21 Janeiro 2019
"O atual sistema financeiro globalizado e globalizante está armado (!) de um poder muito superior ao dos Estados nacionais, ignora qualquer fronteira, mantêm-nos como reféns pelo incremento que estimula ao crescimento da dívida pública de cada um, perverte completamente o sentido do que é uma economia produtiva, desvia trilhões de dólares frustrando diretamente todo o esforço político, hoje indispensável para matar a fome de milhões de pessoas, salvar a terra, o meio ambiente. Tudo direcionado estritamente à pura especulação, contando com paraísos fiscais para livrar-se de pagar qualquer imposto", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Os horários nobres da TV são tomados por notícias sobre crimes, em sua maior parte. Aos vídeos tomados por câmeras de segurança se reserva espaço preferencial, quando captam violências praticadas contra pessoas e o patrimônio alheio, perseguições policiais de bandidos, os quase diários assaltos a Bancos. Um clima generalizado de medo e insegurança é criado assim em toda a população de um modo marcadamente sensacionalista, acompanhado de duríssimas críticas ao Estado como sendo o único e exclusivo responsável por esses acontecimentos.
Num início de ano em que o presidente da República, como aconteceu esta semana, assina um decreto permitindo a cada cidadão andar armado, ainda que sob certas condições, dá a entender que ele está de acordo com essa alegada incapacidade estatal. A publicidade daí decorrente pretende convencer de que essa promessa de campanha eleitoral assim cumprida, vai enfrentar e diminuir a criminalidade, agora conferindo a cada cidadã/o autoridade para agir por conta própria...
Ainda que se desconsiderem a improcedência e a inconstitucionalidade da medida, a experiência passada ensina que remédios aviados apressadamente, sob a comoção da hora, propagandeados como infalíveis para curar doenças de causas nem sempre bem conhecidas, dão resultados até contrários às suas alegadas virtudes. A Anistia internacional já demonstrou como uma arma entregue ao próprio Estado, do tipo pena de morte para eliminar um criminoso, não deu certo.
Existem alguns tipos de assalto bem mais graves, provocando danos irreversíveis aos direitos sociais de milhões de pessoas que, embora mereçam atenção e ação prioritárias de qualquer governo, passam inteiramente despercebidos por essa multidão de vítimas. São praticados pelo sistema financeiro presente em todo o mundo, imunes a qualquer imputabilidade, de modo formalmente legal. Colocar uma arma na mão delas, para esses assaltos, de efeitos individuais e sociais muitíssimo mais dramáticos, não vai adiantar nada.
Um livro extraordinariamente oportuno sobre esse sistema, dirigido e sustentado por corporações e Bancos, poderia servir de guia para cada brasileira/o ler, nesses primeiros meses de um período geralmente dedicado a férias no Brasil. É do conhecido professor e economista Ladislau Dowbor, publicado em 2017, editora Autonomia Literária, de São Paulo. Sob o titulo “A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta”, o livro está fundamentado em sólida pesquisa nacional e internacional. Exibe estatísticas publicadas pelos próprios Bancos, como o Banco Mundial e o Banco Central do Brasil, detalha opiniões de autoridades reconhecidamente capazes para analisar e criticar a economia do mundo todo como, entre outros, Thomas Piketty, Ignacy Sachs, autores premiados com o Nobel como Joseph Stiglitz e Amartya Sen. Destaca alguns brasileiros, como Luiz Gonzaga Belluzzo, Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira e Marcio Pochmann.
Em números, tabelas estatísticas de várias fontes, gráficos acessíveis à compreensão até de quem não domina o economês, Ladislau demonstra como o atual sistema financeiro globalizado e globalizante está armado (!) de um poder muito superior ao dos Estados nacionais, ignora qualquer fronteira, mantêm-nos como reféns pelo incremento que estimula ao crescimento da dívida pública de cada um, perverte completamente o sentido do que é uma economia produtiva, desvia trilhões de dólares frustrando diretamente todo o esforço político, hoje indispensável para matar a fome de milhões de pessoas, salvar a terra, o meio ambiente. Tudo direcionado estritamente à pura especulação, contando com paraísos fiscais para livrar-se de pagar qualquer imposto.
Dogmas sustentados por um poder dessa dimensão, fortemente amparados pelos representantes que ele infiltra nos três Poderes do Estado e pela mídia que ele compra, não é de se admirar o seu efeito mais perverso: a criação de uma cultura majoritária de aceitação acrítica dos seus postulados. Vender ao povo a versão de que o Estado, por seu alegado gigantismo e ineficiência, é o responsável pelos péssimos efeitos das nossas políticas públicas destinadas a garantir os direitos sociais é um dos meios utilizados para isso, uma disfunção como essa podendo ser resolvida somente pelo crescimento econômico, e privatização de tudo.
Ladislau ataca de frente esse e outros mitos. Tomado o subtítulo do seu livro, é interessante destacarem-se alguns dos seus comentários sobre cada uma das denúncias lá antecipadas pelo autor. É oportuno relembrar-se, porém, que toda a sua argumentação indica fontes idôneas de análise crítica da economia feita aqui e em todo o mundo.
Sobre a dominação financeira, o autor mostra como se concentra o dinheiro com finalidade exclusivamente especulativa: “Um exemplo simples ajuda a entender o processo de enriquecimento cumulativo: Um bilionário que aplica um bilhão de dólares para render módicos 5% ao ano, está aumentando a sua riqueza em 137 mil dólares por dia. Não dá para gastar em consumo esta massa de rendimentos. Reaplicados, os 137 mil vão gerar uma fortuna ainda maior. É um fluxo permanente de direitos sobre a produção dos outros, recebidos sem tirar as mãos do bolso.”
Sobre a “pirâmide da riqueza global”, comenta: “No topo, os adultos que têm mais de um milhão de dólares são 33 milhões de pessoas, o equivalente a 0,7% do total de adultos do planeta. Somando a riqueza de que dispõem, são 116,6 trilhões de dólares, o que representa 45,6% dos 256 trilhões da riqueza avaliada. É importante lembrar que as grandes fortunas desta parte de cima da pirâmide não são propriamente de produtores, mas de gente que lida com papéis financeiros, fluxos de informação ou intermediação de commodities. O topo da pirâmide é particularmente interessante e composto pelos chamados ultra ricos.” {...} “Se ampliarmos o 0,7% mais ricos para 1%, constatamos que este 1% tem mais riqueza do que os 99% restantes do planeta. Note que parte importante das grandes fortunas não aparece por estar em paraísos fiscais”... {...} “Atualmente, oito indivíduos detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo.”
Como isso se reflete nas “soberanias” de cada país, Ladislau demonstra logo depois, quando critica a “captura do poder político”, mesmo que as aparências dos Estados autoproclamados democráticos continuem se apresentando como tais. Note-se o que ele chama de “sequestro da democracia” pelo “endividamento público”:
“O poder político apropriado pelo mecanismo da dívida constitui uma parte muito importante do mecanismo geral. Os grandes grupos financeiros têm suficiente poder para impor a nomeação dos responsáveis em postos chaves como os Bancos Centrais ou os Ministérios da Fazenda, ou ainda nas comissões parlamentares correspondentes, com pessoas da sua própria esfera, transformando pressão externa em poder estrutural internalizado. A política sugerida aos governantes é de que é menos impopular endividar o governo do que cobrar impostos. Essas instituições financeiras são as donas da dívida pública, o que lhes confere poder ainda maior de alavancagem sobre as políticas e prioridades dos governos. Exercendo esse poder, elas tipicamente demandam a mesma coisa: medidas de austeridade e reformas estruturais destinadas a favorecer uma economia de mercado neoliberal que, em última instância, beneficia estes mesmos Bancos e corporações. É a armadilha da dívida.”
Sobre a destruição do planeta, as consequências dessa dominação financeira e desse sequestro da democracia são ainda mais trágicas, bastando lembrar a intenção original do presidente, depois mudada, de se retirar do acordo de Paris: “Lembremos que o esforço global de se enfrentar a mudança climática, desenhado no acordo de Paris em 2015, estabeleceu o ambicioso objetivo de levantar 100 bilhões de dólares anuais para financiar as iniciativas do mundo em desenvolvimento que possam mitigar os impactos. Tal soma de recursos parece importante. No entanto, as pesquisas do Tax Justice Network, a partir da crise de 2008, mostram que, só em recursos não declarados e colocados em paraísos fiscais - portanto recursos que, além de não serem investidos, sequer pagam os impostos devidos - temos entre 21 e 32 trilhões de dólares.” {...} “O fato é que o que roda no mundo especulativo paralegal dos paraísos fiscais representa 200 vez mais do que o ambicioso objetivo da cúpula mundial de Paris.”
Com fina ironia sobre a linguagem da ONU, quando ela critica essa e outras aberrações do capital internacional “volátil”, caracterizado por “fluxos líquidos negativos”, diz o autor: “Os fluxos líquidos negativos” significam que os pobres estão financiando os ricos, ou seja, o sistema financeiro drena. Quando somos assaltados e nos roubam a carteira, em geral isso significa também um fluxo líquido negativo. A linguagem da ONU é imbatível.” Quando se ouve, pois, “pega ladrão”, como o autor refere em outro contexto, é bom se saber quem e porque está gritando...
Pelo que se comenta sobre as intenções do novo governo (?) em relação às terras indígenas e de quilombolas, sobre a venda do nosso território a pessoas e empresas estrangeiras, pode-se ajuizar do quanto vai ser posto em risco no país, para a proteção devida ao nosso meio ambiente.
De tudo quanto pode-se deduzir das lições escritas pelo Ladislau Dowbor, o enfrentamento e a eliminação dos assaltos a Bancos - mesmo condenada justamente essa prática criminosa - pode nos conduzir a um juízo extraordinariamente constrangedor - para se dizer o mínimo - sobre eles mesmos, pois é muito mais grave o que eles fazem aqui no Brasil e em todo o mundo.
Um revólver na mão de cada brasileira/o honesta/o, do modo preconizado pelo presidente, como o seu decreto pretende garantir, não vai impedir os assaltos denunciados pelo estudo deste economista. Nem lembrando a história do passarinho que quer contribuir para apagar com uma gota de água o incêndio da floresta dá para se entender o quanto essa providência ignora os verdadeiros perigos que todo a sociedade brasileira, o povo pobre daqui, especialmente, o que sofre da violação diária dos seus direitos humanos fundamentais sociais, corre o risco de enfrentar.
Não poderia ter havido sinal mais preocupante do que está por vir deste novo (des)governo. Sem alarmismo, muito menos receio ou desânimo, cabe estar-se vigilante. Se a resiliência contrária, popular e massiva, não se organizar e agir, o barco já muito frágil desse arremedo de democracia que temos aqui vai bater novamente no recife da ditadura.
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Dos assaltos aos Bancos aos Bancos que nos assaltam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU