24 Março 2020
Há inquietação pelo avanço desta nova guerra mundial que em nada se parece com as que ocorreram antes. O inimigo de agora não é um exército com tanques e bombas, mas um pirata celular invisível, com uma capacidade de replicação muito alta, que se transmite com facilidade entre seres humanos, e ataca as pessoas fisicamente mais vulneráveis. O medo é o primeiro patógeno da COVID-19, mas o virologista Nicola G. Abrescia (Monza, 1968) exige precaução na hora de informar e opinar sobre suas consequências.
“Temos uma vantagem: Este vírus não é desconhecido para a comunidade científica porque a família da SARS há tempo aparece e desaparece pelo mundo”, repete em várias ocasiões, durante esta entrevista realizada por telefone.
Abrescia está há 12 anos explorando o vírus e a forma como impedi-lo na condição de principal pesquisador do centro de alta tecnologia Ikerbasque, do Centro de Pesquisas Científicas bioGUNE de Derio, em Biscaia [Espanha]. Chegou aqui procedente da Oxford, “onde a cultura virológica é muito alta, como em toda a Inglaterra. Em Madri, há uma escola muito importante também”, acrescenta.
Fala com muito respeito sobre os organismos mais odiados pela humanidade, os vírus, porque “contribuíram para o desenvolvimento da vida desde a sua origem e vivem uma simbiose total com o hóspede que, em certas ocasiões, é o ser humano”. Contudo, reconhece que o medo também o atingiu, sobretudo porque uma parte de sua família está isolada em Milão e a outra no sul da Itália. “Nossa sociedade não está acostumada a um tipo de ameaça que, pensávamos, só podia surgir longe de nossa casa, sempre longe de nós. E isso é uma novidade que irá mudar nossa percepção”, afirma.
A entrevista é de Gorka Castillo, publicada por Ctxt, 21-03-2020. A tradução é do Cepat.
Ficou surpreso com a rápida propagação da COVID-19?
Bom, mais do que estranhar, o que me confirma é que o grau de mobilidade na Itália e Espanha, por nossos hábitos sociais, é maior que em outros países. É preciso levar em consideração que o principal fator que determina a propagação do vírus é o social. Outro muito importante é a violência do vírus e, finalmente, o ambiental. Se não são contidas essas três causas de forma conjunta, a propagação é inevitável.
Até que tenhamos antivirais ou vacinas testadas, a maneira mais efetiva de o conter é aplicar o tratamento social. Ou seja, utilizar hábitos higiênicos de forma muito exaustiva e de maneira frequente, tentar socializar o menos possível e esperar que as temperaturas aumentem porque a probabilidade de transmissão irá diminuir. Neste sentido, a Espanha pode ter um pouco de vantagem em relação à Itália ou China pela proximidade da primavera e o verão. Tais tipos de vírus podem se tornar mais vulneráveis com o calor.
Com o precedente da Itália, é partidário de endurecer as medidas de contenção?
É uma pergunta muito complexa. Há um risco real de que o sistema de saúde entre em colapso. Portanto, acredito que o fundamental agora é que todos obedeçamos e respeitemos as linhas que estão sendo implementadas e que cada um, civicamente, seja consciente das consequências individuais que sua movimentação pode acarretar.
Observando a evolução que se deu na Itália, eu aceito o endurecimento das medidas na Espanha para garantir que os hospitais e centros de saúde não fiquem sobrecarregados. O bem maior da sociedade agora é deter a propagação deste vírus, não retirar liberdades. Noto isso com clareza. A primeira área confinada na Itália foi a cidade de Codogno, na Lombardia, e agora se começa a notar os benefícios da medida porque começaram a frear a transmissão, não há mais contágios registrados.
Mas a situação é tão inédita que é fácil cair na confusão, inclusive no alarmismo coletivo.
É preciso ser muito cuidadoso na hora de informar e opinar sobre as consequências desta pandemia. Devemos extremar o sentido da responsabilidade. É possível administrar uma infecção viral deste tipo, mas o pânico ou a ansiedade coletiva é difícil de reconduzir e não ajuda na contenção.
Não vivemos uma situação similar ao do ebola, onde 50% dos infectados morriam. Este vírus não é desconhecido para a comunidade científica porque a família da SARS há tempo aparece e desaparece pelo mundo pelo mundo. Temos essa vantagem. Portanto, acredito que favorece mais criar um alerta social que um alvoroço e não sobrecarregar os hospitais.
Contudo, a reação das pessoas diante de um pacote de medidas de controle tão férreas e generalizadas sempre é imprevisível.
Sim. É inédito. Nossa sociedade não está acostumada a um tipo de ameaça que, pensávamos, só podiam surgir longe de nossa casa. O zika, na América. O ebola, na África, a MERS ou a SARS 1, na Ásia. Sempre longe de nós. Agora, estamos vendo que qualquer coisa que possa acontecer a 10.000 km de distância também pode nos afetar. E isso é uma novidade que irá mudar nossa percepção. Acredito que o pânico social que está ocorrendo não vem somente do medo de morrer, algo que sempre está presente, mas também de que o nosso particular mundo de segurança já não é tanto.
Esta experiência pode servir para modificar o modelo de vida, tal e como se conheceu até agora?
Homem, eu espero que isto sirva, ao menos, para repensarmos a globalização de outra maneira. E fazer isso de uma maneira positiva. Nesta crise, estão sendo mostrados esforços conjuntos muito importantes. A China, por exemplo, fez um trabalho de contenção do vírus enorme e é preciso reconhecer o fato. Também acredito que nossa sociedade deveria aprender para ter uma maior cultura virológica, que é uma ferramenta de conhecimento muito útil para filtrar com correção o que está acontecendo e não cair na ansiedade que as informações que são transmitidas por alguns meios de comunicação provocam.
E, é claro, desejo que sirva para potencializar o sistema de saúde porque vírus deste tipo aparecem, desaparecem e alguns ficam. Há dez vezes mais vírus na biosfera que a soma de todos os organismos juntos. Por isso, é tão importante a pesquisa. Ajuda-nos a conhecê-los melhor e a atuar com maior agilidade.
Em situações como esta, parece que os vírus são os verdadeiros dominadores da vida na Terra.
Não são, porque não podem dominar. Quando um vírus, por muito letal que seja, adapta-se a um hóspede, tenta manter um equilíbrio. Não podem matá-lo porque, caso contrário, desaparecem também. E é provável que percam força quando sua transmissão aumenta. Não podem ser sempre virulentos porque não encontrariam o hóspede onde replicarem. Convivem conosco, mas não dominam. Obviamente, quando surge um letal ou perigoso, devemos nos proteger com vacinas e antivirais para nos defender. Eles, claro, não têm percepção de nada disto. São simplesmente parte da natureza, exatamente assim como nós.
O que lhe atrai em alguns organismos que causam pavor só em ser nomeados?
Isso é porque não nos ensinam que os vírus são parte da vida. É certo que não são seres vivos em sentido estrito, organismos celulares, como um cachorro ou um gato. O problema é que não os vemos e isso produz medo. Contudo, em mim, produzem um grande interesse. Eles contribuíram muito para o desenvolvimento da vida desde a sua origem e vivem uma simbiose total com o hóspede que, em certas ocasiões, é o ser humano.
Gosto de trabalhar com vírus humanos e animais nos quais seja possível intervir para encontrar uma forma de interrompê-los, por meio de inibidores de entrada ou parando sua replicação. E se aprende muito. Muitos dos mecanismos que eles adotam ensinam muito a respeito do funcionamento dos sistemas celulares. Por serem entidades mais simples de uma célula, proporcionam que se compreenda o funcionamento de organismos celulares. O que me fascina dos vírus são suas múltiplas facetas. É certo que alguns são assassinos, mas outros são bons para nós. Por exemplo, uma área da terapia genética utiliza vírus modificados pelo homem para que possam levar o gene reparador para que cure doenças raras. Por isso, é importante pesquisá-los.
Você fala dos vírus com uma certa empatia, como se fossem cachorros ou gatos.
Não, em nada. Os vírus daninhos são um desafio porque obrigam a buscar soluções para que algumas coisas que podem provocar não aconteçam e os bons são ferramentas extraordinárias para a cura de doenças. Mas não sinto carinho por eles, em absoluto. Nem sequer os entendo porque não são conscientes de nada do que acontece ao seu redor. Mas são simbióticos conosco.
Existe coordenação internacional no estudo de vírus como a SARS-COV-2?
A colaboração internacional é muito fluida neste campo. Os pesquisadores chineses e os ocidentais trocam muita informação. Todo o conhecimento sobre o genoma é público, algo que não era comum há muito tempo, para que alguém, quem quer que seja, avance rápido. Há vontade de estudar e pesquisar, de ter ferramentas sobre os vírus em geral. Muitos deles foram eliminados de circulação. Conseguimos tornar o HIV uma doença crônica, ainda que tenha nos custado muitíssimo. Sou otimista e acredito no conhecimento do ser humano. Não sou de filmes apocalípticos sobre vírus que arrasam a humanidade.
Este coronavírus é da família da SARS-1, que em 2002 causou uma alta mortalidade na Ásia, 10% dos infectados, mas se conseguiu erradicá-la com relativa rapidez. Este de agora, COVID-19, é muito menos letal, mas bastante mais contagioso. Acabará se expandindo por todo o mundo?
Analisando os diferentes focos que apareceram e a consideração de pandemia declarada pela OMS é muito provável que muita gente acabe infectada. A Alemanha estima que 60% a 70% de sua população. Aqui, ficamos assustados, evidentemente, pela mortalidade porque como sociedade nos choca que o causador deste alarme seja um vírus, ainda que seus números não sejam dos mais elevados em comparação a outros.
A questão chave, portanto, é sua transmissibilidade, ou seja, que de repente muitas pessoas entrem em uma UTI e colapse o sistema de saúde. Pelo que sabemos, ainda que nos infectemos todos, muitos o viverão como um vírus a mais. Mas é melhor ser cauteloso no prognóstico. Por isso, é importantíssimo isolar as pessoas vulneráveis, sobretudo mais velhas, que são as que padecem a infeção. Os estudos destacam que aquelas sociedades com uma população mais envelhecida poderão registrar um índice de mortalidade mais alto.
Se a propagação da SARS-COV-2 é tão alta, existe o risco de que faça uma mutação e possa se tornar mais resistente e perigosa?
Os vírus têm uma intrínseca capacidade de mutação porque a replicação de seu genoma não é tão fiel como a nossa e, de vez em quando, produz erros. Portanto, as mutações sempre podem ocorrer, mas já sabemos que quando um vírus passa de uma pessoa para outra é que está se adaptando e, às vezes, nessa adaptação também se produz uma atenuação. Por isso, é muito importante genotipar o vírus nos diferentes surtos registrados no mundo, porque isso nos permite ver sua evolução, se essas mutações estão ocorrendo ou não, e fazer prognósticos. O que sabemos é que quando um vírus se replica muitas vezes dentro de um mesmo sistema celular, acaba se atenuando. E isto é bom sinal porque o que o vírus faz é não matar o hóspede, pois precisa dele para continuar se replicando.
Quanto tempo demorará para se fabricar e testar uma vacina contra a COVID-19?
Em geral, quando se tenta criar uma vacina contra um vírus, dependendo de quanto se conheça dele, pode demorar meses ou até anos. Sendo assim, a SARS-2, o coronavírus, não é um vírus absolutamente novo para nós. É muito parecido com a SARS-1, exceto em algumas proteínas como a ‘glicoproteína’ S. Já há uma pesquisa em andamento.
Para se gerar uma vacina é possível empregar de três a seis meses, mas o problema não é esse. A dificuldade são os tempos necessários para validá-la, que é um dado muito importante, porque para ser dispensada em uma população, é preciso estar seguro de que tenha uma alta efetividade e que não gere efeitos secundários. E mesmo que se possa acelerar o processo, os tempos podem ser longos, pois é necessário realizar estudos em coortes, etc. Em torno de um ano ou um ano e meio.
A aprovação de uma vacina não é trivial. Mesmo que você tenha um protótipo de vacina em laboratório, testá-la leva tempo. Existem laboratórios que estão buscando encontrar antivirais, que são muito importantes porque atuam de outra maneira e se sabe que em alguns casos que já estão sendo utilizados, como os do ebola, parece que estão funcionando. Toda essa informação é muito útil para construir e otimizar antivirais para este coronavírus.
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“Os vírus contribuíram muito para o desenvolvimento da vida desde a sua origem”. Entrevista com Nicola G. Abrescia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU