Para historiador, é muito nebulosa a posição de militares. E nisso pode haver riscos de descompromissos com a democracia
José Murilo de Carvalho é um estudioso que há anos vem olhando para as manobras militares desde que os Bragança desembarcaram por aqui. Observa que desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), o Exército vem tomando a frente e galgando espaços na História do Brasil. Nem D. Pedro II, no desejo de forjar uma nação com História, língua e Exército, sonhou que os soldados pudessem ir tão longe. Um dos pontos altos foi o golpe da Proclamação da República, o qual José Murilo revisa no livro O pecado original da República (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017). E observa que não estamos falando em 1964. “Corporações militares em si não são democráticas, são baseadas na hierarquia e na disciplina”, dispara o historiador. “Diz-se que são democráticas quando são profissionais, isto é, quando não se metem em política, o que não é nosso caso desde 1889”, acrescenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, José Murilo revela que são precipitadas análises de que os militares não são unânimes no apoio ao governo de Jair Bolsonaro. “Há muita especulação. Todo mundo dá palpite, mas não vi ainda nenhuma pesquisa ou mesmo depoimento sério a respeito”, aponta. E como os militares da ativa não dão entrevistas e nem fazem manifestações públicas, de fato é uma incógnita saber o que se passa. “Pode-se supor que os mais radicais sejam os que viveram o período da ditadura e que hoje, na maioria, estão na reserva e frequentem os clubes militares. Também é preciso notar que há diferenças entre as Forças. Marinha e Aeronáutica tendem a ser mais profissionais”, analisa.
Como há essa relação muito dúbia com relação à democracia, e mesmo o endosso aos arroubos totalitários do presidente, José Murilo alerta para o risco de o Exército chamar para si a responsabilidade de um quarto poder, o extinto Poder Moderador, pois, segundo ele, “lhes interessa, porque não são profissionais e porque o texto constitucional (art. 142) que fala em garantia dos poderes constitucionais dá margens a interpretações conflitantes”. Para o historiador, a melhor vacina é “o amadurecimento da democracia, do autogoverno pela sociedade”.
José Murilo de Carvalho (Foto: Plataforma Media)
José Murilo de Carvalho é cientista político e historiador brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras. Possui graduação em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestrado e doutorado em Ciência Política pela Stanford University e realizou pós-doutorado em História da América Latina na University of London. É professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor Honoris Causa pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pela Universidade de Coimbra. Suas pesquisas e produção concentram-se na história do Brasil Império e Primeira República, com ênfase nos temas da cidadania, republicanismo e história intelectual. Entre os livros mais recentes estão Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte (São Paulo: Chão Editora, 2019) e “Clamar e agitar sempre”: os radicais da década de 1860 (Rio de Janeiro: Topbooks, 2018).
IHU On-Line – As Forças Armadas estariam reivindicando o lugar de um quarto poder, numa nova versão do antigo Poder Morador? Por quê?
José Murilo de Carvalho – Porque lhes interessa, porque não são profissionais e porque o texto constitucional (art. 142) que fala em garantia dos poderes constitucionais dá margens a interpretações conflitantes.
IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre democracia e os militares brasileiros?
José Murilo de Carvalho – Corporações militares em si não são democráticas, são baseadas na hierarquia e na disciplina. Diz-se que são democráticas quando são profissionais, isto é, quando não se metem em política, o que não é nosso caso desde 1889. O único remédio eficaz para isso é o amadurecimento da democracia, do autogoverno pela sociedade.
IHU On-Line – Como podemos compreender a formação dos militares brasileiros hoje? Quais as distinções da formação dos militares nos anos de 1950, 1960 e 1970, por exemplo?
José Murilo de Carvalho – Alguns estudos feitos sobre o tema mostram composição mais diversificada do corpo de oficiais, maior complexidade organizacional, mais flexibilidade na doutrinação. Isto é, menos oficiais formados na Academia Militar das Agulhas Negras - AMAN, mais contatos com universidades, mais mulheres, mais serviços. Uma consequência possível dessas mudanças seria maior abertura da Força.
IHU On-Line – Analistas políticos dizem que os militares da ativa não aderem ao governo Bolsonaro, enquanto os generais da reserva chancelam as ordens do Planalto. O senhor concorda? Como analisa esse cenário?
José Murilo de Carvalho – Há muita especulação. Todo mundo dá palpite, mas não vi ainda nenhuma pesquisa ou mesmo depoimento sério a respeito. Os militares da ativa não dão entrevista. Pode-se supor que os mais radicais sejam os que viveram o período da ditadura e que hoje, na maioria, estão na reserva e frequentem os clubes militares. Também é preciso notar que há diferenças entre as Forças. Marinha e Aeronáutica tendem a ser mais profissionais.
IHU On-Line – O presidente Bolsonaro chegará ao fim do mandato? O que sustenta e o que pode derrubar o governo?
José Murilo de Carvalho – O que se pode dizer sem muita adivinhação é que continuará sendo um mandato conflitivo e tumultuado. Renúncia pode-se descartar, não é do temperamento do presidente. Impeachment é possível, mas é processo traumático, como se viu no caso de Dilma Rousseff. Seguir aos trancos e barrancos será também muito custoso para o país. Em suma, estamos mal.
IHU On-Line – Vivemos tempos de pandemia. Como imagina que esse período deve ficar marcado na História do Brasil?
José Murilo de Carvalho – Impossível prever.
IHU On-Line – Que Brasil o senhor vislumbra num curto e médio prazos?
José Murilo de Carvalho – Um Brasil fraturado, de baixo crescimento, sem redução da desigualdade.