20 Abril 2015
“Quem fica pensando que o drama brasileiro é com o confronto entre o democrático e o autoritário, o atrasado e o moderno, não vai tirar nunca o Brasil do buraco”, diz o sociólogo.
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Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Ouriques relaciona a atual crise política com o “marasmo” que têm sido as Ciências Sociais e as universidades brasileiras, e com as alianças que permitiram a criação e sustentação do “sistema PTucano” na sociedade. “O sistema político brasileiro faliu porque nós estamos submetidos ao sistema PTucano, um sistema que defende basicamente os interesses das classes dominantes a partir de dois grandes partidos, o PT e o PSDB, que têm o mesmo ideário”, pontua.
Autor de O colapso do figurino francês. Crítica às ciências sociais no Brasil (Florianópolis: Insular, 2014), reflete sobre a situação das universidades e enfatiza que na academia há muitos “professores refratários à crítica, qualquer coisa que você diga sobre a educação ser uma catástrofe, estar muito mal, logo vem um batalhão poderosíssimo buscando as migalhas daquilo que deu certo e quando você soma tudo — uma operação que eles nunca fazem —, quando você chega ao final, o quadro é terrível”, lamenta.
Segundo ele, “os intelectuais que estão nas universidades não estão dispostos a rever isso, porque eles estão pensando que ruim com a Dilma, pior sem ela. Eles estabeleceram como horizonte político o que temos, ou seja, não podemos ir adiante”.
Nildo Ouriques é doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM. Atualmente é presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos - IELA e professor associado da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor está analisando o cenário político e social brasileiro hoje?
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Nildo Ouriques - O sistema político brasileiro faliu porque nós estamos submetidos ao sistema PTucano, um sistema que defende basicamente os interesses das classes dominantes a partir de dois grandes partidos, o PT e o PSDB, que têm o mesmo ideário. De tal maneira que o sistema político simula a representação das classes subalternas, mas não encontra nos partidos com expressão eleitoral uma plataforma onde seus interesses possam aparecer.
Vamos descartar de cara o tema da questão social, porque o governo do ex-presidente Lula e o governo da presidente Dilma são governos que jamais trataram a questão social com profundidade; operam algo substancialmente diferente, operam aquilo que chamo de uma digestão moral da pobreza. Ou seja, destinaram para as classes populares programas que basicamente impedem que, num país coordenado pela superexploração da força de trabalho, as classes populares morram de fome, mas não concedem jamais cidadania no sentido pleno da expressão a essas classes.
Não bastasse isso, o que o governo faz, através da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, é criar uma chamada metodologia que considera classe média alta uma pessoa que recebe entre R$ 741 e R$ 1039. É por isso que no pronunciamento de domingo, 08-03-2015, a presidente Dilma pôde repetir, assim como anunciava o ex-presidente Lula, que 40 milhões saíram da pobreza e que 30 milhões ascenderam à classe média. Esses 30 milhões são aquelas pessoas que ganhavam abaixo de um salário mínimo ou até um salário mínimo, ou seja, abaixo de R$ 741/R$ 780 e R$ 1039. Se você considerar que quase 80% da força de trabalho no Brasil ganham até três salários mínimos, esses três salários mínimos não alcançam sequer o salário mínimo necessário sugerido pelo DIEESE, que é R$ 3079,00.
Sistema político colapsado
Assim, o sistema político colapsou porque os dois principais partidos têm o mesmo programa — basta ver que a presidente Dilma aplica na prática o programa que Armínio Fraga anunciou para o Aécio — e se diferem nessa digestão moral da pobreza. Observe também que os tucanos não criticam os programas sociais porque eles são muito baratos — nunca esqueça que o Programa Bolsa Família consome 0,5% do PIB. Os tucanos não só dizem e afirmam que não vão eliminar os programas sociais, como podem ampliar, porque eles são muito baratos para o governo.
Podemos dizer, então, que o sistema político já não nos representa. O discurso de que ruim com Dilma, pior com o Aécio, entre os mais pobres é verdadeiro, mas isso não está próximo da solução liberal da questão da cidadania; está muito próximo à caridade cristã, que é algo substancialmente diferente.
"Simulam estar resolvendo a questão social sem tocar na propriedade e no poder" |
IHU On-Line - Como chegamos até esse cenário e qual tem sido a contribuição dos intelectuais, principalmente dos Cientistas Sociais, para pensar o Brasil?
Nildo Ouriques - Primeiro há uma derrota acadêmica; as universidades nunca estiveram tão alienadas em relação aos grandes problemas do Brasil. Nunca, não há antecedentes, nem durante a ditadura, nem durante o governo de Sarney, nem depois de 1988. As universidades estão fechadas sobre si mesmas.
Falam que o Brasil tem um academicismo dominante, mas temos poucos intelectuais. Temos pessoas com currículo Lattes exuberante e contribuição intelectual nula. Por quê? Porque em 1994, Paulo Renato Souza inventou no Brasil este sistema de avaliação, que veio do Banco Mundial. Ele funcionou durante os oito anos do governo Fernando Henrique e nós todos pensávamos que esse sistema seria banido no governo Lula. Mas ao contrário, foi ampliado e permanece no governo Dilma. De tal maneira que quando os professores são avaliados pelos próprios pares, a partir de artigos e entrevistas, ocorre um desastre porque o pensamento não encontra validação social.
Colonialismo intelectual
Os universitários, portanto, não precisam prestar contas à população nem à opinião pública; eles precisam prestar contas para a burocracia universitária e para seus “coleguinhas”. Isso criou um cenário de cumplicidade, e não de companheirismo, de acomodação, e não de crítica e, sobretudo, se fortaleceu a ideia e a prática de que o fundamental vem de fora, do exterior. Quer dizer, a universidade está organizada a partir de um colonialismo intelectual e científico gigantesco, de modo que o analfabetismo nas Ciências Sociais é dominante. A maior parte dos acadêmicos exitosos é aquela que consegue repetir o tratado de justiça de John Rawls, a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas ou qualquer outra quinquilharia de Boaventura de Sousa Santos.
Enfim, não há pensamento próprio e há um duplo desconhecimento: um desconhecimento da contribuição brasileira ao pensamento crítico e o desconhecimento gigantesco e já inaceitável, que beira ao ridículo, que é o desconhecimento do pensamento crítico latino-americano.
IHU On-Line – O senhor fala em "colonialismo intelectual e científico" na área das Ciências Sociais nas universidades brasileiras. Como isso se manifesta? Quais são as ideias que colonializam o pensamento universitário?
Nildo Ouriques - Isso desde sempre é assim. Desde sempre a universidade brasileira foi organizada por uma carga colonial gigantesca, desde que aqui começaram as faculdades de Medicina e de Direito. As primeiras universidades brasileiras nascem nesse impulso. Nós não temos a tradição, por exemplo, do Peru na Universidade de São Marcos ou da Universidade Nacional Autónoma de México - UNAM, no México. Essas são universidades do século XVI. As nossas universidades nascem tardiamente e como expansão colonialista a partir dos Bragança, organizando, a partir dos interesses imperiais e — já chamemos assim — republicanos, um mundo universitário enquanto típica organização para as elites. Não havia nada de universidades de massa, nada vinculado aos setores populares.
Universidade brasileira e o ideário francês
A universidade chamada moderna, essa que se estabeleceu no século XX, nunca rompeu com isso, ao contrário, veja a experiência da Universidade de São Paulo - USP, a nossa maior universidade. A USP é uma criação de 1934, é uma resposta do que tinha de pior na elite paulista contra a Revolução de 30, capitaneada por Getúlio Vargas, sendo uma espécie de construção de um estado burguês na periferia capitalista. Getúlio Vargas e os seus discutiam a importância da Revolução de 30. Os paulistas, que perderam aquela empreitada, fizeram a contrarrevolução de 1932 e criaram, em 1934, a USP, precisamente contra os interesses nacionais e foram buscar aquilo que alguns chamam de uma missão civilizatória francesa para criá-la. Então começaram a descer aqui no Brasil figuras como o antropólogo Lévi-Strauss, o historiador Fernand Braudel, e assim por diante, ou seja, um conjunto de figuras que não eram importantes, mas que se fizeram importantes no Brasil e se fizeram intelectuais no mundo, colonizando o Brasil. Então a USP já é essa universidade francesa de ultramar, isso em 1937, 1940, e essa tendência ficou até a ditadura.
A universidade e o modelo PTucano
Ora, nós sabemos que depois de 21 anos de ditadura, o cenário nas universidades era devastador. Havia contestação política ao regime, havia defesa dos salários e, portanto, ativismo sindical, mas não havia uma reinvindicação para mudar profundamente os currículos, e nós continuamos assim, mal. Veio a democratização e nunca pudemos sequer gozar, nas Ciências Humanas, Tecnológicas e Biológicas, de uma revisão profunda desses planos de estudo que aproximasse o Brasil do seu povo, da sua história, da sua contribuição às Ciências Sociais e às Ciências Humanas. A universidade aprofundou esse modelo até chegarmos nessa tragédia que é o sistema PTucano.
Vou dar um exemplo de como isso se manifesta hoje a partir da minha análise junto com o professor Waldir José Rampinelli, em nosso livro anterior, que se chama Crítica à razão acadêmica. Quando era Ministro das Ciências e Tecnologia, Aloizio Mercadante foi a uma Assembleia, em uma comissão do Senado de análise de Ciências e Tecnologia e disse, categoricamente, que quase 80% das publicações mundiais sibre a copaíba — que é anticancerígena, analgésica, tem um conjunto de propriedades medicinais — são feitas por doutores brasileiros a partir de papers publicados pelos brasileiros, mas no Brasil não temos nenhuma patente sobre a copaíba. Existem 17 patentes dos Estados Unidos, sete da Inglaterra, três da China e nenhuma do Brasil. Então, temos um sistema em que os biólogos, os especialistas escrevem um artigo sobre a copaíba e o publicam numa revista estrangeira — que eles chamam de revista internacional, mas que de internacional não tem nada. No exterior funciona um complexo entre empresa privada, multinacional, Estado e universidade. Nossos pesquisadores participam desse complexo, produzindo pesquisas no exterior, mas as patentes são feitas lá. As multinacionais criam um produto, vendem na farmácia, e o nosso pesquisador, quando tem algum problema, compra esse produto e paga royalties para os países estrangeiros.
O sujeito fica orgulhoso porque publicou em uma revista em inglês e não entende que isto é a morte científica, a dependência tecnológica e a miséria do nosso país enquanto cria riqueza para os demais países. Isso tudo precisa ser revisado.
IHU On-Line - Qual é a sua avaliação do Ministério da Educação?
Nildo Ouriques – Nós há muito tempo não temos um Ministro que efetivamente entenda de educação, não há nem vestígios em ter alguém como Darcy Ribeiro entre nós. A pasta da Educação tem um orçamento minúsculo, menos de 3,5% do PIB. Observamos que não é só a escolha do Ministro que é equivocada. O que poderá ocorrer na educação se não houver uma revisão radical deste tipo de comportamento universitário?
O que dizer do setor privado, que ganha suculentos recursos do governo federal, subsídios de toda forma, do ProUni, do Fies, de todos esses mecanismos de financiamento público para empresas privadas, que se transformou, durante o lulismo e durante o governo da presidente Dilma, num suculento negócio, enquanto nas universidades nós tivemos uma expansão degenerativa?
Obviamente há uma expansão, há salários relativamente estáveis, que já estão esgotados agora, não há greves, mas a universidade está fechada sob si mesma, sem contribuição científica nenhuma. O Brasil é um anão no regime de patentes internacionais, não produz ciência e tecnologia. A universidade presta serviço para as empresas, mas isso não é pesquisa científica e tecnológica.
Barbárie na Educação brasileira
Quem manda na pasta da Educação é o Ministério da Fazenda. Então nós temos uma situação perversa, porque não só não há recursos, como o governo não quer mudar nada nas universidades e na educação brasileira. Então ficam inventando Enem e todas essas quinquilharias. Desde que me entendo como professor, vejo bons projetos na Educação, só que nenhum consegue resolver o problema educacional; esse é o ponto.
Esse pessoal que é encantado com política pública acha que a situação melhorou, porque criaram a Fundação para o Desenvolvimento do Ensino, Pesquisa e Extensão - Fundepe, mas a verdade é que nunca saímos do buraco, o desastre continua, há uma barbárie na Educação brasileira; é uma catástrofe completa. Aproveita-se muito pouco do que é feito.
IHU On-Line - A crise do “menos pior” apareceu durante o processo eleitoral e se manifesta na baixa popularidade da presidente. Como as Ciências Sociais podem colaborar para que possamos sair desse impasse do “menos pior”?
Nildo Ouriques – Primeiro, as Ciências Sociais deveriam pensar; pensar não é produzir ideologia, produzir ideologia é justificar o que está aí. Grande parte das Ciências Sociais trabalha para justificar os dois bandos: um bando mais conservador, que busca todos os argumentos necessários para invalidar o governo, e um bando conservador também, mas de orientação mais liberal e turbinado pela caridade cristã, que quer justificar o governo. Nenhum dos dois bandos, portanto, está no pensamento crítico, que é pensar desde uma perspectiva crítica com independência. Não é adequar o pensamento à realidade, é colocar o pensamento e a reflexão crítica cortando a realidade; essa é a questão essencial. Então as Ciências Sociais têm se limitado a este triste papel de vender a sua caneta, os seus textos, para justificar um dos dois bandos em ação, justificar o sistema PTucano.
Se você considerar que estes são os mais vulneráveis ao colonialismo e ao eurocentrismo, eles também não pensam sem a ajuda decisiva de um pensador europeu ou estadunidense. Citei aqui Habermas, John Rawls, Boaventura ou Pierre Bourdieu, ou qualquer um deles. Os sociólogos não sabem pensar a partir da realidade e conhecendo os teóricos brasileiros, fazer a crítica aos pensadores europeus e estadunidenses. Eles se transformam em meros repetidores.
IHU On-Line - Um das críticas que foram feitas ao PT, logo no início do governo Lula, foi de que o governo de alguma maneira cooptou os movimentos sociais. A relação de muitos intelectuais brasileiros com o projeto que o PT apresentou, de alguma maneira contribuiu para minar também o campo das Ciências Sociais no Brasil?
Nildo Ouriques – O processo de cooptação é real, mas veja, a cooptação sempre tem dois lados: o cooptador e o cooptado. Os movimentos sociais anteriores ao processo de democratização e mesmo os que alimentaram o petismo cego tinham limitações políticas e ideológicas gigantescas — veja o bom comportamento do MST durante o governo Dilma, que assentou menos sem-terra que o governo Collor, segundo os dados do MST. O que é isso se não uma submissão? Veja que operação bárbara: eles submetem a prática política à dinâmica do voto, quando deveriam fazer exatamente o inverso, submeter a dinâmica do voto à práxis política. Então o MST deveria ocupar terra como nunca durante o governo Dilma e o governo Lula, mas não o fez. Chegou ao absurdo de dizer que se o Aécio ganhasse, eles iriam ocupar um monte de terras; isso deveria estar sendo feito agora. Enquanto eles não fazem isso, a Dilma o que faz? Dá o Ministério da Agricultura para Kátia Abreu, a popular senadora motosserra, a dama do latifúndio, do agronegócio. Então o MST tinha que ter esquentado a chapa. Por quê? Porque só com intenso movimento social para poder ser ouvido. À medida que os movimentos sociais ficarem submetidos à dinâmica do voto, nos encontraremos a cada quatro anos para votar no “menos pior”.
Com os intelectuais também aconteceu o mesmo. Quem fica pensando que o drama brasileiro é com o confronto entre o democrático e o autoritário, o atrasado e o moderno, não vai tirar nunca o Brasil do buraco, porque esquece que o Brasil é um país dependente e subdesenvolvido, e que é preciso ter um programa, que chamo de “a revolução brasileira”, para superar a dependência ao subdesenvolvimento; não tem outra saída.
Hoje os intelectuais argumentam que não têm força para isso. Não têm força agora, mas depois terão. Esses intelectuais, quando entraram no PT e fortaleceram a CUT, também não tinham forças para chegar ao governo, mas depois tiveram. Mas agora, decretar o fim da história, que é o que eles fazem na prática, de maneira cínica e modesta, é inaceitável. E essa intelectualidade se submeteu ao governo porque nunca teve um pensamento efetivamente crítico, sempre foi uma intelectualidade muito pró-crise à adaptação. E qual é a novidade dessa intelectualidade? É que ela encontrou a caridade cristã dizendo que agora nós estamos tratando os pobres. Bom, estamos tratando de maneira pobre os pobres. Dando o quê? As migalhas de uma riqueza que não para de crescer. A presidente Dilma e o ex-presidente Lula dizem que nós somos a sexta ou a sétima economia do mundo medida em PIB, mas os programas sociais são uma miséria, uma migalha. Então a riqueza cresce, mas o avanço social não aparece.
"O grau de analfabetismo funcional é muito alto, os alunos chegam à universidade sem saber pensar, ler e escrever" |
IHU On-Line – O que seria pensar criticamente o Brasil hoje?
Nildo Ouriques – Para começar, deveríamos conhecer os grandes autores brasileiros.
IHU On-Line – Quem são eles? Seriam nomes como Celso Furtado, Florestan Fernandes?
Nildo Ouriques – Não. Celso Furtado, Florestan Fernandes e Caio Prado são festejados pela mídia de São Paulo. Acabo de voltar da Bahia e encontrei lá um advogado chamado Walter da Silveira, que tem uma publicação gigantesca e é um dos maiores se não o maior crítico de cinema da história do Brasil, e é desconhecido. Álvaro Vieira Pinto é um filósofo completamente desconhecido entre nós. Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotonio dos Santos são sociólogos de primeira grandeza. O médico Antônio da Silva Melo, fundador da Revista Brasileira de Medicina, extraordinário pensador que escreveu um livro chamado Nordeste, ou a Superioridade do homem tropical, uma obra gigantesca, desconhecida.
Depois tem que conhecer os autores latino-americanos, a grande contribuição do pensamento, da cultura e das Ciências Sociais críticas da América Latina, que vai de Pablo Gonçalves Casanova, no México, a Atilio Borón, na Argentina, passando por Ludovico Silva, na Venezuela, e uma quantidade de autores cubanos, guatemaltecos, equatorianos.
"Enquanto não ocorrer uma batalha genuína das ideias, vamos continuar nesse marasmo completo que têm sido as Ciências Sociais e a universidade brasileira" |
IHU On-Line – O senhor diz que tanto à direita quanto à esquerda do espectro político, hoje todos se declaram desenvolvimentistas. Por que todos seguem por esta linha?
Nildo Ouriques – Primeiro, porque ninguém quer se definir como neoliberal, nem mesmo os neoliberais. Então os neoliberais, como Gustavo Franco, dizem que são desenvolvimentistas. Em segundo lugar, o desenvolvimentismo goza de prestígio entre nós porque ele é uma promessa de que vamos ter democracia, desenvolvimento social, crescimento econômico sustentável, respeito ao meio ambiente, mas isso tudo é uma ideologia. O que estamos vendo é uma agressão, crimes ecológicos gigantescos, assassinatos de lideranças no campo, raquitismo científico e tecnológico, degradação econômica. O PIB cresce nos serviços e na agricultura, ou seja, o crescimento do PIB reforça a posição de um país tipicamente subdesenvolvido e dependente. Mas é simpático apresentar-se como desenvolvimentista.
IHU On-Line – Por que o senhor acredita que a saída para pensar o Brasil perpassa necessariamente por uma teoria marxista?
Nildo Ouriques – Porque sem ela não há nenhuma possibilidade. A realidade está demonstrando; não é uma hipótese minha para o futuro.
IHU On-Line – O senhor faz uma crítica à utilização de teorias de pensadores estrangeiros para pensar o Brasil, mas retoma Marx?
Nildo Ouriques – Entendo a sua pergunta, mas aqui não se trata de escolher um autor pela nacionalidade, mas sim pela contribuição crítica. Marx tem uma contribuição intelectual fortíssima. Você não pode prescindir disso, tal como não pode prescindir da física de Newton a despeito de ela ter uma origem específica. É uma contribuição universal.
Todos esses produtos de consumo que estão na academia hoje não representam pensadores universais e tampouco têm esse peso específico que tem a teoria de Marx, que é um método para interpretação da realidade. Temos de pensar a realidade brasileira; é disso que reclamo. Se para isso nós recuperarmos a teoria do valor, desde Adam Smith, Ricardo ou Marx, ou a crítica à ideologia de Stuart Mill, ou um conjunto de contribuições importantes e, se você quiser, a crítica à Igreja de Erasmo de Rotterdam, tudo bem. Mas o problema é como usá-las desde uma perspectiva própria, para interesses próprios, e concretamente para uma coisa que é iniludível: pensar a Revolução Brasileira, que é o que temos que pensar.
IHU On-Line – O que significaria esta Revolução Brasileira?
Nildo Ouriques – Um gigantesco processo de transformação do Estado, da economia, das classes sociais e da cultura. Uma transformação radical, no campo da cultura, descolonização completa e enfrentamento da indústria cultural from States. Em segundo lugar, toda a riqueza produzida no Brasil, aqui deve permanecer. Isso significa uma ruptura no terreno da Economia. E em terceiro, fazer um sistema político em que a maioria mande, ou seja, uma democracia participativa. Esses seriam pontos de partida. Além disso, duas questões são fundamentais: a luta pela soberania e a integração latino-americana, porque sem ela não somos capazes de enfrentar as grandes potências. A Europa e a Alemanha fizeram a Comunidade Econômica Europeia, os Estados Unidos fizeram o NAFTA com o México e o Canadá, e nós temos que fazer o nosso bloco para poder fazer política internacional, para deixar de ser um anão na política internacional.
"À medida que os movimentos sociais ficarem submetidos à dinâmica do voto, nos encontraremos a cada quatro anos para votar no “menos pior”" |
IHU On-Line – Mas a teoria marxista ainda teria sentido hoje para equalizar esses pontos?
Nildo Ouriques – Mas é óbvio que sim. O PT foi criado, primeiro, pelo movimento operário do ABC, com sindicalistas ultramoderados, do qual a expressão máxima é o Lula, com a esquerda marxista que vinha da luta armada e da derrota militar contra a ditadura, e os demais movimentos sociais, que deram peso ao partido, e depois entrou a Igreja católica. Desde o começo, foi muito difícil dentro do petismo, porque a inclinação crítica e a opção pelo socialismo figurou de maneira retórica, embora estivesse no programa do partido. Nunca esqueço que estava escrito no programa: “uma sociedade sem explorados e exploradores”; isso é o socialismo. Mas depois, com a hegemonia de Lula e o chamado lulismo, que é a parte mais cínica do partido, o PT se encarregou de transformar aquilo no caminho mais fácil para acomodação com as classes burguesas. Mas veja, a miséria resultante disso é completa; essa é a questão.
Falo de um pensamento crítico que inclua o marxismo, porque nós temos um conjunto de pensadores críticos da América Latina que não são marxistas, mas são críticos. Esse pensamento crítico, que engloba o marxismo, foi minoritário e está avançando a passos largos agora, recuperando o terreno, e é dele que vai sair a vitalidade para um novo programa da Revolução Brasileira, uma atualização, da qual o PT será aqui, parafraseando Marx, “apenas uma cicatriz da história, uma experiência que foi importante porque rompeu o isolamento da esquerda marxista com as massas, mas que fracassou rotundamente”. É preciso dizer claramente que o PT foi um fracasso histórico, mas como fracasso histórico, persiste a lição. Não há mais sentido nenhum permanecer no partido nem se transformar num antipetista, porque se trata de um evento histórico que já fracassou. Temos que tirar as lições e seguir em frente.
IHU On-Line – Tem se produzido pensamento político nas Ciências Sociais?
Nildo Ouriques – Certamente existem pessoas interessadas no tema, trabalhando com uma certa honestidade intelectual e com algum rigor teórico. O problema é que a Ciência Política no Brasil empobreceu terrivelmente, porque grande parte dos cientistas políticos está dedicada em ver a dinâmica do voto, ou em pensar o sistema político desde uma perspectiva liberal, ou em observar o processo político a partir desta metodologia de consumo. Enfim, esses são estudos absolutamente parciais que dão uma pequena contribuição ao debate, mas não se trata de uma visão totalizante e crítica. Essa visão desapareceu porque há uma grande ruptura entre a geração crítica dos 1960 e parte dos 1980 com as gerações atuais.
O academicismo promoveu esta profunda ruptura, o empobrecimento do sistema político contribuiu nessa direção, de tal modo que se não recuperarmos o programa de pesquisa sobre o subdesenvolvimento e a Revolução Brasileira, não haverá novas contribuições e não haverá nem forma de valorizar aquela contribuição notável dos pensadores que já mencionei anteriormente.
Se ficarmos sem pensar a Revolução Brasileira, a Ciência Política não irá revitalizar, porque o dominante será uma crítica liberal, tal como nós estamos vivendo agora. O que os cientistas políticos vão ficar fazendo agora? Eles ficarão discutindo se o atual sistema de representatividade eleitoral é bom ou pode avançar? Se devemos avançar ou não para o voto distrital? As grandes reformas não vão estar em discussão.
IHU On-Line – O que seria uma reforma política adequada?
Nildo Ouriques – Em primeiro lugar, seria o fim do sistema bicameral, ou seja, fazer no Brasil um sistema unicameral e extinguir, portanto, o Senado. Basta observar a origem do Senado: é uma casa em que só entram “cardeais”; um deputado pode ser eleito com 18 anos, mas um senador, não. Segundo, é impossível que alguém das classes populares chegue a ser eleito senador se não estiver muito bem enturmado nesse sistema político controlado pelas elites, não só num partido como o PSDB, mas inclusive num partido como o PT, que é cada vez mais um partido de natureza empresarial. Terceiro, tem que devolver aos partidos políticos a vitalidade popular, portanto, o financiamento dos partidos tem que vir da militância. Quarto, o voto tem de ser livre, não pode ser voto obrigatório. Quinto, tem de haver uma radical democratização e fim dos monopólios dos meios de comunicação, porque o sistema político não é o sistema eleitoral.
IHU On-Line – Quais discussões deveriam estar em pauta para pensar um projeto de país?
Nildo Ouriques – A primeira discussão seria a recuperação da soberania nacional; nós perdemos totalmente essa ideia e isso tem íntima relação com o avanço da privatização durante o governo FHC, mas também com as concessões feitas pela presidente Dilma. Estradas, portos, petróleo foram privatizados. Todas essas questões teriam de ser revistas. Posteriormente seria necessária uma redefinição radical da relação entre o Estado e o empresariado brasileiro, que está marcada pelo caráter ultraparasitário da posição burguesa, que assalta o BNDES, o câmbio, endivida o país, e que quer subsídios, isenções. Terceiro, é preciso fazer uma auditoria da dívida interna e externa, que, aliás, é uma determinação constitucional que nem FHC nem Lula e nem a presidente Dilma fizeram. Essa auditoria tem de ser convocada pelo presidente — não adianta dizer que o Congresso é conservador —, o presidente tem de convocar, porque nós não podemos continuar destinando 44-46% dos impostos para pagamento de serviços da dívida.
É preciso ainda fazer uma drástica reforma agrária que barateie os alimentos e que elimine a agricultura de exportação. Além disso, é preciso controlar a remessa de lucro das multinacionais, isso é fundamental. E, claro, uma redefinição da propriedade do poder, que vai desde a redefinição da taxa de juros até a cobrança do imposto sobre herança, que deve ser pesadíssimo, e uma política consistente de elevação do salário mínimo.
"Quem fica pensando que o drama brasileiro é com o confronto entre o democrático e o autoritário, o atrasado e o moderno, não vai tirar nunca o Brasil do buraco" |
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação da universidade pública brasileira? Quais são os desafios que enxerga para o Ensino Superior brasileiro?
Nildo Ouriques – Primeiro, é preciso ter uma grade curricular na graduação que se nacionalize, ou seja, uma universidade que volte a tratar os problemas do Brasil. Em segundo lugar, é preciso ter rigor científico, ou seja, pensar e educar desde critérios científicos, portanto deve haver uma radical valorização da graduação. A política atual debilita a graduação e favorece a pós-graduação, mas com esta política temos cada vez mais alunos mais débeis para a pós-graduação, por razões óbvias. Em terceiro lugar, é preciso eliminar esse sistema de pontuação da Capes. Isso tem de ser extinto e no lugar não precisa ser colocado nada. Cada universidade que elabore as suas formas de avaliação, que tenha uma validação social do conhecimento.
IHU On-Line – Não há risco de os pesquisadores produzirem cada vez menos?
Nildo Ouriques – Não, eles produzem quase nada hoje. O que é produzir? Entendo a sua pergunta: se hoje nós estabelecermos o mínimo, eles vão deixar de fazer o mínimo. Que deixem de fazer o mínimo, que exibam ainda mais a miséria da universidade brasileira. O que não pode é ter uma simulação em que eles “refritam” artigos, simulam a produção acadêmica, e não tiramos a universidade do buraco.
O Estado tem de estabelecer áreas prioritárias do desenvolvimento científico e tecnológico e da cultura nacional. É preciso estabelecer as áreas de ponta da universidade e o financiamento tem de estar de acordo com isso, e o refinanciamento tem de ser de acordo com o resultado não de artigos e papers, mas de patentes.
Quem recebeu ou publicou, mas não patenteou, não pode ser financiado novamente. A questão não é publicar, é produzir conhecimento, ciência e tecnologia para o país. É preciso elaborar um sistema para isso, porque o atual sistema é uma fraude. E ter reitores efetivamente preocupados com o futuro da universidade brasileira, o que efetivamente não é o caso.
IHU On-Line – Com os ajustes anunciados pela presidência, as universidades federais estão passando por dificuldades? Qual é a situação?
Nildo Ouriques – As universidades já estavam passando por dificuldades e agora têm um corte adicional de 30%, mas a vida nunca foi folgada nas universidades. Isso mostra como os reitores são quase analfabetos políticos, e mais do que representantes nossos junto ao MEC, são delegados do MEC dentro das universidades. Eles são os primeiros a desrespeitar a autonomia universitária e alguns não merecem desfrutar desse estatuto. Muitos reitores são medíocres intelectualmente, tímidos institucionalmente e servis politicamente; é um desastre.
"Os sindicatos revelaram no dia 13-03-2015 sua imensa incapacidade de mobilizar as bases, e o petismo guardou silêncio completo sobre a manifestação" |
IHU On-Line – Muitos cursos das áreas de humanas não têm preenchido a totalidade de vagas disponíveis. A que você atribui esse desinteresse crescente pelas áreas de humanas?
Nildo Ouriques – Isso é típico de um país subdesenvolvido, que tem as faculdades de Engenharia lotadas e as de Ciências Sociais esvaziadas. Em segundo lugar, isso tem a ver com a estrutura produtiva do país, com os salários pagos, etc. Em terceiro lugar, há algo fundamental: as Ciências Sociais são aquelas que estão mais submetidas a uma carga colonial e, portanto, são aquelas menos interessantes do ponto de vista político, porque quase não tocam na realidade brasileira, e quando o fazem, é de maneira superficial e desde uma perspectiva liberal e não desde uma perspectiva crítica. Portanto, para retomar a vitalidade das Ciências Sociais, é preciso ter este programa da Revolução Brasileira.
O ponto fundamental de todo o cientista social é: Como superamos o subdesenvolvimento e a dependência? Como superamos a falta de soberania? Como construímos a segunda emancipação dos nossos países? Sem isso as Ciências Sociais seguirão sendo, no máximo, uma consciência ingênua sobre a realidade, jamais uma consciência crítica.
Parte da miséria tem a ver com as estruturas econômicas e outra parte tem a ver com aquilo que se ensina em sala de aula. Sem uma profunda revisão de tudo isso, as Ciências Sociais seguirão sendo menos que o primo pobre nas universidades brasileiras, porque primo pobre já são as Engenharias, apesar das tecnológicas. Nós sairemos da marginalidade em que nos encontramos, mas para isso é preciso abandonar esse bom-mocismo, recuperar o pensamento crítico latino-americano e enfrentar os dramas do país.
IHU On-Line - Qual sua avaliação em relação às manifestações que aconteceram no país este ano? Qual o significado destas em relação ao Brasil atual?
Nildo Ouriques – Revelam o colapso da orientação do governo, porque Dilma teve uma vitória eleitoral a partir de uma proposta, mas mudou radicalmente o rumo da política econômica quando assumiu o governo. Isso mais que um problema de ordem moral, como os tucanos querem ver, desorienta completamente o eleitor progressista e dá coragem para o eleitor conservador.
A presidente Dilma, a exemplo do ex-presidente Lula, reafirma a característica principal e a natureza conservadora dos governos do PT, porque a principal característica dos governos Dilma e Lula é jamais convocar o povo para uma luta. Essa é a diferença do PT em relação aos outros governos da América Latina. Veja o caso do governo de Rafael Correa, no Equador, Hugo Chávez e Maduro na Venezuela, mesmo o governo mais conservador, como o de Cristina Kirchner, tem a característica fundamental de convocar as massas para fazer política. A presidente Dilma quer sempre o acordo com a Avenida Paulista e o acomodamento no parlamento. Mas esse é o caminho mais curto para a morte política.
Depois das manifestações, o governo continua sem dar um passo naquilo que é essencial, não muda o rumo da economia e não amplia aliados nas classes subalternas. Veja que o governo Dilma assentou 13 mil famílias, isso é menos do que assentou o governo do General João Batista Figueiredo, para falar só na reforma agrária. Ela não tem aliados no movimento operário e no movimento camponês e, por último, ela não toma medidas que não sejam medidas que a burguesia quer. Dia 15-03-2015 nós vimos iniciativas das classes dominantes, dos partidos de direita, que não adianta dizer que é democrático, que é legítimo, porque é, ao contrário, um conflito político. E a presidente não toma nenhuma medida na área dos meios de comunicação. A famosa regulação da mídia, a democratização da mídia nem passa perto do Palácio do Planalto.
O PT é o principal partido da ordem burguesa, fecha cada dia mais com o empresariado, o latifúndio, com as multinacionais e cala os movimentos sociais. É incapaz, como mostrou no dia 13-03-2015, de mobilizar junto aos sindicatos e aos movimentos sociais. Os sindicatos revelaram, no dia 13-03, sua imensa incapacidade de mobilizar as bases, e o petismo guardou silêncio completo sobre a manifestação. Nesse sentido, o quadro de domingo, 15-03-2015, foi só o primeiro capítulo de uma longa luta político-partidária em que a direita brasileira, os liberais brasileiros querem avançar por um ajuste cada vez mais forte, com a cumplicidade do PT, reduzindo a política ao aspecto moral, porque a corrupção é endêmica do Estado brasileiro.
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A falência do sistema político PTucano. Entrevista especial com Nildo Ouriques - Instituto Humanitas Unisinos - IHU