30 Agosto 2019
Unidades de Conservação fazem mais que armazenar carbono. Possibilitam uma economia do conhecimento da natureza, com inovações tecnológicas e resgate dos saberes tradicionais. Mas há quem só pense em agronegócio…
Leia o primeiro texto da série: Amazônia do Conhecimento ou da Ignorância?
Leia o segundo texto da série: Amazônia: por que o desmatamento zero é viável
O estudo especial é de Ricardo Abramovay, publicado por Outras Palavras, 28-08-2019.
41. As Unidades de Conservação ocupam 18% do território brasileiro, ou seja, 152,4 milhões de hectares. 73% desta área (111 milhões de hectares) encontram-se na Amazônia. 37% delas são de “uso integral” (destinam-se à preservação da natureza e só admitem uso indireto de seus atributos) e 63% são de uso sustentável (compatibilizam a preservação com coleta e uso de recursos florestais, com técnicas adequadas à preservação da floresta).
42. O conjunto de áreas protegidas da Amazônia (que chega a quase metade de seu território) é uma conquista democrática que traz ao menos três resultados positivos ao País. Em primeiro lugar, as áreas protegidas estão na base do fortalecimento das comunidades de povos originários, contribuindo assim para (de forma evidentemente parcial) reparar a destruição e a violência de que estes povos foram e são vítimas. A cultura material e imaterial das populações tradicionais da Amazônia traz ensinamentos que o País pouco conhece e menos ainda valoriza. Em segundo lugar, estes territórios fortalecem a condição do Brasil como país detentor da maior biodiversidade do Planeta e, consequentemente, permitem que sejam articuladas políticas globais inteligentes para remunerar nossa prestação de serviços ambientais. O Fundo Amazônia é apenas um exemplo que pode ser seguido, caso haja políticas nesta direção, por investimentos financeiros vindos também do setor privado. Os serviços ecossistêmicos globais prestados pela Amazônia têm sido exaltados sistematicamente pelas autoridades brasileiras em conferências internacionais e é com razão que o Brasil pleiteia que estes serviços sejam reconhecidos sob o ângulo econômico, internacionalmente. Em terceiro lugar estes territórios não só oferecem produtos e possibilidades de geração de renda para a manutenção dos que deles dependem, mas têm um imenso potencial para a geração de inovação que a ciência está ainda muito longe de aproveitar e mesmo de conhecer.
43. Mais de 30% da água consumida no País é captada diretamente ou em fontes a jusante de áreas protegidas. Esta proteção significa que estas fontes permanecem limpas, necessitando de poucos investimentos para o tratamento da água. Além disso, 79% da água responsável pela geração de hidroeletricidade no Brasil originam-se em áreas protegidas.
44. Vivem nas Terras Indígenas da Amazônia 170 povos que falam línguas distintas agrupadas em 14 diferentes troncos linguísticos, num total de 450 mil pessoas. Estima-se que haja 46 grupos indígenas isolados ou de pouco contato. Este é um patrimônio cultural do qual qualquer país deveria orgulhar-se, mas que, como será visto no tópico quatro [que será publicado em breve por Outras Palavras], está sendo sistematicamente destruído e, muitas vezes, com o beneplácito do Estado e da representação política local.
45. As Unidades de Conservação e, sobretudo as Terras Indígenas, tendem a ser as mais preservadas na Amazônia. Uma vez reconhecida juridicamente uma Terra Indígena, é baixa a expectativa de legalizar sua apropriação indevida por parte de invasores. Esta é uma das razões centrais que explicam que apenas 1,3% do desmatamento na Amazônia venha de Terras Indígenas.
46. No mundo todo, as florestas sobre as quais comunidades tradicionais têm direitos contêm quase 38 bilhões de toneladas de carbono, o que corresponde a 29 vezes mais que a pegada de carbono de toda a frota mundial de automóveis, segundo trabalho do World Resources Institute. O mesmo trabalho faz uma estimativa sobre os ganhos decorrentes da manutenção das florestas em Terras Indígenas, tomando como base o que é internacionalmente conhecido como o Custo Social do Carbono (social cost of carbon) e que o governo norte-americano estabelecia em US$ 41 tCO2 (quarenta e um dólares a tonelada de carbono, em dólares de 2015). Levando-se em consideração o carbono armazenado em cada tipo de floresta o WRI estima que o benefício médio do desmatamento evitado (pelo fato de as Terras Indígenas serem demarcadas e, assim, preservadas) é de US$ 14 por hectare no Brasil (este montante sobe a US$ 40 na Bolívia e a US$ 6 na Colômbia).
47. Mas além da armazenagem de carbono, as florestas prestam outros serviços sistêmicos, cuja avaliação fez também parte do trabalho do WRI. Como a oferta destes serviços não passa pelo sistema de preços, os economistas calculam seu valor pelo que custaria produzi-los, caso eles fossem destruídos pela devastação florestal. É claro que o resultado destes cálculos não pode então ser exato. Mas ele mostra que as Unidades de Conservação (e especialmente as Terras Indígenas) produzem utilidades cujo valor ultrapassa o de qualquer atividade econômica que pudesse ser instalada nestes locais. Que não haja pagamento em espécie por estas utilidades não pode ser uma justificativa para que sua oferta seja eliminada pela destruição florestal.
48. O valor total, estimado pelo World Resources Institute, dos serviços ecossistêmicos de regulação hídrica, de proteção do solo e de sequestro de carbono nas Terras Indígenas da Amazônia do Brasil, da Bolívia e da Colômbia sobem a nada menos que US$ 1,13 trilhão. 75% deste total corresponde ao aporte brasileiro. E é importante assinalar que os custos para a obtenção de tais resultados correspondem a não mais que 1% dos benefícios. O trabalho do WRI mostra que garantir a integridade e ampliar a extensão das Terras Indígenas está entre as mais baratas modalidades de luta contra as mudanças climáticas, na comparação, por exemplo, com a redução das emissões vindas da geração de eletricidade por meio de carvão ou gás.
49. Existem na Amazônia 223 Terras Indígenas aguardando os passos finais do processo de homologação e demarcação. Sua superfície chega a 9,5 milhões de hectares e elas são habitadas por 126 mil pessoas. Estes territórios armazenam 11 bilhões de toneladas de carbono. Como mostra Antônio Donato Nobre, o desmatamento destas áreas, hoje ameaçadas pela mineração, pela expectativa de legalização da grilagem e pela exploração madeireira, conduziria a um aumento da temperatura regional entre 4,2º e 6,4º, com impactos desastrosos sobre o ciclo hídrico. Não há como estimar o valor econômico de se evitar tal desastre. Mas é óbvio que este valor deve ser creditado à manutenção da integridade das Terras Indígenas, o que aumenta (e não só para os próprios indígenas) o interesse e a urgência de sua demarcação.
50. As Unidades de Conservação não são e não podem ser consideradas como redomas intocáveis e avessas a qualquer atividade econômica. Ao contrário, uma das condições da preservação de suas funções ecossistêmicas está no fato de elas abrigarem populações tradicionais, ou seja, povos indígenas, comunidades ribeirinhas e extrativistas cuja cultura material compatibiliza o uso da floresta e sua preservação. Entre as atividades mais promissoras, neste sentido, este o turismo que já movimenta aproximadamente R$ 4 bilhões por ano, gera 43 mil empregos. O turismo de base comunitária gera renda e estimula habilidades gerenciais na comunidade. Atualmente há 23 iniciativas de turismo comunitário localizadas em 10 estados do Brasil em mais de 100 municípios. A Rede Turisol é um exemplo deste tipo de iniciativa. Várias comunidades indígenas já desenvolvem iniciativas de ecoturismo.
