06 Agosto 2020
"As crises econômica, política e ambiental não são novas, mas foram aprofundados pela Covid-19. O sofrimento causado pelo desemprego e pela precariedade das condições de trabalho aumentou consideravelmente. Além disso, estamos diante de autoridades sem compaixão, que não pautam a sua ação pelo diálogo, que não sabem fazer luto quando é necessário, e criar consensos para enfrentar juntos aquilo que só pode ser encaminhado coletivamente. Tudo isso desorganiza ainda mais a sociedade e aumenta tensões e conflitos", escreve CRB em carta publicada por CRB Nacional, 31-07-2020.
Estimadas Religiosas e Religiosos:
Na última Assembleia Geral Eletiva, decidimos como VRC “...estar presente onde a vida está ameaçada, responder aos desafios de cada tempo, tecendo relações humanizadoras...ouvir o clamor dos pobres e da terra, para que o vinho novo do Reino anime a festa da vida” (Horizonte). Também nos comprometemos “a promover iniciativas comunitárias e articuladas que gerem consciência crítica, inclusão social e cuidado da Casa Comum” (Prioridade 2).
Ninguém poderia imaginar que poucos meses após a Assembleia estivéssemos vivendo a crise atual. Naquela ocasião, as crises econômica, política, ambiental e religiosa já estavam em curso. Contudo, com o advento da pandemia todas elas foram intensificadas e o seu lado perverso emergiu com força devastadora, golpeando particularmente os mais pobres.
Diante dessa situação a VRC não pode calar. Como todas pessoas somos tocados (as) pela dor, fragilidade e impotência. Sentimos a necessidade de anunciar, denunciar e testemunhar a esperança do Reino. Estamos diante de um fenômeno complexo e desafiador que incide na vida de todos, mas principalmente dos mais pobres e excluídos. Não podemos ficar indiferentes, precisamos nos posicionar.
O que está acontecendo é trágico, inquietante, devastador e, por isso, requer um posicionamento. Estamos vivendo um tempo extraordinário, inesperado, que não tínhamos imaginado. Trata-se de uma situação que precisa ser compreendida e assimilada, inclusive do ponto de vista espiritual. Há um acúmulo de crises: sanitária, econômica, política, ambiental e espiritual. Estamos diante de uma globalização causada por um vírus, situação pela qual ainda não tínhamos passado. As crises econômica, política e ambiental não são novas, mas foram aprofundados pela Covid-19. O sofrimento causado pelo desemprego e pela precariedade das condições de trabalho aumentou consideravelmente. Além disso, estamos diante de autoridades sem compaixão, que não pautam a sua ação pelo diálogo, que não sabem fazer luto quando é necessário, e criar consensos para enfrentar juntos aquilo que só pode ser encaminhado coletivamente. Tudo isso desorganiza ainda mais a sociedade e aumenta tensões e conflitos.
As violências perpetradas contra mulheres, pobres, negros, indígenas, homossexuais, crianças, jovens e idosos, infelizmente são um continuum histórico em nosso país. Com a pandemia essa pérfida “normalidade” foi substancialmente agravada. Se a necessidade de mudanças era imperiosa antes da Covid-19, agora ela se transformou num ingente clamor. Por isso, nosso desafio como religiosas e religiosos é contribuir na construção de uma “nova normalidade”, pautada pela inclusão social e pelo cuidado da Casa Comum.
Outra questão é a crise espiritual, dado que é considerada por alguns autores como “guerra de deuses”. Quando alguém diz, por exemplo, “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, não está falando do Deus da fé cristã. É uma questão muito delicada porque está em jogo o testemunho do verdadeiro Deus, revelado por Jesus Cristo, exigência radical para os seguidores de Jesus, um testemunho que está em perigo na nossa sociedade brasileira quando o próprio Jesus e seu evangelho se tornam mal interpretados. O que faria Jesus se estivesse em nosso lugar neste momento? Podemos recordar aqui Mateus depois das bem-aventuranças quando menciona o Cântico do Servo do Senhor (Is 52,13-53,12), mas na forma ativa de Jesus. É a assunção de um sofrimento ativo, solidário, que se sofre na ação e na missão. Trata-se de uma solidariedade que acolhe o clamor, o sofrimento, venha de onde vier, como vier e que revela também a nossa impotência. É um momento ímpar e urgente que nos compete assumir.
Provavelmente um dos momentos mais difíceis, do ponto de vista humano, criado pela pandemia é a questão do luto. Poder despedir-se de um ente querido, rodeado de familiares, amigos e pela comunidade é fundamental na vida de qualquer pessoa. Mesmo que as razões sanitárias prescritas pelas autoridades sejam compreensíveis, fica muito difícil viver esse momento. Nenhum paliativo pode substituir a presença e a solidariedade. Mais do que qualquer resposta, fica o convite a refletir a partir da nossa condição de pessoas de fé, como viver, nestas condições, os delicados momentos de despedida de nossos entes queridos (as).
As tensões religiosas têm aumentado ultimamente. Constatamos divisões no âmbito da Igreja e da própria VRC. É uma realidade da qual não podemos mais eludir. A questão fundamental que precisamos colocar é: qual o profetismo que nos cabe neste momento como religiosas e religiosos? É um momento de discernimento, posicionamento e ação.
A sociedade acreditou por muito tempo que seria capaz de controlar a natureza por meio da tecnologia, mas o vírus nos colocou de joelhos. O que percebemos hoje, devido à globalização, que as conexões entre as vidas humanas são muito mais fortes do que imaginávamos. O bem-estar sanitário nosso também é o do vizinho. Uma consciência compartilhada de imunidade torna-se imprescindível. Mais do que independência é interdependência, que requer um compromisso pessoal e comunitário voltado à proteção mútua.
Durante o período da pandemia também presenciamos lamentáveis acontecimentos contra os povos indígenas e os negros (as). O racismo outra vez mostrou seus tentáculos mais sórdidos, tanto em nosso país quanto em outras nações. Há uma “episteme” racista que precisa ser desconstruída. É imprescindível superar o negacionismo, romper com os pactos de silêncio e a falácia da democracia racial. A crise sanitária provocada pelo coronavírus também expôs a vulnerabilidade das populações indígenas, que veem os casos de mortes e infecções aumentarem, sem o devido acesso à assistência que as proteja do risco de extermínio. Por isso, é tão importante apoiar projetos como “A Amazônia precisa de você” e movimentos como “Vidas Negras Importam”. As novas gerações de negros e negras contam conosco para romper o silêncio que também perpassa a vida eclesial e religiosa.
O período da pandemia possibilitou, entre outros aspectos, mais tempo para cuidar de si, conviver, rezar calmamente, desfrutar as refeições e outros momentos comunitários. Relações humanas mais abertas favoreceram o diálogo, inclusive intergeneracional. Contudo, onde as relações comunitárias já estavam tensas e difíceis, afloraram ainda mais as fragilidades emocionais. Isso pode ser visto, por exemplo, no aumento dos casos de depressão e no uso de medicamentos controlados.
A área da missão foi significativamente afetada pela Covid-19. Esse impacto vai desde a manutenção das comunidades, a viabilidade das obras, passando pelo nosso “modus operandi”, e a eficácia apostólica. A manutenção das comunidades que vivem basicamente do trabalho pastoral ou das paróquias tornou-se problemática. Não menos preocupante é a situação das redes educacionais ou de saúde. Não se trata apenas de viabilidade econômica, mas também de como manter a coerência de valores e princípios, num período de ajustes.
Uma temática que ficou escancarada neste conjunto de crises é a falta de lideranças. Na sociedade civil, constatamos, atônitos, o descontrole do Governo Federal. Um governo incapaz de dialogar, unir a sociedade em busca de alternativas e gerar consensos para enfrentar uma situação complexa e preocupante. Pelo contrário, o que vemos são planteamentos destemperados, que causam mais divisão, ódio e aumentam a dor e o sofrimento. Essa situação política provocada pelo Governo Federal não somente é constrangedora para o pais, mas também tem consequências maléficas para o conjunto da sociedade, de modo particular para os pobres. No campo eclesial percebemos a ausência de posicionamentos claros, fortes e proféticos. Esse vazio é preocupante na medida em que a Igreja tem uma importante função na formação da cidadania comprometida com a transformação social.
Os conturbados tempos da Covid-19 também podem ser uma oportunidade, por paradoxal que isso possa parecer, para avançar no essencial da VRC. Como diria Santa Teresa de Ávila: “Não é tempo de nos ocupar de coisas de pouca importância”. Durante esses meses tivemos que ficar mais tempo em casa e trabalhar online. Sentimos que diversos modos de compreender elementos constitutivos ou importantes de nossa vida de consagradas (os) foram, podem ou devem ser reconfigurados. A título de exemplo, podemos mencionar a vida comunitária, o uso do tempo, a espiritualidade, o espaço sagrado e as modalidades de presença. Quem sabe percebemos melhor agora as nossas limitações, fragilidades e a importância do cuidado. A cruz que acompanha nossas vidas emerge das mais variadas formas. Somos convidadas (os) a viver esse período desde o Mistério Pascal. Ou seja, assumir a cruz desde a perspectiva da ressurreição, diante de tantos sofrimentos e mortes que estamos acompanhando.
Em relação à espiritualidade, notamos certo esgotamento de ritos e da criatividade litúrgica. Contudo, há uma sede de algo mais profundo e autêntico. É necessário buscá-lo. Respostas prontas e modelos estereotipados já não satisfazem. É importante constituir novas narrativas configuradoras de sentido, que integrem mística-espiritualidade, profecia, relações humanizadoras, solidariedade compassiva, etc.
A pandemia é uma oportunidade para parar, refletir, rezar e dar uma resposta como VRC. A VRC está repleta de histórias e de testemunhos de superação. Situações difíceis, onde o barco parecia que, inevitavelmente, iria afundar, foram oportunidades para configurar novos horizontes de fidelidade ao Deus da vida, que conduz tudo com suavidade e sabedoria. Dentro da perspectiva místico-profética que assumimos como religiosas (os), acreditamos que o Senhor nos conduzirá por novos caminhos onde o vinho novo do Reino anime a festa da vida. Não podemos abandonar tantos rostos de indígenas, negros, moradores de rua, crianças e idosos que o Senhor coloca em nossas vidas.
Ao considerar os desafios destacamos a questão da missão em suas mais diversas expressões. Diante deste contexto desafiador somos convocados a descortinar novos horizontes, estratégias e modalidades de presença. É uma oportunidade privilegiada para repensar formas tradicionais de missão, por mais difícil e sofrido que possa parecer. Podemos, por exemplo, vislumbrar novas modalidades de educação, de saúde ou em relação às grandes obras que animamos? Quais são os possíveis caminhos de reconfiguração?
Na Carta Encíclica – Laudato Si, o Papa Francisco insiste na “relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está interligado” (LS 16). O quadro da pandemia mostra o quanto o desequilíbrio ambiental pode ser funesto, atingindo a todos, mas afetando principalmente os mais pobres. Por isso, é hora, e é agora, de inserir em nossas agendas de missão o cuidado da Casa Comum.
Uma das prioridades deste triênio da CRB nos convida “a escutar a voz de Deus nos pequenos sinais de vida, que nos chama a anunciar, denunciar e testemunhar a esperança do Reino”. É maravilhoso perceber tantos gestos de solidariedade, presenças, iniciativas que a VRC está desenvolvendo, de modo particular com os mais pobres e vulneráveis. São gestos, muitas vezes simples, mas importantes. Além disso, não podemos deixar de mencionar iniciativas como “Amazônia precisa de você” e outras, que ultrapassam as fronteiras congregacionais. Intensificar e estender esse tipo de iniciativas fortalece o testemunho e a missão da VRC.
O contexto atual de pandemia requer de nós uma vida saudável, capacidade de transmitir esperança, ternura, paz, alegria e serenidade. Por isso, é importante não nos contaminar com o ritmo frenético e caótico das redes sociais que literalmente invadem tudo. Algo muito simples, mas importante, poderia ser, por exemplo, estabelecer um ou dois momentos diários para nos atualizar quanto às notícias e depois desconectar-nos. Provavelmente ganharíamos muito em qualidade de vida afetiva, espiritual, comunitária e apostólica.
As tecnologias digitais mostraram toda a sua relevância neste tempo de pandemia. Não se trata apenas de avançar no seu uso, mas de efetivamente apropriar-nos de sua linguagem e das possibilidades que nos podem proporcionar. São mais do que dispositivos de comunicação porque nos inserem em um novo horizonte cultural. Através delas podemos ser mais proativos, estabelecer pontes e marcar presença em espaços que de outro modo seria bastante difícil. Como religiosas e religiosos estamos realmente dispostas/os a apropriar-nos destas novas tecnologias e desta nova perspectiva cultural?
Como religiosas e religiosos somos chamados a ser na sociedade uma presença do Evangelho. Mais do que palavras, testemunho; mais do que proclamações, serviço. Quem sabe, a perspectiva poética de Dom Pedro Casaldáliga pode nos iluminar: “é tarde, mas é madrugada se insistirmos um pouco. Para fazer o futuro é todo o tempo que temos disponível”. Não podemos perder este Kairós para buscar novos horizontes, estabelecer novos itinerários, reconfigurar nossas vidas, reorganizar nossas instituições para que o sonho de Deus brilhe no rosto dos pobres e dos excluídos. Como ser Igreja “em saída” de discípulos missionários que “primeireiam”, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam? (Evangelii Gaudium, 24).
Diante destes cenários sombrios e desafiadores é hora de somar forças, crescer na articulação institucional, sintonizar e apoiar as iniciativas da CRB, da CNBB, da ANEC e de outras instituições da Igreja e da sociedade. Como dizíamos no início, o que está acontecendo é trágico, inquietante, devastador. Unir forças é fundamental para configurar um horizonte de esperança no qual os valores do Reino possam constituir uma realidade tangível.
A CRB Nacional, com a colaboração da Equipe Interdisciplinar, durante os próximos meses pretende aprofundar essa reflexão, propor itinerários formativos e indicar perspectivas para a nossa vida e missão.
Convidamos as religiosas e religiosos, inspiradas/os em Maria, a colocar-se em silêncio orante, escutar e discernir a voz de Deus nestes tempos sombrios, desafiadores e de oportunidades. Que a sua abertura e disponibilidade ao projeto do Reino nos ilumine para viver nossa mística profético-sapiencial onde a vida clama. Iluminadas/os por seu itinerário de fé, saibamos sair das zonas de conforto, incertezas e dúvidas, para assumir com renovado ardor o seguimento de Jesus Cristo.
Brasília/DF, 14 de julho de 2020
Memória de São Camilo de Lellis
Padroeiro dos enfermos, dos hospitais e dos profissionais da saúde
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Vida Religiosa Consagrada em tempos de pandemia: Desafios e Oportunidades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU