A Igreja de Jesus Cristo não pode não ser sinodal. Entrevista especial com Alzirinha Souza e Dom Joaquim Mol

Os leigos precisam entender sua função social a partir daquilo que confessam e creem; precisam ser o que são chamados a ser: seguidores de Jesus pela graça do batismo e do seu Evangelho, advertem os teólogos

Foto: Vatican News

14 Agosto 2023

“O processo sinodal não foi uma invenção da cabeça do Papa Francisco. Quer dizer, o Sínodo vem da tradição da Igreja e é um elemento próprio de ser das comunidades que são refletidas e descritas no Evangelho”, relembrou a teóloga Alzirinha Souza, no evento “Instrumentum Laboris Sínodo 2021-2024. Primeiras impressões, perspectivas e desafios”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 20-07-2023.

Segundo ela, a compreensão e a adesão ao processo sinodal na Igreja dependem de um processo de reeducação da compreensão do que é a tradição eclesial. “A tradição da Igreja foi feita e se mantém porque se renova, porque se transforma e se reeduca. Do contrário, ela passa a ser um tradicionalismo. Uma tradição que não se renova, morre. Morre porque se engessa, porque não percebe que os tempos mudaram, a história mudou e as demandas mudaram. Então esse reeducar também passa por uma compreensão ampla de uma Tradição com T maiúsculo, que é a nossa. Senão, estaríamos repetindo uma teologia ou processos ou procedimentos da Idade Média”, pontua.

Inserido na tradição da Igreja, o Sínodo não é um indicativo de que a Igreja está realizando o Concílio Vaticano III. Seu parâmetro e “horizonte fundamental”, diz Dom Joaquim Mol, “é o Concílio Vaticano II”. Na avaliação dele, o Sínodo sobre a Sinodalidade, em curso desde outubro de 2021, deve insistir na substituição da expressão por ‘uma Igreja sinodal’ para ‘a Igreja sinodal’, uma única ou a única Igreja de Jesus Cristo que deve ser – e não pode não ser – sinodal”.

Em sua exposição sobre as impressões acerca do Instrumentum Laboris, documento que orientará a primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade em outubro deste ano, o bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte destacou que a Igreja cresceu numericamente, mas não cresceu na força testemunhal. “Viramos uma Igreja de cristandade. Esse espírito [de cristandade] está voltando. Aliás, ele está na raiz de explicação de fundamentalismos, de reacionarismos, de conservadorismos, de clericalismos, de episcopalismos. Nós desaprendemos, se é que algum dia aprendemos, a força do testemunho de seguidores de Jesus”, lamenta.

A seguir, publicamos, no formato de entrevista, a apresentação e o debate do evento realizado em julho deste ano, com as intervenções de Alzirinha Souza e Dom Joaquim. Nos próximos dias, será publicada uma segunda parte com a exposição do Pe. Flavio Lazzarin.

Confira a entrevista.

Alzirinha Souza (Foto: ITESP)

Alzirinha Souza é graduada em Teologia pela Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre pela Universidad San Dámaso, de Madri, e doutora pela Université Catholique de Louvain – UCL, na Bélgica 2014. É membro da Sociedade Internacional de Teologia Prática – SITP, fundadora e colaboradora do Centro de Pesquisa e Documentação José Comblin, na Universidade Católica de Pernambuco – Unicap. É professora convidada na Universidade Católica Portuguesa – UCP, de Lisboa, onde integra a Comissão de Qualidade da Faculdade de Teologia (2022-2025) e leciona no PPG em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e no Instituto São Paulo de Ensino Superior em São Paulo – ITESP.

IHU – Quais suas impressões gerais sobre o Instrumentum Laboris para a primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade a ser realizada em outubro de 2023?

Alzirinha Souza – No contexto macro, de onde nascem algumas tensões, é necessário situar que estamos em um momento de transição eclesiológica. Estamos entrando no terceiro milênio. Mais do que uma época de mudanças, como diz o Papa Francisco, é uma mudança de época. Saímos, no primeiro milênio, de uma Igreja em construção com sua diversidade de culturas e línguas, com expansão do Evangelho e, de certa forma, de sua consolidação. Depois, entramos no segundo milênio, que é universalista, que propôs uma hegemonização das instituições, paróquias e condutas éticas. No segundo milênio tentou-se criar um rosto de Igreja único para todas as partes do mundo. O Concílio Vaticano II e as teologias contextuais nascidas do Concílio iniciaram um processo de rompimento dessa estrutura, mas a partir de 1978 se reforçou novamente a volta a esse rosto único de Igreja, que é o que tivemos até o Papa Francisco. No terceiro milênio, estamos buscando – e o processo sinodal claramente busca – recuperar o rosto de Igreja do primeiro milênio, recuperando notadamente a diversidade dos rostos e as vozes que são dadas e que são possíveis a esses rostos.

Desses três momentos nasce uma pergunta que, para mim, é essencial: dentro da dinâmica sinodal que está sendo proposta, estamos efetivamente preparados para viver esse processo de forma livre, pensante, dialogante, para respondermos às perguntas que têm nascido desse processo ou já é tarde para isso? Me parece que a maior parte da Igreja pensa que, apesar das resistências, este é o tempo propício para começar o processo sinodal. É dentro desse contexto e com esse olhar que olho o tema do Sínodo.

Sinodalidade como processo

Sobre o documento, em um primeiro momento é preciso lembrar que este Sínodo não é somente mais um sínodo, mas é, como repeti propositadamente várias vezes, um processo que não termina na última reunião. É mais um processo de abertura, de renovação, de continuidade, de solução de continuidade da Igreja. Aqueles que estavam esperando um texto mais fechado, com respostas prontas, se decepcionaram bastante porque não entenderam a dinâmica do processo que vem sendo realizado nas etapas anteriores (diocesana, continental) e, agora, na etapa universal.

A natureza deste Sínodo é por si só particular. Essa é uma riqueza dele. Levamos dois anos percorrendo temas para discernir caminhos e encontrar possibilidades para seguir em frente. Ele é mais particular ainda porque é discernido conjuntamente com leigos, leigas, religiosos, religiosas, presbíteros, bispos, diáconos, com todo o Povo de Deus. A grande marca dele é que é eclesial, não é somente episcopal. Essa grande marca dá a ele e a todo esse processo a possibilidade de abrir grandes questões que até então não tinham sido postas, as quais foram elaboradas nesse documento em forma de perguntas. Mas não é somente um catálogo de perguntas; são temas que estão postos para serem pensados. O documento recolhe o que vem sendo colocado nas etapas anteriores, renovando o convite à reflexão nascida de todas as partes do mundo. É um convite para descobrirmos juntos, todos os agentes eclesiais, outros caminhos e outras possibilidades. Essas duas palavras – caminhos e possibilidades – marcam este processo.

Estrutura

Outro elemento interessante do documento é a estrutura, que retoma três chaves: a) a da comunhão, que coloca os interlocutores no desafio do estabelecimento de novas relações e novas possibilidades de relação; b) o caminho da missão, que toca todos os sujeitos eclesiais; e c) a participação que faz referência aos sujeitos coletivos e às estruturas, que muito acertadamente coloca a Igreja em ato, quer dizer, em vínculo entre o processo sinodal e a realidade e as diversas realidades das Igrejas locais. Nesse sentido, o Sínodo se coloca no meio de duas dinâmicas e aí vem a mudança eclesiológica. De um lado, ainda se recebem alguns elementos vindos de Roma para serem não aplicados simplesmente, mas para serem pensados na base da Igreja. Mas, nesse segundo momento, os temas estão surgindo de um processo que é vivido na base das Igrejas locais para, depois, serem decididos ou repensados nessa última etapa. Esse caminho de proposta, reflexão e tomada de decisão dentro desse conjunto de agentes eclesiais é um elemento que me chama à atenção e que o documento mantém. Por esse caminho se efetiva o que é próprio do Concílio Vaticano II. Retoma por outro caminho o que é específico da Gaudium et spes, que é considerar as alegrias e tristezas do Povo de Deus como aquilo que toca o coração da Igreja, como elementos que devem fazer parte de uma Igreja, mas não de uma Igreja simplesmente, e sim de uma Igreja cuja categoria é efetivamente Povo de Deus, ou seja, que é diverso, plural e missionário.

IHU – Quais os desafios desse processo?

Alzirinha Souza – Dentro deste processo em que está inserido, o documento não traz grandes novidades, mas indica um caminho para a última etapa. Os desafios também são possibilidades para concluir esse processo de maneira mais efetiva apesar de todas as limitações que estamos acompanhando ao longo dos dois anos anteriores.

O primeiro desafio é o de reeducar a Igreja. Poderíamos nos perguntar como. Eu diria que com reformas na formação, nas estruturas eclesiais, mudar as cabeças dos agentes eclesiais para superar aquilo que o Papa chama – desde que ele chegou, em 2013 – de clericalismo, do episcopalismo, leiguismo, todos os “ismos” que envolvem essa palavra. Podemos nos perguntar se isso é possível. É. A América Latina tem grandes e boas experiências de que é possível tornar realidade. É preciso haver uma reeducação eclesiológica e uma reeducação de pensamento. As Comunidades Eclesiais de Base – CEBs estão aí celebrando o seu 15° intereclesial e mostram que é possível outra maneira de ser.

O momento de outubro é um momento para compartilharmos experiências sinodais que nascem do mundo inteiro. Quem participa do Sínodo e olha o processo sinodal dentro dessa etapa, deveria olhar à luz desse espírito. Todas as Igrejas locais e as pessoas que estão na Igreja têm a possibilidade de trazer à tona suas experiências.

Outro desafio é entender que essa nova forma de construção é um caminho para e um caminho em Igreja. Por isso que o processo de escuta atrai novas vozes, mas não são novas vozes que estiveram fora da Igreja; são vozes que estiveram caladas até agora ou que nunca foram perguntadas antes para dar sua contribuição.

Outro desafio é pensar quais respostas nós podemos dar a partir dessa etapa que vem agora. O passo que esperamos é que se dê lugar a algo novo e distinto porque, à medida que não temos a mudança, não percebemos a efetivação do processo. Aí corremos o risco de todo esse processo se perder. Este, a meu ver, é o exercício eminentemente pastoral.

O quinto desafio é entender que cada tema proposto e levantado da base da Igreja, que vai agora para a discussão, é um tema que exigirá decisão e respostas, mas também uma nova abertura. Há um grande ganho nesse movimento que estamos vivendo porque temos discutido assuntos hoje que há 15 ou 20 anos eram impensáveis de serem discutidos. Mais ainda: precisamos imaginar que uma geração, que 15 anos atrás não estava preparada nem pensava na possibilidade de discutir, está participando desse processo sinodal. Esse é o grande ganho que temos. Ou seja, ter diferentes agentes eclesiais discutindo determinados temas é o que vai ampliar, de alguma maneira, a mentalidade e a mudança de mentalidade daqueles que agora começam a compreender que há uma outra possibilidade de ter e ser Igreja. Aí entram temas como a diversidade sexual, o tema da mulher, o tema dos processos históricos, do celibato, das eleições de bispos e todos os processos que surgiram até aqui. Entre eles também, mais uma vez, o desafio de pensar a ministerialidade da Igreja, recuperando novamente – e isto é muito próprio do Concílio – a Igreja como povo de Deus, como forma de compreensão dos ministérios, que agora não toca unicamente os ministros ordenados, mas todas as vocações que se colocam em diálogo dentro do processo sinodal.

Por último, o desafio é pensar – e este é o grande desafio – a re-humanização da Igreja. Essa re-humanização só é possível à luz do exercício do diálogo. A maioria das resistências ao processo sinodal talvez nem seja tanto contra a Igreja ou ao Papa, mas a resistência a uma abertura, a uma delegação de espaço – e talvez, para alguns, isso se entenda como perda de espaço – e a falta de possibilidade de se instituir aquilo que o Papa também nos chama a atenção há muito tempo: a cultura do encontro. Se não nos abrirmos a isso que chamo de re-humanização, de recuperar o que é próprio de cada um de nós, que é o debate, a permissão de fala dos agentes eclesiais, dificilmente chegaremos a uma cultura do encontro e à efetivação do processo sinodal.

IHU – Pode explicar melhor o que entende por “reeducar a Igreja” e em quais aspectos a Igreja precisa ser reeducada, especialmente em relação à participação sinodal?

Alzirinha Souza – Quando falo em reeducar, quero dizer recomeçar desde a base das pequenas comunidades, refazermos nossos procedimentos e nossos pensamentos. Participei e assessorei duas comissões sinodais em duas dioceses diferentes e a própria comissão que produzia o processo sinodal não era sinodal. Ser sinodal não é escolher ser sinodal: hoje, querer ser sinodal, amanhã, não ser sinodal. Ser sinodal é constituinte da identidade cristã, tal como o batismo nos dá uma identidade cidadã, tal como a missão recuperada pelo Vaticano II é constituinte da identidade cristã.

Estamos aprendendo, da mesma maneira que aprendemos no Concílio, a ser missionários e a incluir ou compreender a missionaridade como constituinte. Agora, estamos nos reeducando para aprendermos novamente que sinodalidade é constituinte de cada um de nós cristãos que estamos dentro dessa dinâmica eclesial. Esse é um processo que sofre seus limites e impedimentos por aqueles que pensam que é unicamente caminhar juntos. Mas caminhar juntos nós já caminhamos e chegamos até aqui – e não chegamos muito longe. Mas é caminhar juntos agora de outra maneira.

Tradição

Gostaria de incluir outro elemento nesta reflexão sobre o que é a tradição da Igreja. O Sínodo não é uma invenção. O processo sinodal não foi uma invenção da cabeça do Papa Francisco. Quer dizer, o Sínodo vem da tradição da Igreja e é um elemento próprio de ser das comunidades que são refletidas e descritas no Evangelho. Esse reeducar passa por uma compreensão do que é a tradição. As pessoas têm resistência em entender o que é o novo do Sínodo, que não é novo porque já é constituinte. Essa tradição, isto é, a tradição da Igreja, foi feita e se mantém porque ela se renova, porque ela se transforma e se reeduca. Do contrário, ela passa a ser um tradicionalismo. Uma tradição que não se renova, morre. Morre porque se engessa, porque não percebe que os tempos mudaram, a história mudou e as demandas mudaram. Então esse reeducar também passa por uma compreensão ampla de uma Tradição com T maiúsculo, que é a nossa. Senão, estaríamos repetindo uma teologia ou processos ou procedimentos da Idade Média.

Aqueles que se colocam no segundo milênio e não querem ir para o terceiro milênio agarram-se ao tradicionalismo, que não é próprio da nossa Tradição com T maiúsculo. Esse pano de fundo é importante para as transformações. A Igreja é para ser reformada continuamente como é possível ser reformada, senão vamos morrer.

Instrumentum Laboris Sínodo 2021-24. Primeiras impressões, perspectivas e desafios:

IHU – O pouco entendimento do que é uma diocese e toda sua amplitude não passa por uma articulação pastoral mais horizontal? Como pensar o papel dos leigos nesse cenário?

Alzirinha Souza – Formar os leigos para que eles se compreendam novamente como sujeitos na Igreja. Não são leigos intelectualizados, mas leigos que entendam seu lugar social e sua função social a partir daquilo que confessam e creem. Esse é o primeiro passo. O segundo passo desse processo é torná-los corresponsáveis pelas comunidades e pela comunidade como um todo. Trabalho nas comunidades nos fins de semana, e a maior parte dos leigos se sente mais receptora do que agente e corresponsável pelo espaço eclesial em que está.

Particularmente, penso os leigos como aqueles que estão na dinâmica eclesial, com todas as suas limitações e avanços, diferentemente dos batizados. Diferentemente dos leigos que estão envolvidos na dinâmica eclesial, também precisamos pensar nos batizados que são recomeçantes na Igreja, ou seja, que se batizaram, mas a vida levou para fora. Como nós os incluímos em nossas comunidades e fazemos novamente comunidade com essas pessoas? Enquanto não tivermos leigos formados, abertos, compreendendo o seu lugar e a sua responsabilidade, não vamos avançar na inclusão dos que estão fora, daqueles que muitas vezes querem dialogar conosco e para os quais não temos abertura.

IHU – Quais as contribuições e os riscos de privilegiar a ausência do aparecimento de conflitos para a compreensão da sinodalidade?

Alzirinha Souza – Precisamos deixar claro aqueles que querem o confronto e aqueles que querem o diálogo. Tem pessoas que não querem dialogar, querem confrontar em um nível em que às vezes não é possível nem continuar a própria confrontação. Em toda comunidade o conflito tem seu lado positivo porque nasce daqueles que discordam entre si. Discordar também é saudável, interessante e necessário para avançar. A questão é como discordamos e continuamos sendo comunidade. José Comblin diz que comunidade é o que o cristianismo deixou de mais importante para a humanidade. Isso é o essencial porque é a continuidade do avanço do cristianismo e do anúncio de Jesus. Segundo, é o espaço onde aparamos as arestas, fazemos a experiência de sermos efetivamente cristãos, porque é aí que está o outro. Esse conflito não me preocupa. Me preocupo quando o conflito vira confronto.

Confronto significa polarização e isso acontece com pessoas que não querem estar dentro de uma dinâmica de bem comum, de uma comum unidade (comunidade), que é a comunidade que fazemos em torno da pessoa de Jesus. Aí o conflito perde, de fato, o sentido de ser. Podemos ser conflitantes à luz da companhia de Jesus no sentido de querer avançar, pensar e amadurecer, mas se tiramos o companheiro de caminhada, deixa de ser uma comunidade. Muitas comunidades nossas são tudo, menos comunidade. São grupos de pessoas reunidas, mas que não são caracterizadas por essa centralidade em torno da pessoa de Jesus.

IHU – Gostaria de acrescentar algo?

Alzirinha Souza – O processo sinodal, com todos seus limites e possibilidades, é um processo histórico para a Igreja. Não sei daqui quanto tempo alguém da Igreja vai querer escutar a base da Igreja novamente. Perder esse processo e caminho e não querer se interessar por ele, de fato, é lamentável. É um momento histórico pelo qual estamos passando. É importante considerar com muito carinho este que é um momento muito rico da Igreja universal.

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Dom Joaquim Mol (Foto: Marcos Figueiredo | PUC Minas)

Dom Joaquim Mol é graduado em Filosofia e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, mestre em Teologia pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus – CES, atual Faculdade dos Jesuítas – FAJE, em Belo Horizonte. É professor do departamento de Teologia na PUC Minas. É presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação (2015-2023), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.

IHU – Quais suas impressões gerais sobre o Instrumentum Laboris para a primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade a ser realizada em outubro de 2023?

Dom Joaquim Mol – A Igreja não pode continuar como está. Faria mais sentido afirmar isso há dez anos, mas acontece que muito das reformas que o Papa Francisco propõe estão em curso e não estão ainda totalmente implementadas. Inclusive porque trata-se de ações de reorganização, sobretudo de mudança de mentalidade e conversão. Por isso é importante colocar o Sínodo por uma Igreja sinodal no âmbito da reforma, que é a reforma constante. Dizer que a reforma é constante não significa que ela não tenha resultados. As reformas já feitas precisam de maior vigor na implementação, e a Igreja sinodal é parte dessa reforma; é um ponto que deve permanecer para sempre.

Sobre as impressões e os desafios, eu gostaria de elogiar o itinerário do caminhar juntos. Caminhar juntos não é fácil. Estamos em uma sociedade extremamente individualista e em uma Igreja extremamente dominada por pessoas ciosas por seus espaços de poder. Tem pessoas que brigam por causa de uma pequena comunidade, achando que a comunidade é sua. Assim como há pessoas que brigam por causa de uma diocese ou estão insatisfeitas por causa dos seus escritórios em Roma, no Vaticano.

Caminhar juntos: Vaticano II

Precisamos valorizar o itinerário do caminhar juntos. É interessante observar que foram realizadas sete assembleias continentais e isso é muito importante porque faz com que a Igreja dê atenção a realidades, ainda que sejam realidades amplas de um continente inteiro. Aí vem uma coisa muito importante que o Instrumentum Laboris faz questão de firmar: tudo isso sem detrimento da cátedra de Pedro. Quer dizer, a Igreja continua tendo um rumo, uma direção. A descoberta do Espírito Santo nessa prática eclesial sinodal é muito importante. É ele que ajuda a entender que o Sínodo deve caminhar para um processo permanente de animação da vida ordinária da Igreja. Por isso ele é para sempre – e tomara que seja para sempre. O fruto esperado é que o Espírito inspire a Igreja a caminhar junto, a caminharmos juntos como Povo de Deus, fiéis à missão que Jesus nos deu.

O parâmetro, o horizonte fundamental deste Sínodo, assim como deveriam ter sido todos os outros e devem ser os futuros, é o Concílio Vaticano II. Não estamos fazendo um Vaticano III. Pode ser que estejamos colocando algumas bases que, lá adiante, vão exigir um novo concílio. Mas o fato é que o Sínodo é eclesial, com a participação dos diversos segmentos da Igreja.

Crescimento da Igreja sinodal

O Instrumentum Laboris indica passos para o crescimento de uma Igreja sinodal. Não penso que haverá espaço daqui para frente para outra Igreja que não seja sinodal. Portanto, o documento ou o próprio Sínodo, tendo colocado a Igreja nos trilhos da sinodalidade, deve insistir na substituição da expressão por “uma Igreja sinodal” por “a Igreja sinodal”, uma única ou a única Igreja de Jesus Cristo que deve ser – e não pode não ser – sinodal. Por isso, vejo de uma forma interessante quando o Instrumentum Laboris faz muitas perguntas. Agora, o documento não pode ser simplesmente uma delegação para uma assembleia, para que as assembleias de outubro deste e do próximo ano respondam pura e simplesmente à pergunta. Quase todas as perguntas começam com a palavra “como fazer”; esse é um indicativo interessante. É quase que dizer que precisamos aprender a ser Igreja de uma forma diferente. Então, como fazer isso e aquilo? Como colocar em prática?

Igreja local versus Igreja particular

É muito interessante observar que o Instrumentum Laboris, numa pequena nota de rodapé, prefere a expressão Igreja local à expressão Igreja particular. É sábio. A expressão “Igreja particular” está presente tanto nos documentos do Concílio Vaticano II como foi assumida aberta e fartamente no Código de Direito Canônico. Agora há uma valorização da Igreja local, inclusive por causa das perturbações que a palavra particular pode criar. Quer dizer, um bispo é um servidor da diocese, é um ponto de referência importante dentro da Igreja local, mas não pode considerar sua a Igreja porque a Igreja é a comunidade dos discípulos de Jesus. Esse é um detalhe importante que deve ter consequências práticas.

Dizer que a Igreja local é o ponto de referência privilegiado, lugar teológico onde os batizados experimentam, em termos práticos, o caminhar juntos, desperta em mim uma certa insegurança porque, na realidade, há pouca diocesaneidade na Igreja. Muitas pessoas estão nas comunidades e, se perguntarmos o que é a diocese delas, elas nem sabem propriamente dizer qual é. Tendo sempre a ir mais próximo das pessoas, onde elas estão, seja nas comunidades ribeirinhas, seja nas comunidades indígenas, em uma comunidade própria de pretos. A comunidade poderia ser o ponto de referência. Entendo perfeitamente que isso está explicado no Concílio Vaticano II, inclusive usando a expressão “o bispo e a sua Igreja”, mas entendendo a Igreja na qual ele deve entregar toda a sua vida.

A linguagem do Instrumentum Laboris

Eu gostaria de destacar ainda que no documento há um cuidado muito grande com a linguagem. Tenho um receio em relação a isso porque, em algum momento, é possível destacar do texto a preocupação com o conflito e entender que as divergências são importantes. Há outros momentos em que isso incomoda. Ou o contrário disso incomoda. Sobretudo porque se diz que no Sínodo não deveríamos nos ocupar dos debates e discussões, mas da escuta. Mas a escuta que não gera debates e discussões é uma escuta diminuída no seu valor; não só na sua intensidade, mas no seu valor. A escuta é precisamente para que possamos debater. Debater e reconhecer as diferenças não é necessariamente brigar ou agredir as pessoas.

Instrumentum Laboris Sínodo 2021-24. Primeiras impressões, perspectivas e desafios

O excesso de cuidado nesse aspecto pode expressar muito mais um certo medo do que a coragem que uma Igreja sinodal exige de todos nós. É preciso lembrar que a Igreja sinodal é fundada no batismo, na dignidade derivada do batismo. O próprio instrumento, no número 20, lembra exatamente isto, que o batismo é que faz do batizado comprometido com a Igreja, o batismo é a entrada na Igreja. No número 37, o documento diz que é preciso abster-se dos debates e discussões. Penso o contrário: não é necessário abster-se dos debates e discussões, com o devido cuidado para que os grandes não dominem os pequenos.

Igreja ministerial

Uma Igreja toda ministerial, afirma o documento, não é necessariamente uma Igreja toda de ministérios instituídos. Fiquei me perguntando se isso aqui não é uma espécie de reserva antissinodal, uma reserva para o clericalismo porque uma Igreja sinodal não pode ser uma Igreja incapaz de instituir e reconhecer os seus muitos ministérios, inclusive para dar resposta às múltiplas vocações e aos múltiplos chamados que Deus faz a tantas pessoas. Tenho a impressão de que o instrumento valoriza e investe pouco na Igreja da base, na comunidade. Ele para na Igreja local. Mas da Igreja local para baixo estão as paróquias e, embaixo das paróquias, as comunidades. É ali que o Instrumentum Laboris precisa chegar porque a Igreja não acontece em outro lugar senão exatamente nas comunidades, pequenas e de base da Igreja, mas eclesiais, na comunhão a partir da Eucaristia, da palavra de Deus e assim por diante. Esse é um ponto no Instrumentum Laboris que sinto muita falta. Se não considerarmos a comunidade, o Sínodo fica parecendo mais institucional do que um Sínodo da Igreja viva que Jesus Cristo espera que todos nós sejamos.

Mulheres

Tem um ponto que é fulcral: a questão da mulher. A mulher não somente vista como mãe, esposa, mas a mulher pela sua condição de mulher, que precisa ter participação, sim, no nível da governança, da tomada de decisão, na missão, nos ministérios em todos os níveis. Esse é um ponto fundamental até porque a maior parte dos membros da Igreja católica no mundo, hoje, é constituída de mulheres.

Clericalismo

O clericalismo, de fato, aparece como uma preocupação generalizada dentro da Igreja, em todas as partes. Portanto, o Sínodo precisará encaminhar respostas efetivas para esse problema porque o clericalismo é uma força que isola. Inclusive, o clericalismo é o que nos impede de caminhar na direção com o chão da Igreja – o que também senti falta no Instrumentum Laboris de maneira mais aprofundada e explicitada. O clericalismo nos tira do chão da Igreja, da realidade, onde estão as pessoas com trajetória de rua, os miseráveis, aqueles que são famintos e têm fome de alimento, aqueles que estão nas vilas e favelas, nos cortiços e em todos os lugares. Uma Igreja clericalista não é frequentadora desses ambientes. Frequentadora desses ambientes é uma Igreja povo de Deus porque sabe reconhecer exatamente aqueles que ali estão como irmãos e irmãs de fato.

IHU – O que as resistências e adesões ou não adesões ao processo sinodal, principalmente na etapa local, representam e revelam sobre o nosso tempo?

Dom Joaquim Mol – A resistência ao Sínodo por uma Igreja sinodal, que valoriza a comunhão, a participação e a missão, é correspondente à resistência da pastoral de conservação. Quanto mais pastoral de conservação, mais resistência ao Sínodo por uma Igreja sinodal. A pastoral de conservação é uma coisa terrível dentro da Igreja. É aquela forma de ser Igreja cristalizada, de costas para o presente e muito mais para o futuro, que fica o tempo inteiro apreciando, quase como uma espécie de ato de perversão pastoral, o cheiro da fumaça do incenso jogada no passado. Resistência tem muito a ver com pastoral de conservação.

IHU – A Igreja precisa se reeducar? Em que sentido?

Dom Joaquim Mol – A Igreja precisa renovar seu calor fundacional. Ela precisa beber de uma fonte que é primeira e não segunda. Ela bebe bem da segunda e da terceira fontes, mas precisa beber na fonte primeira. Aí a importância de devolver a centralidade de Jesus Cristo à Igreja porque isso é fundamental. É preciso um processo de reeducação, mas é um processo de uma renovação muito profunda que passa por uma nova forma, ou seja, uma reconstrução, de modo que o grande patrimônio da Igreja seja suas comunidades e não seus prédios: os discípulos de Jesus, a fonte primeira, dando testemunho do Evangelho anunciado por Jesus, que não é outro senão exatamente o Evangelho do Reino.

Costumo dizer que a Igreja precisaria colocar, como fonte de unidade ou como princípio, fundamento, da unidade, a sua constituição máxima, que é o Evangelho. A constituição de um país é base, fundamento, da composição do país e tudo que nele acontece. Nós temos também uma constituição, que é a pessoa de Jesus, e, depois, aquilo que nasce de Jesus e vai na Tradição de T maiúsculo.

IHU – O pouco entendimento do que seja uma diocese e toda sua amplitude não passa por uma articulação pastoral mais horizontal? Como pensar o papel dos leigos nesse cenário?

Dom Joaquim Mol – Quando falamos de cultura do encontro, não é da comunidade que estamos falando? A comunidade não é a expressão de que a cultura do encontro pegou, está em ato, está sendo vivenciada? A vida em comunidade é a vida do encontro das pessoas. O Papa Francisco insiste muito nisso. É neste lugar que encontramos os leigos. Eles estão também, mas em menor quantidade e, às vezes, não tão bem apropriados em outros lugares de uma diocese, por exemplo, mas sobretudo na comunidade. Então a linguagem sobre os leigos não pode ser uma linguagem generalista no sentido de incluí-los na Igreja com cidadania eclesial pela força e graça do batismo. Não pode ser uma linguagem generalista, que coloca tudo quanto for leigo e leiga de uma mesma forma. Sempre que a Igreja fala de leigo e leiga e quer lembrar os outros para não ficarem de fora, coloca os leigos e leigas por último: o bispo, o padre, religiosa e religioso e leigos. Nunca são os leigos em primeiro lugar. É muito curioso e sintomático. A linguística nos ajuda a perceber isso.

Os leigos, pela mesma força da graça do batismo, precisam ser o que são chamados a ser. Não basta ser chamado de leigo. É preciso considerar os leigos seguidores de Jesus pela graça do batismo e do seu Evangelho, que é o Evangelho do Reino. Portanto, capazes de dar razão da sua fé, partícipes da comunidade eclesial e testemunha de Jesus Cristo na Igreja e na sociedade. Ou seja, leigos e leigas pensados nesse patamar, com esse quilate alto, digamos assim, precisam ser iniciados na vida cristã de fato e ser formados adequadamente. Existem muitos leigos e leigas iniciados na vida cristã, preparados e formados nessa perspectiva. Não ter a formação e a iniciação gera cristãos leigos e leigas fundamentalistas, ingênuos, facilmente manipuláveis, à margem da Igreja sinodal. Quando digo isso, não penso que o leigo tem que ser intelectualizado. Não se trata de intelectualizar o leigo, mas dele saber da razão da sua fé e participar da Igreja e, inclusive, não se deixar manipular. É preciso incentivar que sejam profetas, sacerdotes e pastores.

IHU – Quais as contribuições e os riscos de privilegiar a ausência do aparecimento de conflitos para a compreensão da sinodalidade?

Dom Joaquim Mol – Crescemos muito como Igreja, numericamente falando, mas não crescemos tanto na força testemunhal porque viramos uma Igreja de cristandade. Esse espírito [de cristandade] está voltando. Aliás, ele está na raiz de explicação de fundamentalismos, de reacionarismos, de conservadorismos, de clericalismos, de episcopalismos. Nós desaprendemos, se é que algum dia aprendemos, a força do testemunho de seguidores de Jesus.

Gosto de saudar as pessoas dizendo assim: “Que Deus, o Senhor Jesus, seja a sua companhia”. Quer dizer, ele está junto. E se ele está junto, em uma espécie de teologia da companhia, isso me fortalece a ser como ele, a aprender dele, a me fortalecer nele para dar esse testemunho. O cardeal Ratzinger disse que a Igreja será uma Igreja pequena, de testemunho, mas testemunhos racionais, teológicos, de conhecimento do catecismo. Um grupo pequeno de ilustrados. Outro autor que defendeu essa tese mais recentemente é o jesuíta e teólogo uruguaio já falecido, Juan Luis Segundo. Ele dizia que seríamos poucos. A Igreja será pequena, mas será de minorias abraâmicas, como disse também Carlos Mesters. Serão pessoas com uma força de testemunho muito grande. Aqui está o segredo. Não pensemos no testemunho como alguém que vai dar uma palestra em forma de testemunho e conta seu processo de conversão como em um encontro de casais. É muito mais do que isso; é um testemunho que nasce do fato primeiro de termos testemunhado pela nossa fé o que Jesus Cristo é, foi e anunciou e porque ele morreu. Aí sim penso que daremos conta de avançar neste caminho, sem nos incomodar com o tamanho da nossa Igreja, se ela venha a reduzir. Importa o grau do testemunho que damos do Evangelho.

IHU – Gostaria de acrescentar algo?

Dom Joaquim Mol – As grandes conquistas do mundo e de cada pessoa, mesmo na simplicidade da vida, resultam de um pouco de teimosia. É bom uma dose de teimosia. É bom insistir em uma série de coisas, ainda que não saiam do jeito que sonhamos. O que conseguirmos por essa teimosia será um grande ganho para a Igreja. Gosto de insistir na ideia da esperança. Não como um sentimento dentro de nós, mas a esperança que é carregada de indignação, mobilização das pessoas, de partilha daquilo que acreditamos porque a Igreja de Jesus precisa ter uma solução para muitas coisas e tem que recuperar toda a sua força no meio da sociedade múltipla em que está. Iniciar ou continuar o caminho com esse Sínodo por uma Igreja sinodal é um bom começo.

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