51. Em contraste com a criminalidade que impera na exploração ilegal de madeira (como será visto no próximo tópico) é extremamente promissor o manejo florestal de madeira, explorada de forma planejada. O Programa Madeira Legal foi assinado por vinte e oito organizações, incluindo os governos Estadual e Municipal de São Paulo, o Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo (SindusCon-SP), o Sindicato do Comércio Atacadista de Madeiras do Estado de são Paulo (Sindimasp), a Associação Paulista de Empresários de Obras Públicas (APEOP), a Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (AsBEA) e o Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (GVCes), além do WWF. Um dos componentes deste programa é a implantação do “regime de manejo” na exploração florestal: uma área é dividida em parcelas exploradas, uma a cada ano, em ciclos que variam de 25 a 35 anos. Árvores adultas são retiradas de uma parcela, enquanto as jovens continuam crescendo. A geração de renda é contínua ao longo do tempo, ao contrário da exploração predatória que esgota o recurso e, com ele, os potenciais de geração futura de renda e bem-estar. Rodrigo Medeiros e Carlos Eduardo Young mostram que a renda potencial gerada pela produção de madeira em tora nas Florestas Nacionais e Estaduais da Amazônia, com base em manejo e segundo modelo de concessão florestal varia de R$ 1,2 a R$ 2,2, muito mais que o que o valor do que é extraído hoje de forma destrutiva na região.
52. Uma das mais importantes modalidades de exploração sustentável da madeira é o manejo comunitário. Na Amazônia seu potencial sobe a 47 milhões de hectares, com a perspectiva de geração de R$ 1,2 a 2,2 bilhões de renda por ano. É interessante observar como a legalização desta atividade atrai tecnologias de ponta para o seu sucesso. É assim que a Bolsa Verde do Rio de Janeiro (BVRio) está usando o blockchain (as técnicas descentralizadas subjacentes às moedas virtuais) para rastrear e certificar a origem da madeira. Será um importante sinal de desenvolvimento e de democracia quando a exploração madeireira não mais estiver associada ao crime, à sonegação e à destruição e sim à sustentabilidade e à inovação tecnológica.
53. Um dos grandes desafios do Brasil para reflorestar os 12 milhões de hectares com os quais se comprometeu na Conferência Climática de Paris está em baratear os custos desta atividade. Na verdade, na maior parte dos casos os criadores de gado e os agricultores com atividades na Amazônia não dominam as tecnologias de plantio nem conhecem as espécies nativas com as quais ele pode e deve ser levado adiante. Neste sentido a Rede de Sementes do Xingu liderada pelo Instituto Socioambiental traz um ensinamento altamente promissor. Populações indígenas e ribeirinhas que conhecem profundamente a floresta coletam sementes que são analisadas e classificadas por técnicos e vendidas a fazendeiros que precisam ter suas áreas reflorestadas. Até então o esforço de fazer o plantio por meio de mudas era frequentemente frustrante e de alto custo. Com a associação entre os conhecimentos agronômicos contemporâneos e o conhecimento tradicional estes custos foram significativamente reduzidos. Além disso, a atividade gera renda para os coletadores e reduz a tensão entre eles e os fazendeiros que passam a valorizar estas atividades tradicionais e a respeitá-las. Este é um exemplo em que a manutenção e a valorização da biodiversidade gera efeitos multiplicadores capazes de beneficiar não só as populações tradicionais, mas a própria atividade agrícola, que não só cumpre suas obrigações legais de recuperação florestal, mas passa a dispor de um ativo que beneficia sua produção em termos de clima, polinização e biodiversidade.
54. As atividades econômicas sustentáveis nas Unidades de Conservação envolvem também diferentes modalidades de extrativismo. Até muito recentemente o extrativismo praticado pelas populações indígenas e ribeirinhas submetia-se a regras de mercado em que os proprietários dos regatões tinham imenso poder no estabelecimento dos preços dos produtos vendidos, bem como nos que as populações locais compravam. Estes preços não estimulavam as atividades econômicas e desalentavam os mais jovens que não viam perspectiva de um futuro melhor nos locais onde nasceram e em cuja cultura cresceram. Recentemente diversas organizações e sobretudo o Instituto Socioambiental levaram adiante, na Terra do Meio, no Xingu, iniciativas que vêm permitindo mudar este quadro. Por um lado, capacitaram populações locais para que estas respondam pela gestão de produtos necessários ao consumo local. Ao mesmo tempo, auxiliaram indígenas e ribeirinhos a se transformarem em protagonistas da venda dos produtos por eles coletados, colocando-os diretamente em contato com empresas interessadas nesta produção. Assim, empresas do porte da Wickbold, da Mercur (borracha) passaram a estabelecer relações comerciais com as populações locais, com base, porém, na compreensão da lógica econômica específica destes locais. Estas iniciativas vêm atraindo o interesse de populações locais jovens e revertendo o quadro de êxodo que predominava até recentemente. O livro Xingu. Histórias dos Produtos da Floresta apresenta um rico panorama sobre estas iniciativas. Rodrigo Medeiros e Carlos Eduardo Young estimam que só nas onze Reservas Extrativistas que examinaram a produção de borracha podem render R$ 16,5 milhões por ano. Nas 17 Reservas Extrativistas que analisaram o potencial de geração de renda da coleta de castanha-do-pará sobe a R$ 39,2 milhões.
55. O maior desafio do desenvolvimento sustentável na Amazônia está na transição do predominante modelo predatório de crescimento para aquilo que a geógrafa Bertha Becker chamava de economia do conhecimento da natureza. Carlos Nobre e seus colaboradores insistem na necessidade de um novo paradigma para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Este paradigma combina o conhecimento das populações tradicionais com os métodos trazidos pela 4ª Revolução Industrial, seja no monitoramento das atividades predatórias, seja, sobretudo, para permitir ampliar o conhecimento e a exploração de produtos de cuja composição e de cuja utilidade hoje ainda pouco se sabe. A Amazônia pode ser vista como “um bem público de ativos biológicos capaz de criar produtos inovadores de alto valor, serviços e plataformas por meio da combinação entre meios biológicos e digitais avançados e as tecnologias da quarta revolução industrial”.
56. Em suma, os vastos territórios protegidos em Unidades de Conservação guardam uma riqueza imensa. Os métodos convencionais de sua exploração (a expansão da fronteira agrícola com base na eliminação da floresta, a mineração e a exploração destrutiva de madeira) podem trazer benefícios imediatos, mas acabam por destruir um potencial que até hoje foi pouco reconhecido pela própria sociedade. Por mais impreciso que seja o cálculo do valor monetário dos serviços ecossistêmicos prestados pela floresta em pé, eles certamente superam, ainda mais se for considerado um prazo de décadas e não de anos, o que se pode obter pelas formas hoje consagradas de ocupação do território. Além disso, a floresta em pé gera renda e tem um potencial imenso de ser base para inovações tecnológicas. Melhorar a vida e ampliar as oportunidades para que as populações tradicionais possam manter sua cultura e possam gerar renda por meio das atividades compatíveis com a preservação do ambiente em que vivem é uma das condições básicas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Garantir a vida, as possibilidades de trabalho, a autonomia e fortalecer os projetos para que ribeirinhos e indígenas tenham na oferta dos serviços prestados pela floresta à sociedade seu meio de vida é uma aspiração não só deles próprios, mas um parâmetro que pode medir o próprio grau de desenvolvimento da sociedade como um todo. No entanto, como será visto a seguir, as áreas protegidas da Amazônia (e com elas o desenvolvimento sustentável) encontram-se sob ataque.
Amazônia precisa de uma economia do conhecimento da natureza
> Este texto é a terceira parte de “Amazônia precisa de uma economia de conhecimento da natureza”, um estudo especial de Ricardo Abramovay.
> A íntegra do estudo (34p, em pdf) pode ser baixada aqui, e estará disponível, em livro (Abong | Editora Terceira Via), em poucos dias.
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Amazônia: trunfo e potência das florestas em pé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU