Professor compreende que o país não só deixou de romper mazelas do passado como ainda as reitera como estratégicas na política de dominação
Para o professor Eduardo Mei, a guerra é algo presente no imaginário brasileiro. Mas não é qualquer guerra, é uma disputa desigual que aniquila os mesmos povos que foram subjugados desde a colonização. “O Brasil é o produto cotidiano de uma guerra de conquista, cuja vítima é o povo pobre, indígena, negro, favelado, sem terra e sem teto”, resume, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E, como forma de compreender a conjuntura política atual que mistura guerra e supressão de pessoas, evoca o conceito de necropolítica. “A necropolítica é a própria negação da humanidade”, define.
Mei ainda explica que, no caso brasileiro, “a necropolítica é uma remanescência viva da conquista colonial e da escravidão, como um cadáver vivo constitutivo do nosso cotidiano”. Isso tem origem em um passado quando os negros, depois de escravizados, foram libertados e jogados à própria sorte e os índios foram exterminados ou confinados em reservas. “A acumulação do capital e o neoliberalismo promovem o exacerbamento do caráter necropolítico de um país formado sob o impacto da conquista colonial e da escravidão”, completa.
Porém, ele compreende que, infelizmente, tais perspectivas são atualizadas da pior forma possível na gestão de Jair Bolsonaro. “As políticas sociais adotadas recentemente provocaram a reação da ‘casa grande’. O atual presidente apresenta-se como um representante da casa grande, um soldado da necropolítica contra os povos indígenas, os negros, quilombolas e a população pobre e famélica”, analisa. E, segundo Mei, numa situação de pandemia e desespero encontra o cenário perfeito para se fixar. “A pandemia apresentou-se para o ‘governo’ como uma oportunidade de ouro para pôr em prática o genocídio indígena. Nesse sentido, a pandemia é a oportunidade para reforçar o caráter fascista do bolsonarismo”, reitera.
Eduardo Mei (Foto: Arquivo pessoal)
Eduardo Mei é professor de Sociologia do curso de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista - Unesp. Possui doutorado em História pela Unesp, é pós-graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e graduado em Ciências Sociais pela Unicamp. Integra o Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional - Gedes da Unesp.
IHU On-Line – Por que a ideia de guerra é sempre tão presente na sociedade de nosso tempo? O que a ideia da guerra contra o novo coronavírus traz intrinsecamente?
Eduardo Mei – Seria necessário um estudo linguístico para saber se a frequência desse discurso “belicoso” é maior do que em outros períodos históricos e eu desconheço estudos a respeito. De qualquer modo, há ao menos dois motivos para a guerra e o discurso belicoso serem tão presentes no nosso tempo. O primeiro é o fato de que o mundo todo vive efetivamente um período muito belicoso ao menos desde a Revolução Francesa, com maior incidência desde a segunda metade do século XIX e com as deflagrações mundiais no século XX.
O segundo motivo é que essas guerras ganharam projeção por meio da imprensa, do rádio, da TV e do cinema e, mais recentemente, por meio da internet. Além disso, o vocabulário estratégico, originalmente militar – já que o estratego (em grego: στρατηγός) era quem comandava o exército na Grécia antiga –, disseminou-se por todas as atividades humanas, como a economia e a administração de empresas, por exemplo.
Intrinsecamente não há nenhum problema em deflagrarmos uma guerra contra o novo coronavírus, desde que se trate do “bom combate”. De fato, se com uma guerra à disseminação do vírus queremos dizer que a pandemia é um assunto tão sério como a guerra e que exige empenho do poder público para a sua consecução, a “guerra” é bem-vinda. Nesse sentido, a pandemia serviu para questionar e, na maioria dos países, debelar a falácia da autorregulação do mercado. A pandemia é um assunto público e não privado e apenas por meio do Estado (da res publica, a coisa pública) ela pode ser enfrentada. Deploravelmente, não é isso o que ocorre no Brasil.
IHU On-Line – Que nexos podemos estabelecer entre política e guerra na atual conjuntura brasileira?
Eduardo Mei – No Brasil, a compreensão da realidade é, desde Cabral, distorcida pela perspectiva do colonizador. A tendência a utilizar categorias exógenas para interpretar a realidade brasileira é secular e renitente. Tomemos o próprio Brasil como exemplo, pois ele é continente do que podemos considerar. Há uma tendência a tratar o Brasil como uma nação contida em suas fronteiras. A noção de fronteira é originária de uma realidade histórica alheia ao Brasil e que se impõe como um interesse do colonizador em tratados internacionais.
A fronteira é então, por assim dizer, “normalizada”, “naturalizada” e, como tal, passa a ser um fato inquestionável. Aos povos indígenas, as fronteiras são uma imposição fáctica. Não se lhes reconhece a dignidade do status de nação, como ocorreu na República Plurinacional da Bolívia, por exemplo. O caráter genocida do atual “governo” (com o parêntese de que a palavra “governo” tem origem náutica, referindo-se à condução do leme, e que, portanto, não deveria ser utilizada para referir-se àqueles que, deliberadamente ou por incompetência, buscam o naufrágio, os quais, segundo o direito marítimo, são criminosos, cf. Artigo 261 do Código Penal) – caráter genocida reiterado também pelo ministro da Educação na reunião ministerial de 22/04 (quando ele diz “odeio o termo ‘povos indígenas’ […] O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país.”) – revela algo que geralmente é dissimulado: o Brasil é o produto cotidiano de uma guerra de conquista, cuja vítima é o povo pobre, indígena, negro, favelado, sem terra e sem teto.
O Brasil é um genocídio duradouro de dimensões continentais. No caso brasileiro, excluídas as raras guerras interestatais nas quais o país se envolveu, não se trata de guerra interestatal entre entes soberanos que reconhecem entre si o status de igualdade jurídica (aquilo que Grotius definiu como bellum publicum solemne) nem de guerra entre grupos politicamente organizados (como seria o caso em uma guerra civil, por exemplo), mas de “guerra” em sentido figurado, de uso do aparato militar e repressivo do Estado, ou de atores privados com a omissão do Estado, para a prática da violência genocida cotidiana.
IHU On-Line – Em situações de crise extrema, e mesmo de guerra, emerge a ideia de coesão nacional. Por que parece que o governo federal vai exatamente no sentido contrário diante da pandemia? O que essa ação revela sobre o governo Bolsonaro?
Eduardo Mei – A situação brasileira desde ao menos 2013 é tão instável que é impossível fazer considerações categóricas, mas, ao que parece, a pandemia apenas reforça aspectos fascistas do bolsonarismo. Desde sempre, e manifestamente durante a campanha eleitoral, o discurso belicoso e excludente é reiterado. Por isso a relação entre o bolsonarismo e a milícia é intrínseca. Não por acaso os dedos imitando uma arma são um símbolo do movimento bolsonarista e da campanha eleitoral.
O fanatismo da violência é característico dos regimes fascistas. Note-se que a “unanimidade” nacional do Terceiro Reich foi construída por meio da estigmatização e eliminação de “inimigos”, tais como os ciganos, socialistas, homossexuais, judeus etc. O bolsonarismo sobrevive e rasteja por meio da reiterada estigmatização de “inimigos”. Daí as bizarrices de uma suposta ameaça comunista internacional, ou a sugestão de que todos os que criticam o “governo”, inclusive alguns ex-aliados, são comunistas. Isso revela algo alarmante: para que o “governo” assuma seu caráter francamente fascista, só falta a oportunidade.
IHU On-Line – A narrativa belicosa do governo Bolsonaro pode ser compreendida como uma estratégia de guerra? Por quê? Como o senhor interpreta essa narrativa?
Eduardo Mei – É típico do fascismo e das tendências políticas filofascistas o discurso belicoso, a divisão do mundo em amigos e inimigos, a estigmatização dos desafetos políticos, a retórica da polarização da sociedade em grupos excludentes e, havendo a oportunidade, a eliminação física de desafetos e “inimigos”. Nessas circunstâncias, a pandemia apresentou-se para o “governo” como uma oportunidade de ouro para pôr em prática o genocídio indígena. Nesse sentido, a pandemia é a oportunidade para reforçar o caráter fascista do bolsonarismo.
O negacionismo, a sugestão de que a pandemia é uma gripezinha, a política econômica pró-cíclica e medidas que provocaram aglomeração de pessoas, como o modus operandi da distribuição caótica de auxílio emergencial, são evidências do propósito de disseminar a doença e eliminar fisicamente uma parcela significativa da população. Não por acaso, o presidente foi denunciado no Tribunal Penal Internacional de Haia.
IHU On-Line – Como analisa a presença e atuação de militares no governo Bolsonaro?
Eduardo Mei – Como deplorável sob todos os aspectos. O “governo” Bolsonaro é o produto de um golpe de Estado perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff cuja consolidação envolveu várias outras violações da Constituição de 1988, de direitos individuais e coletivos assegurados por ela e pela legislação ordinária, por violações da legislação eleitoral etc. Em países plenamente democráticos, alguém que defenda uma ditadura militar e a tortura seria punido na forma da lei. O que dizer de uma situação na qual, além de não ser punido, ele mantém as prerrogativas de deputado federal e se candidata à eleição presidencial?
Do mesmo modo que as eleições legislativas institucionalizavam e normalizavam a ditadura militar, as eleições de 2018 institucionalizam e normalizam o golpe de 2016. Ao violar a legislação eleitoral e alçar o bolsonarismo ao poder (não apenas o presidente, mas toda uma bancada de mitômanos e golpistas), o golpe de Estado institucionalizou o crime. E os parceiros do crime são também criminosos. Apenas a frouxidão e leviandade com a qual a coisa pública é tratada no Brasil explica a situação na qual nos encontramos.
IHU On-Line – Por que a adesão a Bolsonaro parece não ser completa entre os militares da ativa? O que os aproxima e o que os distancia dos militares que estão no Executivo?
Eduardo Mei – Aparentemente, a maioria dos militares encara a associação com o bolsonarismo como uma aliança tática. Embora seja difícil afirmá-lo com certeza, pois a sombra dos regimes de exceção ainda vela e oculta o aparato militar – e rigorosamente falando, as Forças Armadas brasileiras não são instituições públicas –, certamente, interesses corporativos pesam nessa escolha. Curiosamente, interesses estritamente corporativos adquirem no jargão militar a denominação de “interesses nacionais”.
Porém, basta uma análise superficial para constatar que nenhum interesse nacional orienta o “governo” Bolsonaro. Ao contrário, trata-se de um governo mercenário, lesa-pátria e lesa-humanidade. De qualquer modo, a crise institucional, que atravessa também o Legislativo, o Judiciário e o próprio Supremo Tribunal Federal - STF, inclusive, é uma boa desculpa para manter uma aliança tática que muitas vezes pode parecer desconfortável.
IHU On-Line – Como o senhor compreende o conceito de necropolítica? De que forma esse conceito pode nos ajudar a compreender a conjuntura brasileira?
Eduardo Mei – Entendo necropolítica tal como ela foi definida por Achille Mbembe, historiador camaronense radicado nos EUA. Mbembe define a necropolítica como a política que consiste em decidir quem pode viver e quem deve morrer. Embora a definição de necropolítica apareça em um texto publicado em 2003, ela remete à conquista colonial, à escravidão, ao direito de tratar como coisas e matar indígenas e escravos, e à introdução dessas práticas coloniais na Europa pelos regimes fascistas.
Em outras palavras, a necropolítica é a própria negação da humanidade. É paradoxal que grupos que se autodenominam cristãos sejam defensores e praticantes da necropolítica, havendo inclusive o que podemos denominar a necro-evangelização dos povos indígenas. De fato, a necropolítica é a antítese do “bom samaritano”.
No caso brasileiro, a necropolítica é uma remanescência viva da conquista colonial e da escravidão, como um cadáver vivo constitutivo do nosso cotidiano. Quando a escravidão foi formalmente abolida, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte e sobreviveram ao resistir em uma sociedade racista e excludente. Os povos indígenas, por sua vez, só sobreviveram ao genocídio devido às dimensões continentais do país e ao fato de, ao contrário dos EUA, o Brasil manter até hoje, graças à imensa floresta amazônica, um imenso território relativamente pouco devastado (lembremos que Bolsonaro elogia o genocídio indígena perpetrado pela cavalaria dos EUA).
Ocorre que a acumulação desenfreada do capital levou à expansão da fronteira agrícola, ameaçando os povos indígenas, e a precarização das condições de trabalho afeta, no ambiente urbano, mais os negros do que outros segmentos da população. Por conseguinte, a acumulação do capital e o neoliberalismo promovem o exacerbamento do caráter necropolítico de um país formado sob o impacto da conquista colonial e da escravidão. As políticas sociais adotadas recentemente provocaram a reação da “casa grande”. O atual presidente apresenta-se como um representante da casa grande, um soldado da necropolítica contra os povos indígenas, os negros, quilombolas e a população pobre e famélica.
A pandemia do coronavírus apenas tornou manifesto o caráter mórbido do neoliberalismo filofascista. Disso são evidências as tentativas de extinguir o Bolsa Família e outras políticas de inclusão e o descaso com o qual se trata do problema da fome e do desemprego.
IHU On-Line – Que associações podemos fazer entre a guerra e a necropolítica?
Eduardo Mei – Muitas vezes a guerra foi utilizada como uma forma de necropolítica, antes mesmo que o conceito tivesse sido formulado por Achille Mbembe, pois é claro que a realidade antecede, e muito, o conceito. Se partirmos da definição de bellum publicum solemne, notamos que ela se aplica apenas às guerras que os Estados europeus praticavam entre si a partir da Paz de Westphalia.
Note-se que durante a Guerra de Trinta Anos, cujo fim é acordado nos tratados da Westphalia, a pilhagem e a morte de civis e até o canibalismo foram praticados na Europa. Desde então, inicia-se um processo para moderar e “civilizar” a guerra. Contudo, esse regramento concernia apenas às relações interestatais dos países europeus entre si.
No que tange à sorte dos povos das colônias europeias, não havia esse regramento nem essa moderação. As guerras de extermínio e a disseminação deliberada de doenças fazia parte cotidiana da necropolítica colonial. No mundo tecnológico contemporâneo, muitas vezes a guerra é apenas um subterfúgio para a necropolítica e o genocídio dissimulado.
IHU On-Line – As manifestações pela democracia, contra o racismo e contra o governo são uma resposta social à necropolítica? Por quê?
Eduardo Mei – As atuais manifestações pela democracia são a reação da “senzala” aos retrocessos da “casa grande”. Elas rechaçam o bolsonarismo e tudo o que ele representa, inclusive a política econômica neoliberal do ministro Paulo Guedes. A hesitação em fazer manifestações em um período no qual deveríamos manter o isolamento social e o êxito dessas manifestações são sintomáticos da peculiar situação que estamos enfrentando. Para o que talvez possamos denominar “esquerda tradicional”, as manifestações seriam um risco sanitário e político, na medida em que poderia ser a ocasião para um novo golpe e o endurecimento do regime.
Porém, ao que tudo indica, nas manifestações predominaram os segmentos mais precários da população, para os quais o isolamento social é impossível, pois são trabalhadores que precisam trabalhar porque o auxílio governamental é uma falácia, trabalhadores que dependem diariamente dos meios de transporte precários e superlotados e que, portanto, vivem cotidianamente o risco do contágio.
IHU On-Line – A necropolítica é uma ameaça à democracia brasileira? Por quê?
Eduardo Mei – A necropolítica é absolutamente contraditória com qualquer forma de democracia, mesmo a nossa precária democracia que perdurou até 2016 e da qual temos tantas saudades. A necropolítica é a institucionalização da exclusão social e da violência estatal e paraestatal contra a maioria da população brasileira, pobre, negra, indígena, excluída.
A democratização e a inclusão social dos anos recentes, mesmo que muito limitadas, incomodaram a turma da casa grande ou que se acha da casa grande. A manifestação mais patente disso se apresenta na visibilidade ou invisibilidade de amplos segmentos da população. Enquanto o negro e o pobre são invisíveis nos presídios, ou invisíveis fazendo uniformizados a limpeza de aeroportos e shopping centers, os “cidadãos de bem”, a “sociedade” branca, não se incomodam. Mas quando o negro, o pobre, o indígena chegam à universidade, passam a frequentar os aeroportos e “shoppings” como turistas e consumidores, a casa grande começa a se incomodar. Nesse sentido, no Brasil atual, a necropolítica é o último recurso para confinar o negro e o pobre na senzala e o “índio” na menor reserva indígena possível, de modo a garantir a sua “assimilação” ou extermínio.