Entrevistados apresentam as primeiras impressões sobre o Instrumentum Laboris do Sínodo sobre a Sinodalidade e refletem sobre seus desafios
“Caminhar juntos”, a proposta do Papa Francisco à Igreja no Sínodo sobre a Sinodalidade, em curso desde 2021, significa “dar o dom precioso da libertação de nossas presunções e prepotências”, conviver com “os pequeninos e pequeninas de Jesus”, que são “a escola que amadurece a fé, a esperança e o ágape”, sintetizou Pe. Flavio Lazzarin no evento “Instrumentum Laboris Sínodo 2021-2024. Primeiras impressões, perspectivas e desafios”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 20-07-2023. Segundo ele, é nesse âmbito que “acontece a graça da sinodalidade, da fraternidade, da partilha, e dos discernimentos dos diferentes carismas a serviço do caminho eclesial, da comunhão eclesial”. As observações do padre italiano são marcadas por sua experiência junto às famílias camponesas no Maranhão, pela luta por terra e dignidade.
Na avaliação dele, as metodologias do documento de trabalho que orientará a primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, em outubro deste ano, são importantes e louváveis “para construir diálogo e escuta” e para “superar os conflitos (…) e polarizações” que marcam “a crise do catolicismo na atualidade”. Entretanto, destaca Lazzarin, as polarizações “reverberam inimizades políticas” e, nesse sentido, “pensar que o diálogo e a escuta sinodal possam ser um antídoto” para isso é “uma ingenuidade”.
Juntamente com Flavio Lazzarin, participaram do evento a teóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, Alzirinha Souza, e o bispo auxiliar de Minas Gerais, Dom Joaquim Mol. A exposição de ambos foi publicada recentemente na página eletrônica do IHU, no formato de entrevista, e está disponível aqui.
Moisés Sbardelotto, que pesquisa cultura digital, processos midiáticos e religião, e é professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, destaca o papel que o documento dá aos “tradutores”, aquelas pessoas que “ajudam a construir pontes entre as religiões, as culturas e os povos”, na intenção primordial do Sínodo enquanto “chamado a refletir sobre ‘como tornar o anúncio do Evangelho comunicável e perceptível nos diferentes contextos e culturas, de modo a favorecer o encontro com Cristo dos homens e mulheres do nosso tempo’ (ficha B 1.5)”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao IHU, o pesquisador ressalta o convite do documento para que a Igreja assuma “uma comunicação acolhedora e hospitaleira, evitando os preconceitos culturais ou a discriminação racial, tribal, étnica, de classe ou de casta”. Entre os exemplos, destaca, “o próprio [Instrumentum Laboris] dá um passo além em relação à linguagem eclesial tradicional, ao usar duas vezes a sigla ‘LGBTQ+’ para se referir à aceitação e à não exclusão de tais pessoas”. Outra marca do texto, observa, é “a necessidade de um aprofundamento da práxis pastoral nos ambientes digitais. Como afirma a ficha B 1.5, a atualidade é marcada pela ‘difusão avassaladora de uma nova cultura, a dos ambientes digitais’, nos quais a Igreja já se faz presente. Entretanto, ‘falta ainda uma consciência plena das potencialidades que este ambiente oferece à evangelização e uma reflexão sobre os desafios que coloca, sobretudo em termos antropológicos’”.
Flavio Lazzarin | Foto: Arquivo pessoal
Flavio Lazzarin é padre italiano Fidei Donum. Formado em Teologia pelo Seminário de Mantova e em História pela Universidade de Milão. Atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão. Também é agente da Comissão Pastoral da Terra – CPT.
IHU – Quais suas impressões gerais sobre o Instrumentum Laboris para a primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade a ser realizada em outubro de 2023?
Flavio Lazzarin – Aparentemente, o que direi não tem relação com o tema da sinodalidade, mas acontece que nos últimos anos me acompanha um recorrente delírio teológico que marca indelevelmente a minha caminhada, sequela difícil de Jesus de Nazaré. Trata-se de um legado que vem da caminhada junto às famílias camponesas no Maranhão, que tempos atrás se juntava ao protagonismo laical das comunidades de base e à luta por terra e dignidade, enfrentando o poder do latifúndio e os poderes inimigos do Estado. É a história da Igreja marcada pelo sangue dos mártires. Justamente é essa memória que até hoje me obriga a conjugar sinodalidade e martírio. A vivência das comunidades de base era, e talvez seja ainda, com efeito, a profecia existencial da sinodalidade, uma Igreja pobre, samaritana, anti-hierárquica, testemunha do reino, martirial. Uma Igreja que nasce e cresce ao longo do templo, nas casas, ao redor de uma mesa, embaixo de uma latada de palha, partilhando a Páscoa de Jesus e as nossas vidas, uma Igreja que reza e canta, mas também luta pela justiça do Reino como sua missão.
Ágape, amor cristológico, fundamento da comunhão do caminhar junto, coincide com o evento da Páscoa, se revela na Cruz gloriosa do Filho de Deus. Ágape guarda, por isso, uma constitutiva identificação martirial desde o momento em que Jesus convida os discípulos para seguirem o caminho rumo a Jerusalém. O martírio é a consequência inevitável da oposição radical de Jesus ao templo, ao mercado e ao palácio, responsável pela dor e pela morte dos pequeninos, pobres e marginalizados. O martírio é a fidelidade extrema de acolher o reinado de Deus, um projeto de justiça, paz e fraternidade universal. É a única maneira que Deus escolhe para construir uma humanidade nova, que possa derrotar a indiferença, o ódio, a vingança, a violência e a guerra. O martírio é a cifra do nosso batismo e da Eucaristia.
Sinodalidade ocorre quando mergulhamos no meio do povo sofrido. Caminhar juntos é dar o dom precioso da libertação de nossas presunções e prepotências clericais, apesar da permanência da dominação patriarcal na Igreja. É a convivência com os pequeninos e pequeninas de Jesus e a escola que amadurece a fé, a esperança e o ágape. Nesse âmbito, acontece a graça da sinodalidade, da fraternidade, da partilha, e dos discernimentos dos diferentes carismas a serviço do caminho eclesial, da comunhão eclesial.
São obviamente importantes e louváveis as metodologias estratégicas para construir um diálogo e uma escuta, para superar os conflitos, e é importante a tentativa ética e política de superar as polarizações que caracterizam a crise do catolicismo na atualidade. Trata-se de polarizações que reverberam inimizades políticas que caracterizam a história atual. Com efeito, não são apenas tensões gravíssimas entre tradições nacionalistas e conciliaristas, e sim do choque entre o fascismo revisitado em nível internacional e o que sobra da oposição da esquerda democrática. Diante dos desvios tradicionalistas, evidentes traições do pensamento da prática da pessoa de Jesus, não podemos agir especularmente, com a mesma agressividade e prepotência. Mas pensar que o diálogo e a escuta sinodal possam ser um antídoto, acho uma ingenuidade.
A polarização intereclesial me preocupa. É perigosa por causa da sintonia de muitos tradicionalistas com a nova direita internacional, sacrificialista e mortífera. Na caminhada eclesial, somos obrigados a conviver com o povo silencioso e obediente, que desde a primeira colonização foi educado a introjetar uma interpretação religiosa e devocionista do catolicismo, que continua garantindo a redução da comunidade a rebanho assistido e controlado pelo clero. É a Igreja que funciona hoje, pelo menos no Maranhão. A Igreja que hoje em dia aqui é hegemônica. Nós a respeitamos porque, com certeza, na intimidade mais escondida da vida de muitos fiéis repousa uma fidelidade autêntica ao Evangelho. Mas encontramos também irmãos e irmãs que irracionalmente pertencem ao rebanho dos nostálgicos revoltados. Estou convicto de que a falibilidade e os argumentos são necessários quando se trata de religiosidades populares, mas são inúteis e contraproducentes em relação à construção da fraternidade quando encontramos os tradicionalistas revoltados e violentos.
O primeiro aspecto relevante do Instrumentum Laboris é metodológico, capaz de articular algumas das prioridades que surgiram ao ouvir o povo de Deus, mas o documento evita apresentá-las como afirmações ou oposições. Em vez disso, ele as expressa como perguntas dirigidas à assembleia sinodal. Todas as perguntas são sérias, necessárias e desafiadoras. Outro acerto metodológico é a escolha de favorecer a escuta recíproca e a escuta do Espírito para chegar ao discernimento, para conhecer aquilo que ele diz às Igrejas. Acrescenta-se que não se espera uma conclusão definitiva do Sínodo porque o processo de escuta é constitutivo da identidade eclesial. Afirmação que retoma um dos critérios de discernimento do Papa Francisco: “O tempo é superior ao espaço. Apostar em processo é mais sensato do que controlar e definir com autoridade as relações eclesiais”.
O aspecto metodológico que me parece importante é a ordem oferecida ao processo de escuta recíproca. Antes de tudo, o evento acontecerá depois de um silencioso retiro espiritual. Nas sessões, as falas acontecerão entrelaçadas com momentos de silêncio, oração e meditação. Sem dúvida, trata-se de um corretivo à preponderância das palavras dos inúmeros documentos preparatórios. É um vício cemiterial da maior parte dos documentos eclesiais: milhares de palavras que ninguém lê e que transitam como cadáveres de um documento para outro, herança da primazia confiada à doutrina e à doutrinação, quando a vida cristã é eminentemente feita de atitudes, gestos, ações concretas, ortopraxia.
A última coisa importante é a crítica no Instrumentum Laboris. Permanece a distinção do Concílio entre ecumenismo e diálogo inter-religioso. O aprofundamento prático e teológico desta renovada atenção ao diálogo, à alteridade, à reciprocidade se expressou, na América Latina, na perspectiva do macroecumenismo, prática e reflexão teológica que vai além da distinção inicial entre ecumenismo e diálogo inter-religioso.
Mais recentemente, abriu-se um diálogo entre macroecumenismo e outras tendências teológicas de origem asiática e europeia: a teologia do pluralismo religioso. Macroecumenismo é, para muitos, ainda uma palavra nova. É uma palavra latino-americana, nascida em setembro de 1992, durante o primeiro encontro continental da Assembleia do Povo de Deus em Quito, Equador. Foi Pedro Casaldáliga que proclamou e fundamentou esse sonho que o teólogo José María Vigil apresentou teologicamente no livro Espiritualidade e libertação, lançado naquela mesma ocasião. Palavra nova que nasce do chão, que também vem da Comissão Pastoral da Terra – CPT, do encontro com os povos de Deus que carregam culturas, tradições, visões de mundo, de terra, de território, religiões e religiosidades diferentes. Foi a descoberta de religiosidades outras, ocultadas pelo processo secular da cristandade colonial, que nos conduziu a repensar e a conviver de outro jeito, na relação pastoral, com os caboclos, leigos, com a chamada religiosidade popular. Foi a escuta dos camponeses e camponesas, em suas lutas e resistências, que nos conduziu e conduz a atitudes autocríticas das dimensões eurocêntricas, eclesiocêntricas e coloniais de certo catolicismo. São os rostos dos pobres, dos indígenas, que nos despertam não só para o desafio da igualdade, mas também para o direito à diversidade cultural e religiosa. O macroecumenismo também é absolutamente ortoprático, nasce da convivência fraterna, da prática de rezar e celebrar comunitariamente a vida e lutar por ela na presença de diferentes espiritualidades. Talvez, a distância das religiosidades populares e a resistência de uma pauta macroecumênica seja um dos limites do processo sinodal.
IHU – O que as resistências e adesões ou não adesões ao processo sinodal, principalmente na etapa local, representam e revelam sobre o nosso tempo?
Flavio Lazzarin – Vejo esse tipo de resistência ao Sínodo, aparentemente aceito, no âmbito dos amigos de sempre: Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, CPT, pastorais sociais, a Igreja que se diz fiel ao Concílio Ecumênico Vaticano II, a Medellín, Puebla e Aparecida. Vejo resistência nesse setor no sentido da repetição ideológica do passado. A repetição da profecia não é profecia. A fidelidade ao passado que vivemos nas décadas de 1970, 1980 e 1990 pode se traduzir em uma resistência ao novo e em uma incapacidade de ver os desafios de hoje, que não são os desafios de 10 ou 20 anos atrás. O Sínodo deveria nos estimular a esse renovado discernimento, à renovada leitura dos sinais dos tempos e, por isso, renovar o esforço pastoral diante de uma realidade complexa e desafiadora não somente ad intra como também no mundo como um todo. O apelo ao discernimento para a leitura dos sinais dos tempos é a palavra-chave de João XXIII no Concílio.
IHU – A Igreja precisa se reeducar? Em que sentido?
Flavio Lazzarin – Não consigo me inserir nessa perspectiva de se reeducar. Penso mais em termos tradicionais, em conversão, em mudança radical do pensamento. Lembro, neste momento, um texto de Ratzinger sobre tradição, que li nos anos 1970, quando estudava teologia, que fala de Tradição com T maiúsculo e tradição com t minúsculo. O revolucionário nesse escrito, que ainda hoje lembro com reconhecimento e alegria, é que a única Tradição com T maiúsculo é a própria pessoa de Jesus de Nazaré. O resto é mutável, é sujeito aos ventos e climas diferentes das estações e da história. Parece uma coisa simplória, mas é um processo de discernimento, de conversão e de atenção à única Tradição com T maiúsculo que merece ter T maiúsculo: a pessoa de Jesus de Nazaré, o messias.
IHU – O pouco entendimento do que seja uma diocese e toda sua amplitude não passa por uma articulação pastoral mais horizontal? Como pensar o papel dos leigos neste cenário?
Flavio Lazzarin – A palavra de Deus, assim como é vivida aos domingos, nem sempre é valorizada como deveria. Foi uma revolução do Concílio Ecumênico Vaticano II a reapropriação da palavra de Deus. Os leigos não podiam ler a Bíblia e o Vaticano II abriu essa possibilidade. Mas, na vida comunitária, quem participa aos domingos, com o povo simples, percebe que os párocos cuidam muito do altar, da liturgia Eucarística, dos ministros e ministras extraordinários da Eucaristia, mas não cuidam dos leitores, daqueles que deveriam ler a Bíblia e entender o que estão lendo. O meu sonho é que se deveria valorizar, nesse processo de reeducação da Igreja e de valorização do laicato, a reapropriação da palavra de Deus, que é fundamental para a vida do discípulo. É um mapa para se orientar com espírito, com liberdade, na vida doméstica, social e política.
Evidentemente, não contesto a presença real eucarística de Jesus de Nazaré, mas não até o ponto de fazer com que a presença de Jesus na assembleia reunida seja simbólica e não real também. As duas coisas não estão em contradição teológica: ou a Igreja corpo de Cristo ou a Igreja povo de Deus. O aprofundamento e a reapropriação da palavra e a volta à presença real de Cristo na assembleia reunida poderiam ser um antídoto para ter a Igreja em saída e não uma Igreja confinada ao redor do altar, que é um risco que estamos vivendo ou a realidade que infelizmente temos visto hoje.
Instrumentum Laboris Sínodo 2021-24. Primeiras impressões, perspectivas e desafios:
IHU – Quais as contribuições e os riscos de privilegiar a ausência do aparecimento de conflitos para a compreensão da sinodalidade?
Flavio Lazzarin – Amadureci a convicção de que são possíveis o diálogo, a abertura, a escuta, como regra de vida para todos os cristãos, sobretudo para nós padres. Porém, amadureci também a convicção de que é impossível dialogar com fundamentalistas violentos e nostálgicos do passado. Não se trata de limites psicológicos, mas são situações subjetivas que a história nos apresenta: dialogar com essas pessoas, argumentar com esses irmãos é impossível. É aí que descubro que somos derrotados nesse tipo de contato de embate com os tradicionalistas violentos que se parecem muito com os neofascistas que estão ocupando a cena política do planeta Terra, infelizmente. A aliança entre religião e leitura tradicional da realidade acontece também na Rússia de Putin com o apoio do Patriarca Kirill.
Esse fundamentalismo está aí. Estamos derrotados. A única possibilidade que temos diante desses irmãos não é o diálogo, é o testemunho martirial de quem se reconhece vencido. Isso deve ser temperado em um processo que nunca termina, que deve ser um processo amoroso, com o qual, evidentemente, não estamos acostumados. Nós somos pacifistas, mas não somos pacíficos, ou trabalhamos pela justiça, mas não somos justos. Uma derrota que deve ser temperada por um processo de amor verdadeiro, o que evidentemente é complicado.
IHU – Gostaria de acrescentar algo?
Flavio Lazzarin – O Sínodo ocorre em clima de liberdade readquirida depois de muitos anos invernais na Igreja Católica. Isso é positivo porque nós, como diz Paulo, somos chamados à liberdade. Liberdade é um leito do rio com muitas possibilidades, muitos processos. Retomando a questão dos confrontos e dos conflitos, que é a questão que me preocupa, acertamos em repetir mais uma vez que devemos reconhecer um único pastor como companhia da nossa vida, ou seja, a referência a Jesus, única Tradição com T maiúsculo. Mas, ao mesmo tempo, escutando o evangelista João, devemos ter a capacidade, nesse tempo difícil, desafiador, do discernimento de quem são os lobos, os mercenários, aqueles que ameaçam o rebanho, os violentos, os inimigos da vida. Esse é um discernimento importante e é um discernimento dentro da caminhada cristã no ágape, na presença amorosa de Jesus crucificado e ressuscitado.
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Moisés Sbardelotto (Foto: Pascom Brasil)
Moisés Sbardelotto é bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, com estágio doutoral na Università di Roma La Sapienza, na Itália. É professor da PUC Minas, atuando no Programa de Pós-Graduação Profissional em Teologia Prática e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, e membro do Grupo de Reflexão sobre Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Grecom/CNBB. Entre suas publicações, destacamos Comunicar a fé: Por quê? Para quê? Com quem? (Vozes, 2020), E o Verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital (Paulinas, 2017) e E o Verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na internet (Santuário, 2012).
IHU – Quais suas impressões gerais sobre o Instrumentum Laboris para a primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade a ser realizada em outubro de 2023?
Moisés Sbardelotto – De modo geral, chama a atenção a abrangência das questões que o tema da sinodalidade põe sobre a mesa da Igreja. Passando os olhos pelo Sumário do Instrumentum Laboris – IL, percebe-se que pensar uma “Igreja sinodal” envolve repensar o serviço da caridade, o empenho na justiça, o cuidado da casa comum, o compromisso ecumênico, o diálogo intercultural e inter-religioso, os ministérios eclesiais (particularmente de padres e bispos), o reconhecimento e a promoção das mulheres, os processos decisórios etc. O Sínodo sobre a Sinodalidade emerge, assim, como a tentativa mais ousada de encarnar o sonho anunciado por Francisco desde o início do pontificado com “uma opção missionária capaz de transformar tudo” (Evangelii gaudium, n. 27). Ao mesmo tempo, isso mostra que, ao convocar o Sínodo, o Papa não foi ingênuo nem teme o diálogo, o debate ou até o confronto. Ele mesmo já afirmou claramente sua convicção de que a unidade prevalece sobre o conflito, pois, segundo a fé cristã, ela é fruto do Espírito, que é harmonia (cf. EG 226-230).
Outro elemento significativo é que o IL se apresenta como um texto de passagem, como um “auxílio prático” (n. 10) para a assembleia sinodal de outubro. Daí também o recurso às “fichas de trabalho”, entendidas como “ponto de entrada [para os debates] a partir de diferentes perspectivas” (n. 45). Portanto, não se trata de um texto em construção ou de um documento “de trabalho” (instrumentum laboris) propriamente dito, entendido como um produto redacional a ser simplesmente corrigido ou como um mero esboço do documento final do Sínodo (cf. n. 10). Trata-se, na realidade, de um documento “para o trabalho” (instrumentum ad laborem), para a construção de novas reflexões e decisões sinodais, sem oferecer respostas pré-fabricadas.
Não é, portanto, nem um pontapé inicial nem o fim da estrada, mas um elemento que compõe um “processo inacabado” (n. 10), um momento de um longo e complexo caminho sinodal e de escuta ao Povo de Deus em suas fases diocesana, continental e universal, desde a convocação do Sínodo em 2021 – talvez o maior processo consultivo da história da humanidade, dadas as suas dimensões temporais, espaciais e sociais. Apenas para se ter uma ideia, somente o “Sínodo digital”, ao qual o IL se refere, alcançou 115 países, somando mais de 110.000 questionários respondidos e 150.000 propostas enviadas à Secretaria do Sínodo. Isso sem falar nos frutos de todos os outros momentos presenciais de escuta e diálogo em cada realidade eclesial. Sem dúvida, “o Povo de Deus está em movimento” (n. 1).
Não há como deixar de ressaltar ainda a capacidade questionadora e problematizadora do IL, ao recorrer à formulação de perguntas como recurso textual. Ao longo do texto, constam nada menos do que 277 questões no total (263 somente nas Fichas de Trabalho). É uma abordagem ousada e criativa, frente a uma tradição sinodal recente acostumada a textos de trabalho que apresentavam desde o início sínteses teológico-doutrinais sobre as questões em jogo, a serem apenas aprimoradas, quando não simplesmente aprovadas, muitas vezes encerrando o debate antes até do início da assembleia sinodal propriamente dita. Embora nenhuma pergunta seja “neutra” ou isenta – pois sempre parte de algum pressuposto e já traz consigo possibilidades de resposta –, o fruto de uma questão é sempre uma reflexão, e não o encerramento do debate. As perguntas mobilizam muito mais do que respostas já prontas, impulsionando um movimento constante de busca, escuta e diálogo.
A diversidade das perguntas e a coragem de explicitação de várias delas no IL, devolvendo-as ao diálogo e ao discernimento sinodal, também mostram que a Igreja tem consciência de seus problemas mais candentes. Não ser capaz de fazer perguntas seria o risco maior, pois sinalizaria que as respostas doutrinais atuais já estariam dando conta de processos que, contudo, são novos e inovadores. O problema maior da Igreja contemporânea é que ela já está repleta de respostas prontas e definidas (como no Catecismo e no Código de Direito Canônico), pensadas em outras épocas e em outros contextos, que muitas vezes bloqueiam o movimento e a mudança. O desafio é fazer com que tais perguntas mobilizem novas respostas doutrinais e jurídicas que permitam novamente o movimento e a flexibilidade, em uma realidade tão diversa quanto a Igreja contemporânea.
IHU – Quais são os três pontos do Instrumentum Laboris que destacaria como mais relevantes? Por quê?
Moisés Sbardelotto – Um primeiro ponto fundamental é o reconhecimento de que “o protagonista do Sínodo é o Espírito Santo” (n. 17). A sinodalidade não é uma invenção do Papa, como alguns de seus críticos querem fazer crer, mas é o próprio Espírito quem convida a Igreja a dar novos passos para crescer como Igreja sinodal e a caminhar com mais determinação como Povo de Deus (cf. nn. 1 e 3). Com a convocação do Sínodo por parte de Francisco, reconhece o IL, “começamos a prestar mais atenção ‘ao que o Espírito diz às Igrejas’ (Ap 2,7), no compromisso e na esperança de nos tornarmos uma Igreja cada vez mais capaz de tomar decisões proféticas que sejam fruto da orientação do Espírito” (n. 31). A tarefa das duas sessões do Sínodo, justamente, “será abrir toda a Igreja para acolher a voz do Espírito Santo” (n. 16).
Pelo contrário, se a Igreja se basear unicamente em seus esforços humanos, será impossível lidar com “os problemas, as resistências, as dificuldades e as tensões” (n. 17) do catolicismo atual, frente aos desafios desta mudança de época. O IL convida o Sínodo a valorizar e a aprimorar a diversidade de diversidades da catolicidade contemporânea – “na variedade de idades, sexos e condições sociais” e com seu “tesouro de diferenças de idiomas, culturas, expressões litúrgicas e tradições teológicas” –, mas “sem esmagá-la na uniformidade” (n. 6). Tais tensões e diferenças podem ser ao mesmo tempo uma riqueza e um risco, “fontes de energia” ou “polarizações destrutivas” (n. 6). Por isso, é preciso confiar no Espírito, que é “mestre da harmonia” (n. 39) e “princípio da unidade da Igreja” (n. 24).
Daí também a relevância da proposição do “diálogo no Espírito” como “método sinodal” (n. 32). O IL o apresenta como “uma oração partilhada em vista do discernimento comunitário” (n. 37). Trata-se de uma dinâmica dialógica entre a palavra pronunciada e ouvida dos irmãos e irmãs na fé, que se abrem em oração para ouvir a voz do Espírito, que é o autêntico protagonista de tal diálogo. Com isso, abre-se espaço para o consenso e a concordância conjunta com a voz do Espírito (embora isso nem sempre possa ocorrer, como veremos em seguida). O IL indica tal método não apenas em vista do Sínodo, mas para todos os níveis da vida eclesial, razão pela qual “a formação para o diálogo no Espírito é a formação para ser uma Igreja sinodal” (n. 42).
A partir do IL, em segundo lugar, fica ainda mais claro que o atual caminho sinodal aponta para a necessidade de uma nova eclesiologia frente à atual mudança de época. O Sínodo não abordará apenas questões específicas de doutrina ou de disciplina, de pastoral ou de liturgia, mas sim uma grande questão eclesiológica muito mais abrangente e desafiadora: como “caminhar juntos” como Povo de Deus em meio às tantas diferenças que marcam o catolicismo do século XXI em um mundo global e plural? Como tornar dinâmica, produtiva e fecunda a tensão entre as Igrejas locais e a Igreja de Roma, numa relação harmoniosa entre unidade e diversidade, preservando a especificidade de cada uma e a catolicidade universal? Ou, mais especificamente, como resguardar uma “relação dinâmica e circular entre a sinodalidade da Igreja, a colegialidade episcopal e o primado petrino” (ficha B 3.5), de modo integral e sinérgico, corresponsável e complementar?
Para isso, o documento apresenta essa nova eclesiologia a partir dos “sinais característicos da Igreja sinodal” (nn. 19ss). Trata-se de uma Igreja em que todas e todos têm uma dignidade comum derivada do batismo e, portanto, são corresponsáveis na missão; uma Igreja que escuta a Palavra, os acontecimentos da história e cada um de seus membros; uma Igreja humilde, que sabe pedir perdão e tem muito a aprender; uma Igreja do encontro e do diálogo ecumênico, inter-religioso e intercultural; uma Igreja aberta, acolhedora e que abraça radicalmente a todas e todos, sem fronteiras; uma Igreja incompleta, pois se reconhece pequena diante do “inesgotável e santo mistério de Deus [e] suas surpresas” (n. 29); e, por fim, uma Igreja do discernimento, na busca de “tomar decisões proféticas que sejam fruto da orientação do Espírito” (n. 31).
Frente a uma Igreja assim concebida, é preciso reconhecer que estamos lidando com uma realidade do “já, mas ainda não”: falta muito a caminhar – e a mudar – para que a Igreja chegue a ser sinodal. Os obstáculos principais para isso, como reconhece o IL, são principalmente as atuais fragmentação e polarização internas à Igreja, que provocam feridas e divisões (cf. n. 28). Muitas vezes, como afirma o IL, isso se explicita no não reconhecimento ou na não aceitação do desenvolvimento magisterial e teológico em tempos de Francisco. Diante disso, o documento sugere promover um maior esforço de comunicação e um caminho sinodal de apropriação efetiva do magistério recente, voltando a interrogar o Depósito da fé e a Tradição viva da Igreja.
Isso nos leva ao terceiro ponto que gostaria de ressaltar, que é o foco na formação e na comunicação sinodais. Segundo o IL, uma formação “integral, inicial e permanente” (n. 59) na sinodalidade para todas e todos os membros do Povo de Deus é indispensável. Essa formação deve se focar principalmente em “renovar os modos de exercer a autoridade e os processos de tomada de decisão em chave sinodal e para aprender a acompanhar o discernimento comunitário e a conversação no Espírito”.
E quanto maior a dedicação e o serviço à Igreja, maior a necessidade de formação: isso demanda a renovação dos currículos dos seminários e casas de formação para que sejam mais sinodais e estejam mais em contato com todo o Povo de Deus. Mas o IL também aponta para a necessidade de rever a formação dos próprios formadores e formadoras, e também dos teólogos e teólogas. Em suma, “a formação para uma espiritualidade sinodal está no centro da renovação da Igreja” (n. 59).
Junto a isso, destaca-se a necessidade de renovar a linguagem eclesial na liturgia, na pregação, na catequese, na arte sacra, na comunicação da Igreja em geral, midiática ou não. Isso “sem rebaixar ou desvalorizar a profundidade do mistério que a Igreja proclama ou a riqueza de sua tradição”, mas tornando tais riquezas “acessíveis e atraentes” e não um “obstáculo” para as pessoas de hoje. O IL ressalta que é preciso se inspirar no “frescor da linguagem do Evangelho” (n. 60) e inculturá-la no hoje da história. Por isso, enfatiza a necessidade de saber escutar as culturas, reconhecendo, por sua vez, que estas estão em constante evolução. E o Espírito, por sua vez, como fruto desse discernimento, oferece à Igreja “uma tal amplitude que pode acolher qualquer cultura, sem exclusão” (ficha B 1.5).
O Sínodo, portanto, é chamado a refletir sobre “como tornar o anúncio do Evangelho comunicável e perceptível nos diferentes contextos e culturas, de modo a favorecer o encontro com Cristo dos homens e mulheres do nosso tempo” (ficha B 1.5). Nesse sentido, o IL ressalta, de modo bastante inovador, o papel dos “tradutores”, ou seja, daquelas pessoas que ajudam a construir pontes entre as religiões, as culturas e os povos. É justamente aqui que reside o grande desafio para a Igreja contemporânea: repensar a sua “tradição em transição” (Massimo Faggioli) para promover mais eficazmente uma “tradução da tradição” (Andrea Grillo), mediante processos de comunicação do Evangelho condizentes com os tempos, os espaços e as pessoas do século XXI.
Daí também o convite a assumir uma comunicação acolhedora e hospitaleira, evitando os preconceitos culturais ou a discriminação racial, tribal, étnica, de classe ou de casta. Nesse sentido, o próprio IL dá um passo além em relação à linguagem eclesial tradicional, ao usar duas vezes a sigla “LGBTQ+” para se referir à aceitação e à não exclusão de tais pessoas, por exemplo. O IL destaca ainda a necessidade de um aprofundamento da práxis pastoral nos ambientes digitais. Como afirma a ficha B 1.5, a atualidade é marcada pela “difusão avassaladora de uma nova cultura, a dos ambientes digitais”, nos quais a Igreja já se faz presente. Entretanto, “falta ainda uma consciência plena das potencialidades que este ambiente oferece à evangelização e uma reflexão sobre os desafios que coloca, sobretudo em termos antropológicos”.
Instrumentum Laboris Sínodo 2021-24. Primeiras impressões, perspectivas e desafios:
IHU – Que limites e potencialidades o documento indica na realização do objetivo de aprofundar a sinodalidade na Igreja?
Moisés Sbardelotto – As potencialidades, a meu ver, já foram indicadas nas respostas anteriores, particularmente o fato de não ser um texto fechado, mas sim aberto ao diálogo futuro, por meio de perguntas mobilizadoras. Assim como os três aspectos principais que apontei anteriormente, que sintetizam bem o que o Sínodo poderá reformar e transformar a fim de dar mais corpo a uma Igreja propriamente sinodal.
Do ponto de vista dos limites, parece-me que o risco maior é contentar-se com uma sinodalidade cosmética, superficial, apenas um adjetivo inovador para esconder as rachaduras de um edifício eclesial prestes a desmoronar (ou a “implodir”, como afirmam Danièle Hervieu-Léger e Jean-Louis Schlegel), apenas uma “mudança de linguagem” para manter as mesmas estruturas de sempre.
Isso aparece, por exemplo, quando o IL afirma que a Igreja não deve se assustar com suas tensões internas, nem tentar resolvê-las a qualquer custo, mas sim envolver-se em um “discernimento sinodal contínuo” (n. 6). Entende-se a proposição. Mas podemos questionar: contínuo até onde? Qual o limite temporal desse processo de discernimento? Discerne-se até onde, até quando? Qual o passo seguinte após o discernimento? Se esse processo não envolver momentos claros de tomadas de decisão transformadoras, assim como certas mudanças de rota no “caminhar juntos” da Igreja, tais tensões não serão “fontes de energia”, mas continuarão fazendo a Igreja cair em “polarizações destrutivas”, nas palavras do próprio documento.
O mesmo pode ser dito sobre o método do “diálogo no Espírito”. Trata-se de uma proposta instigante e inspirada. Entretanto, parece problemático esperar como fruto gradual necessariamente o “consenso” ou a “concordância conjunta com a voz do Espírito” (n. 33). E isso não por demérito ou descrença em relação à ação do próprio Espírito, mas sim por reconhecer que a Igreja, por mais santa que seja, também é pecadora, e diversos de seus membros – inclusive alguns daqueles que terão acesso à Aula sinodal – podem muito bem ignorar a voz do Espírito por motivações outras ou por falta de sensibilidade, obstaculizando todo consenso.
Isso diz respeito, por exemplo, à questão da “mutualidade, reciprocidade e complementaridade entre homens e mulheres”, indicada na ficha B 2.3. Sem tais elementos, como ser uma Igreja verdadeiramente sinodal? Por isso, o próprio IL fala da necessidade de medidas concretas para renovar e reformar os procedimentos e as estruturas institucionais a fim de permitir uma maior participação das mulheres, incluindo no governo e em todas as fases dos processos decisórios na Igreja. Reconhece-se ainda que todas as assembleias continentais demandam que tal participação feminina se concretize por meio de “estruturas apropriadas para que isto não permaneça apenas uma aspiração geral” (ficha B 2.3). Fica claro aqui o receio de uma “sinodalidade de fachada”.
É verdade que “as instituições e estruturas por si só não são suficientes para tornar a Igreja sinodal: são necessárias uma cultura e uma espiritualidade sinodais” (n. 58). Mas não se trata de coisas mutuamente excludentes, pelo contrário, se inter-retroalimentam: sem instituições e estruturas específicas, uma cultura e uma espiritualidade sinodais não se sustentam nem se estabilizam no tecido eclesial. Como aponta o IL, o compromisso solicitado à assembleia sinodal é justamente “manter um equilíbrio dinâmico entre manter uma visão geral [...] e a identificação de medidas práticas a serem tomadas de forma concreta e oportuna” (n. 16).
Nesse sentido, o caminho sinodal problematiza fortemente a relação entre a catolicidade institucional e seus processos instituintes, entre a estabilidade hierárquico-institucional e o movimento do Povo de Deus. O próprio IL ressalta que as assembleias continentais manifestaram receios em relação a uma certa concorrência entre as dimensões sinodal e hierárquica, embora ambas sejam constitutivas da Igreja e possam coexistir, desde que impulsionadas pelo Espírito (cf. fichas B 2.5 e B 3.2)
Além disso, o caminho sinodal está sendo uma verdadeira emergência de carismas que se manifestaram em todas as Igrejas do mundo, a partir das diferentes propostas e iniciativas promovidas ao longo desse tempo. E os carismas são a força do Espírito que instaura as instituições eclesiais e as mantém vivas. Retomando a imagem de uma “Igreja: carisma e poder” (Ática, 1994), de Leonardo Boff, a questão agora é saber como esses carismas se encarnarão no nível das relações de poder eclesiais e qual será o equilíbrio possível a ser alcançado entre o carisma (elemento do Espírito) e o poder (elemento institucional), entre o movimento do Povo de Deus e a força estabilizadora da hierarquia. Como o próprio IL reconhece, “a diversidade dos carismas sem autoridade torna-se anarquia, assim como o rigor da autoridade sem a riqueza dos carismas, dos ministérios e das vocações se torna ditadura” (ficha B 2.5).
Portanto, o caminho sinodal até aqui percorrido aponta para novas relações que deverão se estabelecer entre as várias instâncias decisórias institucionais já existentes, a fim de implementar possíveis decisões de reforma tomadas no Sínodo. Ou ainda novas instâncias decisórias a serem instituídas. O IL reconhece que a sinodalidade pode encontrar uma melhor expressão nas instituições que envolvem grupos de Igrejas locais, como as conferências episcopais e as assembleias continentais, inclusive com alguma autêntica autoridade doutrinal (cf. ficha B 3.4). Esse já seria um grande passo sinodal. Entretanto, se o próprio Papa Francisco já afirmou que não convém que o pontífice substitua os episcopados locais no discernimento de certas questões, hoje, em meio ao caminho sinodal, é possível demandar um passo a mais: não convém que os episcopados locais decidam certas questões monocraticamente, sem o envolvimento das Igrejas locais, em um mero “exercício de afirmação de poder”, mas, pelo contrário, promovam “processos sinodais [...] de intercâmbio com a comunidade” e até a “atribuição de responsabilidades eclesiais a Fiéis leigos” (ficha B 3.2).
Como aponta Boff, a hybris da hierarquia é querer controlar as manifestações do Espírito. Resta saber, portanto, se a instituição eclesial favorecerá processos instituintes dinamizados pelo caminho sinodal, para que promovam a transformação de certos elementos já instituídos, tanto do ponto de vista da doutrina quanto do direito canônico. E se permitirá ainda que tais processos instituintes gerem novos elementos a serem oficialmente instituídos na Igreja. Caso contrário, o risco é de que a reforma e a conversão pastoral permaneçam exclusivamente em um nível individual e íntimo, sem tocar as estruturas institucionais e as relações de poder e tomada de decisão já instituídas.
Outro risco ainda é aquilo que Boff chama de “hierarquiocentrismo”, a pressuposição de que a hierarquia é o centro da Igreja e tem o poder de dar a “última palavra” sobre os apelos do Espírito, pois este estaria presente de modo definitivo e exclusivo apenas no alto clero. Nas entrelinhas do IL, o receio (senão até o pavor) de setores da hierarquia é de que a assembleia sinodal seja entendida, pelo contrário, “como representativa e legislativa, em analogia com um organismo parlamentar, com a sua dinâmica de formação de maioria”. Teme-se mais ainda uma deriva da Igreja inspirada nos “mecanismos da democracia política” (ficha B 2.5).
