25 Janeiro 2019
Apesar de demonstrar fragilidades em prazo recorde, o governo de Jair Bolsonaro ainda está no começo e goza de força política. Em Davos, anunciou a agenda econômica que, grosso modo, seus antecessores patrocinaram nas últimas décadas. No plano interno, terá dificuldade em entregar o que prometeu em campanha, mas conta a seu favor com o fato de a oposição estar hegemonizada por um partido cuja rejeição parece irreversível. É sobre o complexo quadro brasileiro e latino-americano que fala o economista Nildo Ouriques.
Por considerar que Bolsonaro é herdeiro natural do “capitalismo dependente rentístico” e sua nova fase acumulação, desconectada do emprego e da renda, Ouriques pontua que “não é necessário, ainda, lançar mão de uma ditadura. Há capítulos até lá. Bolsonaro percorreria toda a liturgia liberal. Como a esquerda liberal não tem, neste contexto, uma arma eficaz, ele nada de braçada”.
Implacável com o que chama de liberalismo de esquerda – representado apenas pelo petismo agora – o presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC prevê um quadro de ampla tragédia social a partir da agenda política e principalmente econômica. Mas que por ora carece de qualquer contrapeso capaz de mobilizar a população.
“Não existe espaço histórico para o petismo. Não que vá acabar, mas está superado historicamente. Por isso não terá mais eficácia. E se tiver eficácia eleitoral, pior para as classes populares. Porque a caridade cristã que promoveu em seus governos uma “digestão moral da pobreza” continuará nos demais governos, a exemplo do Bolsa Família. Chamo de digestão moral porque é muito barato para as classes dominantes. O principal crime dos governos petistas deve-se ao fato de que em 13 longos anos nenhuma vez convocaram o povo para algum ativismo”.
Ao vaticinar que não há a mínima possibilidade da tão falada “autocrítica do PT”, lamenta a submissão da maior parte das esquerdas ao lulismo, também responsáveis pela vitória de Bolsonaro. No entanto, o quadro de instabilidades, que destaca como raiz da política latino-americana, agora em nova fase de acirramento, tem tudo para obrigar a um reordenamento das forças sociais que se colocam em oposição a um sistema econômico que não para de promover a desintegração das sociedades.
“No México, Obrador tenta reproduzir a conduta ético-moral do Mujica, que é importante, mas insuficiente, porque falta enfrentar a dependência e o subdesenvolvimento. E no caso mexicano concretamente deve enfrentar o Tratado de Livre Comércio. Mas os EUA fizeram uma nova versão do TLC e impuseram a assinatura de Peña Nieto – fizeram o mesmo com o Canadá. Não tem conversa, os EUA têm condições de impor (...) O dito progressismo é incapaz de transformar a América Latina”.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 22-01-2019.
Eis a entrevista.
Como analisar, em perspectiva histórica, a vitória de Jair Bolsonaro para a presidência da República e o chamado “fim do ciclo dos governos progressistas”, no Brasil e no continente?
Não concordo com a premissa de fim de ciclo. Num país estratégico para o imperialismo como o México, Lopez Obrador venceu a eleição de forma avassaladora, como nunca tinha acontecido. Na Colômbia e Argentina, dois governos ultraconservadores estão com popularidade similar à de Temer, que por sua vez foi o pior caso de “republicanismo” desde a redemocratização.
Não há término de ciclo de governos progressistas ou de esquerda, e sim o acirramento da luta de classes em escala continental. No Brasil tal acirramento se expressa pela vitória de um candidato proto-fascista que comanda uma onda ultraliberal.
As contradições do capitalismo dependente – que assumiu uma forma rentística – exige governos de tais características, pois o desenvolvimento capitalista do Brasil – este que gerou um orgulho burguês, oriundo de São Paulo, na USP, na Unicamp, na FIESP, nas classes médias - fracassou por completo. Este orgulho se dissipa completamente agora. Já era um fenômeno amplo. Bolsonaro é a expressão política necessária da nova fase do capitalismo dependente rentístico. Esse é o ponto.
O quadro geral exige que Lopez Obrador vença no México e expressões truculentas como Ivan Duque (presidente da Colômbia) e Bolsonaro vençam em seus países. Ele percebeu que o “sistema petucano” tinha apodrecido e atuou com habilidade, coisa que partidos como o PSOL e outros setores não fizeram. E assim sofremos uma derrota política e eleitoral gigantesca.
Destaco que não tem nada a ver com Steve Bannon e esse fetichismo do WhatsApp, fake news etc. É só uma leitura meridiana do que acontece.
Sobre o governo brasileiro, o que esperar, para além da figura central e a partir das nomeações para os ministérios?
Basicamente, são três questões essenciais: primeiro, o ultraliberalismo de Paulo Guedes, motivo de instabilidade permanente. Isso é inexorável. Não saberia dizer se este ministro vai durar muito. A tradição iniciada por FHC era de ministros da Fazenda que duravam oito anos. Malan, Mantega... Não sei se isso vai acontecer com Guedes.
Segundo: a importantíssima figura de Sérgio Moro, que transformou a Lava Jato em instrumento de governo. A operação continua, na prática, em sua mão e na mão de seu pessoal, um instrumento de pressão contra parlamentares de governo e oposição. A Operação Lava Jato é um instrumento de governo, é inequívoco. Espanta ninguém falar desta mudança tão substancial.
O terceiro: os generais, que cresceram e foram promovidos durante o petismo. Temos o protagonismo aberto dos militares no sistema político, uma “grata” novidade. Sigo aqui o postulado de Álvaro Vieira Pinto, lá dos anos 60: não foi por acaso que a ditadura reformou mais de 10 a 12 mil militares, acusados de trabalhistas, nacionalistas, comunistas... O liberalismo de esquerda, encabeçado pelo Lula, não tinha a menor ideia do que fazer com os militares. E tivemos um processo de “agringalhamento”, como se vê tão bem no Mourão. Ele é um sujeito a serviço da política externa estadunidense, incapaz de lutar por soberania e ver o mundo tal como ele é. Ele só enxerga o mundo pelo olhar da política externa dos EUA.
Estes são os três pilares da composição do governo de Bolsonaro, incapaz de resolver alguns problemas essenciais: é incapaz de gerar emprego e renda; é incapaz de combater a corrupção a fundo (basta ver a anistia do xerife do bairro, Moro, a Onix Lorenzoni); e pode fazer muito pouco na área de segurança, uma grande demanda da população.
Além disso, há a área social, de saúde, educação, cultura e tecnologia... Aí nem se fala. Será um desastre completo, veremos a deterioração completa dos chamados serviços públicos essenciais. Restará a Bolsonaro tensionar contra as instituições. Quais? O Congresso, que segue um covil de ladrões, o STF, que vai tomar algumas medidas de independência e será criticado pelo “esquema Bolsonaro”, e a imprensa, que vai ser acusada de mentir, até porque mente sistematicamente mesmo.
Bolsonaro terá que tensionar contra esses setores do sistema a fim de, que sabe, assumir as cláusulas mais duras da Constituição, como o Estado de guerra ou a busca por poderes especiais diante do Congresso. A estratégia de Bolsonaro será tensionar permanentemente contra as instituições, pois o regime político continua podre e ele poderá alegar que não consegue governar ao lado do velho sistema.
Se por um lado o sistema petucano desapareceu para sempre – porque agora temos o ultraliberalismo contra o que sobrou do consórcio petucano (o petismo) –, por outro não houve renovação do sistema político. Assim, Bolsonaro governará desde a podridão do sistema. E ele não tem alternativa. No limite ele chamará uma reforma política, ultraconveniente para a concentração do poder.
Os socialdemocratas sempre falaram em reforma política. Agora o proto-fascista poderá fazê-la, em busca de poderes especiais.
Em caso de fracasso no curto prazo, acredita numa possível saída ainda mais à direita, isto é, um governo efetivamente militar?
Não faria prognóstico desta natureza porque é difícil. Mas ele vai tensionar, no limite até convocar uma reforma política que lhe permita concentrar poderes, dentro da ordem constitucional.
Não é necessário, ainda, lançar mão de uma ditadura. Há capítulos até lá. Ele percorreria toda a liturgia liberal. Como a esquerda liberal não tem, neste contexto, uma arma eficaz, ele nada de braçada. Conspira contra Bolsonaro a incapacidade de entregar o que prometeu. Mas conspira a favor que na oposição está o petismo, rejeitado pela população.
A pergunta que falta responder é: qual será o caráter da oposição de esquerda radical? Se ela continuar a dizer “bom dia, presidente Lula”, “boa noite, presidente Lula”, não vai dar. A polarização entre petistas e ultraliberais já liquidou os tucanos. E o petismo é incapaz de superar essa dinâmica. O liberalismo de esquerda, de extração católica, como nos programas sociais, também liberal na economia, reforça e dá folego às posições de Bolsonaro. Só uma ruptura com o sistema pode superar isso e claro que não sabemos quando ocorrerá.
Mas Bolsonaro vai esticar a corda. Ele vai buscar uma reforma do sistema político, mostrando ao povo que a corrupção política não permite que suas reformas sejam feitas.
O que ficou do governo Temer? Qual o legado que deixa, em especial economicamente, para Bolsonaro?
O governo que saiu fez duas coisas muito importantes: aprovou a PEC do Teto de Gastos e suprimiu a CLT. Um serviço extraordinário para os grandes empresários, cujas taxas de lucro se recuperaram de maneira fenomenal. Os grupos industriais, comerciais e bancários tiveram taxas de lucro gigantescas.
Como a imprensa e o liberalismo de esquerda são incapazes de ver que superlucros não são incompatíveis com aprofundamento da crise, não conseguem captar que apesar de as empresas irem bem a economia vai mal, no sentido de não haver emprego e renda.
Temer aprofundou as reformas que Dilma começou, em especial nessas duas questões. E, claro, azeitou ainda mais o motor do capitalismo dependente rentístico, isto é, a dívida pública e os superlucros dos bancos. Portanto, cumpriu um papel extraordinário para as burguesias.
Neste contexto, qual a crítica, ou autocrítica, que caberia aos setores identificados à esquerda?
O PT demonstra cotidianamente que não sabe fazer uma autocrítica. Precisamente porque não tem uma crítica do sistema. Ele quer continuar administrando esse sistema. Mas as condições brasileiras exigem um governo de direita. O liberalismo de esquerda é incapaz de perceber.
Não existe espaço histórico para o petismo. Não que vá acabar, mas está superado historicamente. Por isso não terá mais eficácia. E se tiver eficácia eleitoral, pior para as classes populares. Porque a caridade cristã que promoveu em seus governos uma “digestão moral da pobreza” continuará nos demais governos, a exemplo do Bolsa Família. Chamo de digestão moral porque sai muito barato para as classes dominantes.
Quando visitei a Rocinha, vi que o Minha Casa Minha Vida fez 440 apartamentos lá. Isso numa comunidade de 110 mil pessoas. Ridículo. Dá-se algo para os pobres e tudo para os ricos. Reforçam-se a dominação de classe e o Estado burguês, e não se dá protagonismo às massas.
O principal crime dos governos petistas deve-se ao fato de que em 13 longos anos nenhuma vez convocaram o povo para algum ativismo. Nenhuma vez. Nem sequer quando estavam sendo expulsos do palácio, naquilo que cinicamente chamam de golpe. Vejam como não são confiáveis e foram impotentes quando a classe dominante fez essa ofensiva contra o nosso povo.
O PT não pode fazer autocrítica, como muitos pedem, inclusive na base do partido, porque o petismo é uma máquina eleitoral perfeitamente integrada ao sistema político, cuja maioria de parlamentares, prefeitos, governadores, vive do sistema, não tem vontade de mudá-lo. O PT não tem mais nenhuma relação com 1977, 1979, quando foi criado, no final da ditadura. É um partido da ordem, que era e continua funcional ao sistema.
Era funcional ao sistema petucano, porque tinha o mesmo programa, mas com a caridade cristã para se opor à clássica insensibilidade tucana com os pobres. Agora é funcional no sentido de dizer que o sistema político e sua democracia vão bem, porque mesmo num governo proto-fascista há uma oposição – bem comportada, dentro das regras do jogo, incapaz de buscar alternativas, dentro e fora do sistema.
O petismo continuará cumprindo sua função de sustentar o sistema, de maneira que descartemos por completo a possibilidade de uma autocrítica.
O que esperar para a vida dos trabalhadores e o meio ambiente neste período que se anuncia tão repleto de incógnitas?
Sem dúvida, veremos o aumento da desigualdade e da violência. Apesar de algum possível alívio no começo, logo em seguida Bolsonaro tende a acumular níveis consideráveis de desgaste. Por isso precisa tensionar contra o sistema político, pois eles não vieram pra brincar. Não é uma mudança qualquer. Mais pobreza, mais miséria e mais violência contra o povo. Não há dúvida nenhuma.
Acho muito difícil que ele possa se sustentar nesta circunstância. É um governo instável de forma permanente. Mas dependerá também do perfil da oposição. No capitalismo dependente rentístico, as formas de acumulação fictícia de capital e de proteção da propriedade garantem essas duas coisas – propriedade e riqueza – sem a produção de mercadorias. O alinhamento aos EUA e o ultraliberalismo são uma “fase necessária” ao Brasil. As massas terão de participar da política com maior consciência.
Dependemos também de como reagirá o sindicalismo, em especial urbano. O sindicalismo rural tem um número de mortes que sempre foi muito grande – uns 35 por ano no petismo e agora o dobro. A matança vai continuar grande no campo. O sindicalismo terá de entender a nova conjuntura, porque será objeto de ações do Moro, que tentará mostrar como o sindicalismo fazia parte do que ele chama de organização criminosa, na qual a CUT teria estado à frente. Gente como Vagner Freitas terá de entender que ou rompe com o chefe – Lula – ou ajuda a massacrar os trabalhadores.
A atual hegemonia sindical – da CUT e demais centrais – é incapaz de enfrentar a ofensiva de Moro e da burguesia. Eles terão de se renovar. É o que suponho. Hoje diria que não o farão, mas a insatisfação das bases contra as cúpulas sindicais é grande e tenho esperança de que renovem lutas que nos últimos anos não tivemos.
Em termos continentais, essa radicalização pela direita tem fôlego de longo prazo a seu ver, ou a vitória de López Obrador e ascensão de Gustavo Petro, em México e Colômbia, sugerem que a situação é mais complexa?
O problema é: as pessoas observam o resultado das eleições. Mas quem vê eleições não vê classes sociais. O caso mexicano é muito típico. Depois de tantos governos de direita, Lopez Obrador venceu porque ele é tenaz, trabalha com o povo. Não vaticino que ele vai dar certo. Estou dizendo que seus mandamentos fundamentais - não roubar, mentir ou trair – são muito importantes, algo que o liberalismo de esquerda brasileiro é incapaz de fazer.
Ele tenta reproduzir a conduta ético-moral do Mujica, que é importante, mas insuficiente, porque falta enfrentar a dependência e o subdesenvolvimento. E no caso mexicano concretamente deve enfrentar o Tratado de Livre Comércio. Mas os EUA fizeram uma nova versão do TLC e impuseram a assinatura de Peña Nieto – fizeram o mesmo com o Canadá. Não tem conversa, os EUA têm condições de impor.
Por sua vez, governos como Macri e Moreno, no Equador, enfrentam grandes crises. É o vice do Rafael Correa quem tem colocado ex-aliados na cadeia. No Brasil temos uma visão muito medíocre do nosso quadro, fruto de atraso intelectual e político que não dá conta de captar nem as tendências do continente. Caso contrário, teríamos claro que a instabilidade é a raiz da política latino-americana.
O dito progressismo é incapaz de transformar a América Latina. Esgotou seu ciclo, mas segue importante, porque as massas podem aprender muito rapidamente, porém, precisam passar pela experiência. O novo radicalismo de esquerda que postulamos está em lenta recomposição e depende também da crise do ultraliberalismo e do desgaste definitivo do progressismo.
No México as massas conseguiram uma vitória gigantesca. Mas Obrador poderá levar suas ideias até o fim? Não sei. O quadro é de polarização. Até nos EUA existe polarização. Ela é forte e crescente na América Latina. Precisamos estar atentos. O quadro é este. Bom mocismo aliado à falta de rigor na análise é o pior que pode nos acontecer.
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“O governo Bolsonaro trará mais violência e desigualdade, mas a esquerda liberal não tem respostas à altura”. Entrevista com Nildo Ouriques - Instituto Humanitas Unisinos - IHU