil, um governo cujo ministro da economia é da Escola de Chicago foi capaz de promover o maior programa de transferência de renda de todos os tempos, já que o auxílio emergencial superou em recursos e número de atendidos o Programa Bolsa Família. Vivenciou-se em vários países do mundo um programa de renda básica existencial que teve efeitos em múltiplas dimensões: mitigou a miséria e a pobreza, estabilizou a demanda ao sustentar o consumo e sustentou o nível de atividade econômica dentro de um mínimo estrutural, além de ter atuado como variável de estabilização política.

Nesse cenário, uma série de discussões voltaram ao primeiro plano: Renda Universal, Quantitative Easing para o Povo (QEP, uma proposta de Jeremy Corbyn), dinheiro de helicóptero (Milton Friedman), Moderna Teoria Monetária - MMT, além do acirramento das polarizações entre keynesianos e fiscalistas sobre o papel do Estado na promoção do desenvolvimento social e econômico num país tão desigual. O debate sobre a natureza do dinheiro se tornou nevrálgico em nossa atualidade tão intensa de questões, ganhando espessura conceitual e penetração na arena pública. O nosso livro, sem querer, acabou se inscrevendo num instante chave.

 

 

IHU On-Line - No livro, o senhor menciona que para se ter uma melhor compreensão do conceito de dinheiro, é necessário considerar os vários campos do conhecimento, como sociologia, antropologia, teoria da literatura, cinema e comunicação, e não somente história econômica, economia política ou filosofia da economia. Como essas últimas áreas limitam nosso entendimento do conceito e como as primeiras ampliam essa noção?

Bruno Cava - No seu tratado sobre a história do pensamento econômico, J. Schumpeter comenta como as teorias da moeda precedem e excedem o que, na modernidade, ficou circunscrito como o campo epistêmico da ciência econômica. De fato, a ciência monetária nasceu antes da economia política moderna e já envolvia debates densos desde pelo menos o Quinhentos europeu. No livro, abordamos en passant algumas escolas de pensamento monetário, como os salmaticenses e os florentinos. Na Espanha do século de ouro, o tema da moeda era preocupação central dos teólogos neotomistas contrarreformistas, com destaque para os trabalhos de Martín de Azpilcueta (1491-1586), o "Doctor Navarrus", que defendia a moeda-crédito contra as proibições da Igreja ao que entendia ser agiotagem (na bula ‘In eam pro nostro’, o Papa Pio V condenou a prática das letras de crédito como um todo, por incidirem no pecado da usura). Jean Bodin, o teórico do princípio uno da soberania, escreveu uma obra sobre inflação e moeda, em 1558, antecipando a Teoria Quantitativa (que seria formulada apenas séculos mais tarde, por John Locke e David Hume) e também podemos encontrar no Leviatã (1651), de Hobbes, um trecho em que descreve o funcionamento do dinheiro como fluxo, por meio da metáfora da circulação do sangue. Compreender o dinheiro é um poderoso tônico do pensamento.

O dinheiro tem essa qualidade ímpar de ser intuitivo e simples de entender no seu uso, mas ao mesmo tempo vertiginosamente complexo quando da tentativa de abarcá-lo por meio de um conceito. Daí inspirar tantas elaborações vindas dos mais diversos campos de conhecimento: a dimensão das trocas em Mauss ou Lévi-Strauss, da dádiva e do dispêndio em Bataille, a filosofia do dinheiro de Georg Simmel, a imagem-dinheiro em Gilles Deleuze, as reflexões sobre a moeda falsa em Charles Baudelaire, Jacques Derrida ou Jean-Joseph Goux, a crítica da estrutura fetichista da sociedade capitalista no marxismo e assim por diante. Giuseppe e eu tentamos fazer jus a esse pluralismo de abordagens para abrir os caminhos ao pensamento, num trabalho preparatório.

 

 

IHU On-Line - Quais são os principais clichês e confusões entre aqueles que fazem críticas ao mundo financeiro e ao dinheiro?

Bruno Cava - Tomando um horizonte de longa duração, identificamos dois polos-tendências do debate geral ao redor da moeda, os mercadocêntricos e os estadocêntricos ou cartalistas. A primeira é o que pensa o dinheiro como criatura do Mercado, como resultante da necessidade de desenvolver as trocas entre os seres humanos. Uma formulação clássica dessa teoria genética que vai do escambo ao papel-moeda está no livro Sobre as origens do dinheiro (1886), de Carl Menger, o fundador da Escola Austríaca de Economia. A segunda se opõe a isto, pois considera o dinheiro como criatura do Estado. Uma obra seminal dos cartalistas é A teoria estatal do dinheiro (1905), mais ligado ao historicismo alemão e cuja última dentição é a MMT.

No livro que publicamos, explicamos como ambas as tendências têm um momento de verdade, quer histórico, quer teórico, na medida em que o dinheiro é um fenômeno complexo e não admite um desdobramento linear desde um ponto único de origem (o que Nietzsche chamaria de lógica da Wunder-Ursprung, que busca metafisicamente a alta essência da coisa em si na fonte miraculosa). Contudo, em vez de tentar deslindar como Estado e mercado gerariam o dinheiro, colocamos o problema de outro modo: como as transformações do modo operativo do dinheiro transformam os conceitos de Estado e mercado, e a própria relação de interpenetração dinâmica entre Estado e mercado, pois Estado e mercado também são entes históricos contingentes em constante variação entre si. Para isso, numa primeira parte, o livro faz um sobrevoo sobre a história da remonetização europeia desde o século X até a Segunda Revolução Industrial (séc. XIX); e, na segunda parte, apresentamos um panorama lateralizado de contribuições vindas da teoria da literatura, cinema, filosofia e antropologia.

 

Clichês

Os clichês e caricaturas geralmente decorrem da absolutização de um polo-tendência. Então haverá quem considera o mercado uma ilusão provocada pela deificação das trocas, quando na verdade o que rege o comércio e a produção são dinâmicas de poder, que é a caricatura antimercadocêntrica; e quem considera o Estado apenas uma fachada para a defesa de interesses privados e, nesse sentido, um modo ilegítimo de alavancar a própria posição competitiva no mercado, que é a caricatura antiestadocêntrica. Em A vida da moeda, driblamos desses dois reducionismos, fazendo-lhes a crítica, ao costurar os polos-tendências numa tapeçaria histórica e conceitual.

 

 

IHU On-Line - Por outro lado, quais são suas críticas à cisão que alguns teóricos fazem entre dinheiro e produção, ou economia real e economia fictícia, referindo-se ao mundo produtivo e ao financeiro? Quais os problemas desse tipo de leitura geral?

Bruno Cava - A base conceitual dessa divisão entre real/fictício está no romantismo alemão, cuja figura filosófica de proa foi Hegel, na passagem do século XVIII para o XIX. Até esse período, tentava-se lastrear o dinheiro em entidades materiais: os renascentistas o faziam no metal precioso, os mercantilistas no comércio internacional e os fisiocratas na produtividade natural da terra. A passagem ao século hegeliano leva à dinamização do lastro de uma substância física em atividade imaterial constituinte, ou seja, nasce o conceito do trabalho, a objetividade captada em processo, na marcha de suas determinações. E o trabalho está sempre referido à finitude do ser humano, pois o corpo é limitado, tem um limite de desgaste, uma vida finita, um consumo de energia que, no tempo, o devora e destrói. Isto conduz ao pessimismo dos economistas políticos, pois transpõem a finitude inerente do trabalho ao limite histórico do desenvolvimento produtivo dos recursos: as armadilhas do equilíbrio de Adam Smith, o horizonte de estagnação terminal de David Ricardo, a catástrofe demográfica de Thomas Malthus e, também, a crise inexorável e a catástrofe do capitalismo, para Karl Marx.

A consequência lógica no conceito do dinheiro é atribuir uma medida de correspondência real ao dinheiro. Quando o dinheiro corresponde à medida da atividade produtiva, ou seja, à possibilidade de mobilizar uma capacidade ociosa, ele é benéfico à economia real. Quando, no entanto, há mais dinheiro do que produção possível, então o dinheiro gira em falso, levando à depreciação da moeda. Disto decorre uma separação entre finanças boas e finanças ruins: as primeiras são adequadas para o potencial de mobilização produtiva em dado estágio do desenvolvimento das forças produtivas; as segundas são excessivas e acabam caindo no cassino da especulação e do capital fictício dos rentistas parasitários.

A culminância lapidar desse esquema está na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1936), de J.M. Keynes. Para salvar o capitalismo em crise, Keynes defende como resposta aos dilemas a reorganização de um Estado capaz de incentivar e coordenar a produção, por meio da promoção da demanda agregada, de maneira a provocar sistemicamente a "eutanásia do rentier". Repare como o dinheiro é uma variável subordinada e dependente da produção e do trabalho/emprego, como ferramenta para combater as crises do capitalismo.

No livro, sobretudo apoiados nas obras de Jean-Joseph Goux, mostramos como há uma virada pós-hegeliana da economia dos signos, ao longo da década de 1870, que já antecipa o que ficou conhecido como "pós-modernidade" e que traçamos em múltiplos fronts paralelos: na revolução marginalista da ciência econômica, no movimento impressionista na pintura, nas inovações formais do romance realista, assim como no martelo filosófico de Friedrich Nietzsche. Depois dessa revolução, há uma novíssima objetividade dada pela intensidade do desejo, o que desindexa o dinheiro da produção e curto-circuita a tentativa de ancorar as finanças e o dinheiro na produção e na indústria. Compreendemos que é assim que o modo capitalista funcionou por todo o século XX e XXI: Keynes apenas tentava salvar o insalvável e as reformas de cunho keynesiano tiveram e tendem a ter vida curta.

 

 

IHU On-Line - Por que o dinheiro foi visto como o grande vilão das relações humanas e por que, na sua avaliação, essa compreensão é equivocada? Qual é a centralidade das teorias de Marx para que esta visão acerca do dinheiro se proliferasse?

Bruno Cava - Dos textos de Marx é possível depreender dois conceitos completamente distintos sobre o dinheiro. Vou abordar na resposta apenas o primeiro conceito, pois é o que consta na obra mais vastamente recepcionada, Das Kapital, e porque as teorias críticas marxistas adotam-no como pressuposto fundamental. Estou falando da crítica ao fetichismo da mercadoria que Marx empreende nos ultraestudados três primeiros capítulos da Parte I do Capital. O dinheiro aparece ali como momento indispensável da constituição do processo do capital, porque o capital precisa comensurar o valor das coisas e o valor do trabalho. Isto é, para constituir uma sociedade guiada pela produção da mercadoria, é necessário que o trabalho humano também seja encapsulado como mercadoria.

A antropologia eurocêntrica novecentista atribuía o primitivismo aos povos não ocidentais por idolatrarem objetos. De maneira irônica, Marx quer mostrar como os civilizados ocidentais têm o seu próprio fetiche: a idolatria do dinheiro. Atribuímos um quantum de dinheiro a produtos e ao trabalho como se fosse uma propriedade mágica acrescida ao uso concreto da coisa. Isto não é uma ilusão senão na medida em que é uma ilusão objetiva (ideologia), pois há um dinamismo em processo que se manifesta concretamente nas relações entre as pessoas.

Marx vai elaborar o dinheiro não apenas como equivalente geral de comensuração dos produtos do trabalho, como também como alavanca para deflagrar o trabalho, na forma do investimento em capital. Com a formação da sociedade capitalista, o dinheiro devém capital, adquirindo uma função que não tinha, ou seja, a de impelir a contradição para frente. Por isso, Marx atrela a forma do dinheiro à forma do capital e, nesse sentido, a face do dinheiro será sempre a do patrão. Mas não o patrão personalizado que se opõe ao servo do exterior.

A conversão da relação direta de mando em relação indireta do salário interioriza a figura do patrão, para dentro da relação social de trabalho. Noutras palavras, para Marx, a peripécia dialética é que o dinheiro permite que a subordinação ao patrão seja vivida como liberdade de trabalho, pois nos esquecemos do momento de exploração que está contido na totalidade das relações capitalistas. Eis a exploração, uma relação impessoal, estrutural e vivida como autonomia individual (em inglês, a palavra 'free' guarda a ambiguidade: trabalho livre ou grátis). Para Marx, o dinheiro é funcional para formar a estrutura fetichista da sociedade capitalista.

Um pensador da Escola de Frankfurt, Alfred Sohn-Rethel (1899-1990), leva a crítica do fetichismo mais adiante para nele identificar uma estrutura do próprio pensamento. Na medida em que agimos socialmente como se as coisas fossem dotadas de uma propriedade mágica, nossa ação social realiza na prática essa propriedade, dotando-a ipso facto de uma concretude. Sohn-Rethel então explica como o próprio pensamento implicado nas relações sociais capitalistas contém uma verdade processual. O dinheiro-capital altera a própria forma de pensar no ocidente, mesmo que de maneira não consciente.

Em A vida da moeda, entendemos que, metodologicamente, um grande passo foi dado por Marx e a Escola de Frankfurt. Consiste em formular não ainda outra reflexão sobre a moeda, como um objeto exterior ao sujeito que pensa, mas como a moeda condiciona a própria matriz das reflexões, com um vínculo interno entre pensamento e moeda. A nossa diferença é que, ao invés de uma evolução histórica irreversível que torna o dinheiro um momento da constituição progressiva da exploração em nível mundial (do metabolismo do mercado global), enxergamos que o dinheiro não está totalmente enjaulado na forma dialética do capital.

Para isso, voltamos a um texto enigmático de Pierre Klossowski de 1970 (A moeda viva, prefaciado laudatoriamente por Foucault e marco teórico do dito pós-estruturalismo francês), para problematizar o conceito de fetiche e identificar um processo desejante que excede as capturas dialético-capitalistas. Queremos abrir uma linha de fuga de maneira que o dinheiro não seja exclusivamente reduzido a uma criatura do capitalismo fetichista, que a moeda não tenha simplesmente a face do patrão. Este é apenas um lado da história.

 

 

IHU On-Line - No livro, o senhor diz que com a virada afetiva, cognitiva, midiática do capitalismo, o dinheiro não é mais mediação alienadora das relações entre seres humanos, mas, os corpos, por sua vez, se tornaram imediatamente dinheiro. Pode explicar como se deu esse processo?

Bruno Cava - Em A moeda viva, Klossowski pede ao leitor que faça um exercício mental. Aparentemente, o que se segue estaria enquadrado no gênero da literatura utópica, segundo a tradição dos literatos libertinos de países católicos do século XVIII. O exercício é imaginar uma sociedade em que, como meio de pagamento, as pessoas tivessem direito direto ao uso do corpo das outras. O feixe de afetos que constitui o corpo serviria como moeda. Quer dizer, estaria dispensada a mediação do dinheiro que interpõe o momento de autonomia da vontade com relação ao próprio corpo, conforme o princípio da sociedade moderna de que somos livres para conceder ou negar o acesso alheio a nosso próprio corpo. Klossowski a seguir avisa ao leitor que isto já está acontecendo e que o exercício é realista. Mas como assim?! É que, com a virada afetiva do capitalismo, nossas qualidades relacionais, afetivas, cognitivas estão cada vez mais implicadas no processo de valorização.

No final dos anos 1960, percebe-se a ascensão da cultura das celebridades, a valorização do corpo na publicidade, e a mudança da centralidade do trabalho material marcado pelo resultado objetivo produzido (fordismo), para o trabalho imaterial em que predomina a imagem, o estilo, o cuidado, o valor afetivo (pós-fordismo). Já estamos vendendo os nossos corpos se pensarmos como nossas qualidades personalíssimas e capacidades semiocorporais são a base da valorização do trabalho no mercado. As vidas estão se tornando “instagramáveis”, colocando nosso corpo-imagem-cérebro como principal ativo. Essa é uma tendência que já aparece na literatura filosófica na França dos anos 1970, a partir da obra de Klossowski, por exemplo, no Anti-Édipo (1972), de G. Deleuze e Felix Guattari.

Isto leva igualmente a uma mutação da natureza do dinheiro. Se ele deixa de ser mediação para a troca da liberdade sobre o corpo para um investimento direto do corpo no processo do capital, então a reapropriação do dinheiro também não deixa de ser reapropriação do próprio corpo, desenganchando-o das dinâmicas de captura. O antagonismo deixa de ser elaborado como uma luta extrínseca entre corpo do trabalhador e corpo do patrão, pois fomos produzidos enquanto corpos (feixes de afetos) já dentro da máquina capitalista. A disputa então submerge no próprio corpo, intrinsecamente, como libertação da tendência de captura. Um dos mais brilhantes trabalhos teóricos que aborda essa questão, afinado com as reflexões de Klossowski até certo ponto, pode ser encontrado em Paul Preciado. Num outro tom, por assim dizer pessimista, também na obra de Franco Berardi.

 

 

IHU On-Line - O senhor também afirma que a compreensão do funcionamento do dinheiro “é uma tarefa preparatória incontornável para quem deseja pensar os problemas de nosso tempo e formular propostas para urgências sociais e econômicas que nos afligem”. Pode explicar essa ideia? Em que consiste essa compreensão e de que modo ela possibilita a formulação de propostas para os problemas da nossa época?

Bruno Cava - Toda vez que se discute uma política, a primeira objeção é: quem vai pagar por isto? De onde vem o dinheiro? Poderíamos replicar: de onde veio o dinheiro do auxílio emergencial no Brasil? E os empréstimos do banco? O banco tem todo aquele dinheiro oferecido como crédito numa caixa forte, como o Tio Patinhas? Outra questão importante: o dinheiro vai para onde? Digamos, a pessoa recebe uma transferência direta e usa o dinheiro. Ora, ele continua circulando. O dinheiro é uma circulação permanente, muito mais um fluxo do que um estoque. A ideia de massa monetária não passa de um recorte estático de um filme, que é a torrente ininterrupta monetária que constitui o sistema internacional.

Como no filme "Cosmópolis" (2014), de D. Cronenberg: a tela verde com as cotações da Bolsa não para um segundo, elas vão fluindo, escoando, como a limusine do personagem principal pela azáfama da cidade. O médico e teólogo Miguel Servet descreveu pela primeira vez a circulação do sangue, a diferença de sangue arterial e venoso e a troca do oxigênio, e por isso foi perseguido por católicos e protestantes até ser executado na Genebra calvinista, em 1556. Thomas Hobbes explica o funcionamento do dinheiro fazendo uma analogia com a teoria de Servet: o dinheiro é o sangue e algo acontece no interior dele, que o carrega ou o descarrega de um surplus.

No livro, Giuseppe Cocco e eu aproveitamos desse entendimento hobbesiano, pois o dinheiro é inextricável do vivente, assim como o oxigênio do sangue. É a intensidade desejante que carrega o dinheiro de um excedente e o faz animar o corpo. As trocas energéticas de oxigênio se dão entre as singularidades, como redes colaborativas de produção biopolítica. Por isso, a nossa defesa enfática de programas de transferência de renda. Eles oxigenam os tecidos sociais da multidão, levando a efeitos multiplicadores de mais-valor de fluxo. Nisso, divergimos tanto dos que entendem que é o Estado quem bombeia o sangue (cartalistas, MMT) quanto dos que o veem brotar espontaneamente de um espaço bem desenhado da concorrência (neoliberais). O dinheiro vivo, arterial, resulta do efeito molecular dos pulmões da multidão, para prolongar a analogia com a obra do aragonês imolado.

 

 

IHU On-Line - O senhor também menciona que “a crítica ao neoliberalismo e às políticas de austeridade ou ajustes estruturais alcança o seu limite no interior de sua própria perspectiva, como um problema interno à própria percepção. A economia neoliberal é criticada em nome da economia pré-neoliberal, cuja crise foi o que impeliu a situação às dores e conflitos da reestruturação, de onde brotou, em seu processo histórico, o marco macroeconômico atual”. Onde residem os limites da crítica ao neoliberalismo e às lógicas de austeridade e ajustes fiscais? O que as atuais críticas a essas lógicas revelam?

Bruno Cava - Como o Giuseppe Coccopontuou numa entrevista recente à IHU On-Line, é porque, em termos de macroeconomia, o que se passa hoje como progressista e de esquerda coincide com o que era prática hegemônica durante o período do governo Nixon, no começo dos anos 1970, quando ele falou a famosa frase que "agora somos todos keynesianos". A proposta de readequar o papel do Estado à condição de provedor dos serviços públicos, saúde e educação gratuita e de qualidade é a promessa do welfare state fordista-keynesiano que entrou em crise em meados daquela década.

O que se passa por progressista, na verdade, é um recuo a um período anterior e, nesse sentido, muitas propostas neokeynesianas não passam da vanguarda do atraso. Como se a debacle das instituições do Estado de bem-estar social tivesse sido dissolvida simplesmente pela ação do capitalismo, como uma vitória triunfante do capital sobre a classe. Caberia então se entrincheirar nos últimos bastiões do modelo welfarista e, concomitantemente, lutar pelo seu retorno. É a posição saudosista de um David Harvey.

O problema do welfare state é o state, o "Estado". A formação histórica do Estado durante o período dos trinta gloriosos no Norte foi a de um Estado-Plano, que planificava a mobilização e conscrição do trabalho coletivo em massa. É o período da grande indústria subsidiada pela política pública, como motriz da inserção nacional na globalização do capitalismo fordista. Grandes unidades produtivas concentracionárias de força de trabalho. Foi essa organização que propiciou o alargamento produtivo até o consumo em massa e a generalização dos serviços para a classe trabalhadora, no Norte Global, no período que ficou conhecido como Trinta Gloriosos do capitalismo. Só que esse período dourado tem um lado obscuro, que é a formatação disciplinar da vida, o rebaixamento sistemático das minorias e o pacto neocolonial que fazia dos países não-alinhados na Guerra Fria a depósitos de mão de obra barata e recursos naturais para o desenvolvimento dos centros dinâmicos da economia mundial.

 

 

O ciclo de lutas de 1968, esse longo arco de ebulição geral dos povos, foi, por conseguinte, antidisciplinar, antifabril, minoritário e anticolonial. Essa retomada de iniciativa da classe, por outros meios, noutros termos, afirmou sua autonomia em relação à grande unidade disciplinar dos trabalhadores: o sindicato, o partido operário, a fábrica de produção em massa, os subúrbios residenciais etc. O Estado-Plano é esgarçado pelas lutas a uma situação terminal, o que se resolve na virada para a década de 1980 com a reestruturação neoliberal, monetarista e fiscalista.

O problema de combater teórica e politicamente a austerocracia predominante com o welfare state é triplo. Primeiro, por não levar em conta como o Estado de bem-estar social foi objeto de contestação durante décadas de lutas em múltiplos fronts. Segundo, por não considerar a impraticabilidade de retornar ao mundo fordista, quando o circuito de valorização mudou de cima abaixo, na economia do conhecimento, na lógica imaterial, cognitiva e afetiva que produz tecnologias, estilos de vida e mundos imagéticos. Terceiro, por não levar em conta o fato que o neoliberalismo se consolidou sobre a fraqueza das respostas fordista-keynesianas para lidar com o mundo pós-68, de maneira que é simplesmente ineficaz retorquir ao neoliberalismo exatamente aquilo que ele aprendeu bem a desativar e superar. É preciso algo novo, com uma nova concepção de Estado e mercado. É nesse desafio da imaginação política implicada nos movimentos que o campo operaísta contemporâneo (a que Giuseppe e eu nos associamos teoricamente) vem propondo o commonfare, ou Comum. Como uma superação do próprio ideal Estado-welfarista, muito embora, no complexo de fatos, ele já não exista mais.

 

 

IHU On-Line - O senhor também afirma que “o que na época de Nixon era o discurso do capital, hoje, meio século depois, se apresenta no debate público com ares de crítica radical. O pior não é a ironia dessa constatação, mas o fato que, com isso, a crítica não chega a resvalar nos problemas econômicos e monetários de 2020”. Quais são os problemas econômicos e monetários do nosso século?

Bruno Cava - Durante seu governo nos EUA (1969-74), no final dos Trinta Gloriosos, o republicano conservador Richard Nixon se declarou intervencionista em matéria de economia. Atribuem-lhe a frase "Somos todos keynesianos agora". Keynes tinha uma perspicácia extraordinária e, defrontado com a crise da economia global de 1929, percebeu como havia um problema sério com o liberalismo clássico do laissez-faire. Haveria uma tendência estagnacionista interna ao funcionamento do capitalismo, ligada ao fato que a concorrência dava lugar ao investimento seguro em renda. A taxa de retorno decaía e isso levava a uma espiral recessiva, provocando desemprego e crise social. Nesse aspecto, Keynes é um liberal como Smith ou Ricardo, que percebe como o mercado capitalista largado a sua própria sorte não conduz à otimização automática, mas à concorrência disruptiva ou à estagnação. Sua proposta é simples: é preciso um agente externo, um poder econômico moderador, que possa intervir para assegurar a vantagem de investir e tomar a iniciativa.

Daí o dinheiro ser um instrumento de promoção do investimento e do consumo, para mobilizar a riqueza, não permitir que seja depositada num rentismo tão seguro quanto imobilista da economia. O Estado keynesiano é um Estado que pisa no acelerador para subir ladeira e no freio para descer, calibrando o nível de investimento público na medida do necessário para aumentar ou reduzir a demanda. Tem-se assim uma concepção de planejamento econômico baseado em agentes públicos dissociados da lógica do mercado, numa regulação forte do mercado.

Sempre que sucedem crises econômicas, como nos anos 70 (crise do fordismo), de 2008-10 (subprimes e dívida soberana europeia) ou 2020 (pandemia de covid-19), os governantes se veem na contingência de apelar a receituários keynesianos para conter a espiral recessiva e reativar a demanda declinante. Isso é o a-b-c macroeconômico que qualquer governo, de esquerda ou direita, não hesitará em adotar para buscar renormalizar o funcionamento da economia. Como essas propostas keynesianas voltadas a salvar o capitalismo de sua crise podem ter assumido ares de subversão e crítica radical é um grande enigma para nós.

Discutimos isso no livro anterior, O enigma do disforme (2018) e, com mais vagar, em New Neoliberalism and the Other (2018), em que atribuímos esse fenômeno ao fato de existir uma dissociação estanque entre neoliberalismo e neokeynesianismo, como se fossem dois gigantes em confronto perpétuo. Naquele livro, desenvolvemos como não há contradição entre neoliberalismo e as teorias de Keynes. Muito pelo contrário, apesar de Keynes ser a nêmesis declarada dos autores neoliberais, não é possível pensar a economia global sem compreender o reposicionamento estratégico dos Estados, a serviço das dinâmicas de globalização polarizadas pelos Estados Unidos e a China. Esta não é o outro do que seria um neoliberalismo tout court ocidental, mas seu pressuposto metabólico, desde pelo menos a costura da aliança sino-americana que Nixon começou a tecer com Mao Tsé-Tung. Os problemas monetários deste século residem na dificuldade em sair dessa dicotomia infernal entre neoliberalismo e neokeynesianismo, para libertar a dinâmica biopolítica do dinheiro (Moeda Viva) da dupla captura de mercado e Estado. Pudemos apenas esboçar linhas gerais, mas confluímos num programa dos programas, que é a Renda Universal.

 

 

IHU On-Line - Quais os desafios para reverter os problemas monetários do nosso tempo em saídas que assegurem políticas de bem-estar social, como uma renda básica universal, por exemplo?

Bruno Cava - Há uma discussão profunda e completa para um projeto de reforma tributária, previdenciária e administrativa do Estado brasileiro, segundo várias colorações político-ideológicas. Esses debates são relevantes no âmbito especializado e na academia. Contudo, o que realmente pode provocar a mudança são lutas que conduzam as instituições a mudarem. A democracia não se realiza sem mobilização social, com diferentes níveis de organização e produção coletivas de ferramentas, conteúdos e mídias. Lamentavelmente, depois de um período de grande agitação durante o ciclo das primaveras árabes, as esquerdas mais globalistas e arejadas parecem ter se entrincheirado junto com os partidos e mandatários do velho progressismo, acuadas diante do que seria uma onda bárbara. Enquanto isso, as novas direitas transitam nos grandes abertos, usufruindo da agitação social que continua bastante intensa no Brasil e além.

 

 

Imaginação política

Falta a imaginação política para ir além do mero reflexo defensivo, de pesquisas reativas que se limitem a diagnosticar um inimigo todo-poderoso que nos ameaça por isso ou aquilo. Na Renda Universal está embutido não somente um outro conceito de dinheiro, o que chamamos de biomoeda, como também uma plataforma para a potenciação das demais lutas. Assim como a política de Pontos de Cultura, poderíamos pensar um ecossistema irrigado por transferências diretas de democratização radical: Pontos de Saúde do Comum, Pontos de Ecologia, Pontos de Mídia Livre, Pontos de Ação Cidadã e assim por diante. Conjugando a transferência de renda à institucionalização de círculos multiníveis de participação direta daqueles que produzem a própria vida social.

Alexandre Fabiano Mendes, em suas pesquisas, têm desenvolvido como há três ondas de democratização institucional à luz das mutações do mundo do trabalho.

A primeira é aquela assistencialista, em que a cidadania está atrelada ao consumo e à recepção de bens e serviços ofertados.

A segunda é participativa, que viveu seu momento áureo durante algumas gestões municipais na virada para os anos 1990, e que implica a parceria entre o Estado e a sociedade civil organizada.

A terceira é o Comum, uma democracia constituinte onde o Estado se dissolve na rede de singularidades, em movimentos que produzem instituições do comum. Esse horizonte de que as formas de vida já estão grávidas (o sujeito histórico implicado nas primaveras é a multidão, que o capitalismo cognitivo explora), depende dessa capacidade de pôr em movimento a imaginação para além dos debates especializados, como uma reorganização desde os territórios e redes.

Experiências desse tipo, ainda incipientes, foram colocadas em prática por laboratórios do Comum durante o longo Junho brasileiro, podendo destacar o caso do ecossistema ativista na metrópole de Belo Horizonte. A luta pela Renda Universal, programa de programas, tem esse potencial de universalizar no concreto as mais diferentes lutas dentro do paradigma da democracia constituinte, alcançando a "terceira margem" de Alexandre F. Mendes, à altura do que podemos sonhar e realizar.

 

 

IHU On-Line - A emissão de moeda é vista por governantes e alguns economistas como um risco de alimentar a inflação. O senhor concorda? Quais os prós e contras em se emitir moeda no atual contexto?

Bruno Cava - Existe o risco de inflação sempre que se emite moeda sem confiança. O erro está na fonte da confiança. Os neoliberais atrelam a confiança à ideia de credibilidade nacional dada pela adoção de medidas de austeridade. Quanto mais o governo for capaz de reduzir o déficit público e desonerar a carga tributária, mais confiável ele será a instituições desenhadas pelo neoliberalismo, como o Fundo Monetário Internacional - FMI ou a Troica europeia. Já os cartalistas, embora rechacem o conceito de confiança como metafísico, mesmo assim assumem um conceito de credibilidade, pois entendem que quanto mais forte o país, mais ele pode emitir crédito. Poder-se-ia emitir moeda até o ponto de alcançar a capacidade produtiva ociosa do país, gerando emprego, mobilizando a força de trabalho e a indústria que, de outra forma, estariam empacadas por falta de investimento. O lastro da moeda, nesse caso, é o potencial represado da produção e do trabalho.

Os economistas da MMT coligam o deficit spending à promoção do emprego, ou seja, a variável de estabilização macroeconômica não é a inflação, mas sim o nível de ocupação da população economicamente ativa. Deve-se investir em projetos do governo para gerar emprego até o ponto de zerar a desocupação, aí sim, a inflação se tornaria preocupante. E mais: o que controla a inflação, para os MMTistas, é a tributação, pois os impostos tiram o dinheiro em excesso de circulação, e não os cortes orçamentários. No diagnóstico deles, haveria um grande espaço fiscal a ser explorado que somente não o é porque há interesse dos rentistas em manter o dinheiro imobilizado e improdutivo, ou de acordo com o mecanismo da armadilha de liquidez descrita por Keynes. Existe um componente sinófilo da MMT quando importada ao terceiro mundo, ao enxergar na China um modelo de soberania monetária: emite-se dinheiro para promover o crescimento e não o inverso, não é o crescimento que condiciona o aumento do estoque de moeda.

 

 

No nosso livro, diferentemente, trabalhamos com o conceito de confiança, mas sem vinculá-lo à ideia de uma credibilidade ditada por cima, digamos, pelas agências de rating do risco país ou pelos fundos internacionais de auxílio. Entendemos que o dinheiro-crédito pressupõe a confiança, pois haure seu valor das relações, inclusive do futuro implicado nessas relações. O governo Dilma fracassou porque os vultosos investimentos públicos em empreendimentos dos campeões nacionais se mostraram um ralo perverso para reinvestimento eleitoral ou para a mais reles safadeza, como no caso do Cabral. Enquanto isso, o crédito público era fornecido sem critério sequer de eficácia. Tudo isso falhou em produzir resultados que trouxessem confiança social, e as revelações da Lava Jato, de resto inteiramente verdadeiras, terminaram por fulminar a confiança no dinheiro manipulado pelo governo brasileiro. Em boa parte, a crise que dissolveu a confiança nas instituições de 2015-17 e nutriu o solo dos movimentos antipolíticos está enraizada nesse fracasso de um governo em dotar a moeda de confiança e verdade. A moeda traficada pelo Brasil Maior era como uma nota de três reais. Na contramão disso, programas de transferência direta, como o Bolsa Família e o auxílio emergencial, ou de transferência direta qualificada, como o Pontos de Cultura fora na época do ministério de Gilberto Gil, mostram o outro caminho, a segunda via do Comum.

O dinheiro alimenta a confiança na produtividade social das redes colaborativas, no empreendedorismo difuso, porque acredita na capacidade de as próprias pessoas se organizarem e se mobilizarem produtivamente. Para além de uma organização por cima, fordista, num projeto do governo ou até mesmo numa fábrica de automóveis, de modo que as pessoas tenham condições para fazer da precariedade a criatividade, e da insegurança econômica uma chance de reconstrução da autonomia de criar. Os estudos sobre os resultados do Programa Bolsa Família no Brasil são usados no mundo inteiro como política boa e barata de desenvolvimento social e econômico. O próximo passo é a Renda Universal, ao que estamos privilegiadamente posicionados para ousar aqui no Brasil.

 

 

IHU On-Line - Como vê os discursos do papa Francisco em defesa de uma nova economia?

Bruno Cava - O Papa faz muitas menções a São Francisco de Assis e à Doutrina Social da Igreja. Nesse aspecto, sigo um relance de Toni Negri e Michael Hardt, em Império. Eles comparam a figura do militante comunista ao do santo católico. O militante é como um Francisco que deambula por aí, imergindo na vida da multidão, vivenciando suas diferentes facetas. O militante é alguém que se mistura com os diferentes, que não se furta a submergir nos usos simples, nas coisas práticas. Desapegado de possuir, vai usar as coisas do mundo e compartilhar dos usos com os outros, um uso que é agregador e amoroso (ver também Altíssima pobreza, de Giorgio Agamben). Essa dimensão de uma forma de vida descolada de grandes projetos e da eloquência das grandes narrativas, ao mesmo tempo junto daqueles que suportam e resistem, me parece ser uma dimensão um pouco esquecida por parte do ativismo atualmente tão entrincheirado.

Há uma obsessão normativa que delimita bolhas e pontifica o que deve ser e o que não deve, o que pode e não pode. Os bolsonaristas, os lulistas, a esquerda ou a direita. Dou como exemplo a greve dos caminhoneiros. Se no ciclo das ocupas brasileiras (2010-14) e durante as jornadas de Junho pudemos nos misturar, o amplo movimento grevista dos autônomos se mostrou quase inacessível à militância minimamente organizada. Me lembro bem, em 2013, como viajei por aí e circulei por aí, solto, com capacidade de entreter conversações com todo tipo de gente. Isso, me parece, se perdeu em meio às guerras culturais e aos realinhamentos eleitorais desde 2014. É como se perdêssemos o solo onde caminhávamos e o próprio caminhar, para encontrar o Comum, para além da apropriação mercadológica ou o aparelhamento partidocrático.

Quando o Papa aponta para uma "economia de Francisco", imagino que precisamos radicalizar os delineamentos da doutrina oficial da Igreja e da encíclica Fratelli Tutti, em seus ensinamentos de paz e justiça social, para restabelecer um vínculo interno entre pobreza e militância. A pobreza não como negativo da propriedade, mas como o positivo dos usos comuns que se reinventam na experiência difícil e precária. Da precarização, um novo horizonte de solidariedade e alegria que tem uma dimensão econômica.

  

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