Contudo, em um tempo histórico em que a democracia continua sendo o pior dos regimes políticos, com exceção de todos os outros (como teria dito Winston Churchill), a Igreja não pode reconhecer, aí também, um “sinal dos tempos” com o qual deve aprender? Ou, nesse caso, pelo contrário, seria preferível almejar a “quadratura do círculo”, defendendo um processo sinodal circular e de “participação integral” (n. 57), mantendo, ao mesmo tempo, a vigência de um sistema monárquico-imperial, em que tudo, no fim, acaba sendo decidido monocraticamente pelo bispo local ou, em nível geral, pelo bispo de Roma, ainda considerado “Vigário de Cristo” e detentor de um “poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, que pode exercer sempre livremente”, como ensina literalmente o Código de Direito Canônico (cânon 331)? Nesse caso, a autoridade está realmente enraizada no serviço ou se apresenta “como uma forma de poder derivada de modelos mundanos” (n. 57), inclusive superados historicamente? Como efetivamente assumir a “perspectiva da Igreja sinodal, ‘no espírito de uma sã descentralização’” (ficha B 2.5)?
Em suma, como já disse Francisco várias vezes, é o próprio mundo contemporâneo quem exige da Igreja um reforço das sinergias em todas as áreas de sua missão, e, por isso, a sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio. Ao longo desse caminho, resta-nos a esperança de que “a história da salvação nos mostra que onde o Espírito está em ação podemos contar com o Inesperado e o Novo ainda não acontecido” (Boff, 1994, p. 266).
IHU – Como analisa a nomeação do novo Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé à luz do Sínodo sobre a Sinodalidade na Igreja? O que essa nomeação significa e representa neste momento?
Moisés Sbardelotto – A escolha do arcebispo de La Plata vai na linha do que eu dizia na resposta anterior. A sinodalidade não pode ser apenas um sentimento espiritual, uma ideia teológica, um adjetivo inovador na linguagem eclesial. “Caminhar juntos” demanda não apenas ter uma mesma direção em mente, mas também dar passos concretos nessa mesma direção para que se possa avançar. E isso, portanto, envolve contar com pessoas que queiram caminhar rumo a uma mesma meta e no mesmo ritmo.
Além disso, é importante ler a escolha de Dom Fernández junto com o recente bloqueio à nomeação do Prof. Pe. Martin Lintner como reitor da Faculdade Teológica Acadêmica de Bressanone. O motivo de tal rejeição, segundo a própria faculdade, foram algumas publicações de Lintner sobre “questões de moral sexual católica”, a saber, em torno da identidade de gênero. Dado o teor da negativa, mesmo que a decisão final tenha sido do Dicastério para a Cultura e a Educação Católica, muito provavelmente o Dicastério para a Doutrina da Fé também deve ter dado seu parecer a respeito.
Para Francisco, porém, como escreve na carta a Dom Fernández, acabou (ou deve acabar urgentemente) a era de uma Igreja que recorre a “métodos imorais” para lidar com supostos “erros teológicos” a serem perseguidos. Não se deve impor um único modo de fazer teologia. Não deve haver espaço para uma “teologia de escritório” nem para a dominação de uma “lógica fria e dura”, em que “questões secundárias acabam obscurecendo as centrais”. Em uma sociedade da comunicação generalizada (Gianni Vattimo), Francisco reconhece que os “mecanismos de controle” sobre os discursos – inclusive o teológico – perdem todo o sentido.
E o próprio Dicastério que “Tucho” – como o bispo argentino é conhecido – vai presidir a partir de agosto tem um longo passado sobre os ombros, tendo sido “o terror de muitos, porque se dedicava a denunciar erros, a perseguir os hereges, a controlar tudo, chegando inclusive a torturar e a matar”, como o próprio arcebispo afirma em sua carta de despedida de La Plata. Por isso, o Papa escreve a seu antigo amigo que espera “algo muito diferente” dele como novo prefeito do Dicastério, especialmente um “crescimento harmonioso” da doutrina a partir das “distintas linhas de pensamento” e o desenvolvimento de “um pensamento que saiba apresentar de modo convincente um Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta”. E, do currículo do prelado argentino, Francisco destaca justamente a capacidade de “pôr em diálogo o saber teológico com a vida do santo Povo de Deus”.
São sinais muito promissores do ponto de vista da sinodalidade. Quaisquer mudanças e reformas estruturais e institucionais em prol de uma Igreja mais sinodal demandarão uma “sustentação teológica” correspondente, nas palavras de Francisco, mas a partir da certeza de que “a realidade é superior à ideia”, como o Papa reitera na carta ao novo prefeito. Portanto, a fim de construir uma Igreja renovada, à altura dos desafios do terceiro milênio (como o “progresso das ciências e o desenvolvimento da sociedade” destacados pelo Papa na carta a Dom Fernández), é preciso uma teologia igualmente renovada e à altura de tais desafios.
E “Tucho” será o primeiro latino-americano e o segundo não europeu (depois de William J. Levada, dos EUA) a presidir a antiga La Suprema desde seu surgimento, no século XVI. Por essa razão, ele levará consigo para o “centro” institucional da Igreja uma forma nova e “periférica” de fazer teologia, particularmente uma teologia pensada a partir do Povo de Deus e “quase do fim do mundo”. Também por isso haverá – e já está havendo – fortes resistências. Obviamente, Dom Fernández apenas presidirá o dicastério, e, portanto, nem tudo dependerá exclusivamente dele. Mas há uma clara mudança de eixo, tanto pastoral quanto simbólica, voltada para as “periferias teológicas” até então esquecidas, ignoradas ou “obsequiosamente” silenciadas.