Por: Patricia Fachin | 13 Outubro 2017
As políticas de austeridade que têm sido adotadas em muitos países desde a crise econômica internacional de 2008 “partem do princípio de que hoje a culpa é de vocês, ou seja, do povo, que quer saúde de graça, que gasta demais, que pressiona os orçamentos”, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida pessoalmente quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, participando do ciclo de eventos Intérpretes e suas obras, na última segunda-feira, 09-10-2017, onde apresentou seu novo livro, escrito em conjunto com Gabriel Galípolo, Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp, 2017). Para ele, a adesão a esse tipo de política é “uma forma de replicar e reproduzir o mesmo sistema de dominação e controle que se tinha ao longo dos anos 1980 e que se acentuou depois”.
Na entrevista a seguir, Belluzzo também comenta a problemática central do seu livro, que consiste em avaliar os processos sociais, econômicos e políticos que alteraram as dinâmicas econômicas a partir dos anos 1970, como o choque no mercado de petróleo, a crise global de 1974, a estagflação da economia europeia e americana, e a liberalização da economia e as consequências dessas mudanças nos dias atuais. A transformação iniciada nas economias nacionais nos anos 70, diz, “foi muito profunda, porém, o saber convencional não se deu conta dessa situação e continuou raciocinando como se estivesse operando ainda em um sistema de uma economia internacional, mas agora havia uma economia global. A palavra está certa, mas eles não sabiam qual era o conceito, e o conceito é este: as economias foram integradas de tal maneira que existe uma interdependência muito estreita. Trump, por exemplo, está querendo reagir contra a China, mas ele não tem como, porque, se ele fizer isso, acaba com a economia americana”.
Apesar das vantagens e desvantagens da globalização e do aumento da rigidez no controle dos gastos públicos, o economista frisa que uma parte significativa do debate global atual está centrado na tentativa de viabilizar um pacto internacional para diminuir as políticas de austeridade. Entretanto, adverte, esse debate é apresentado de forma polarizada entre aqueles que defendem a globalização e aqueles que são favoráveis ao protecionismo e ao nacionalismo. “A questão é como e de que modo se organiza o sistema internacional de forma que seja possível preservar a sobrevivência dos espaços locais, ou seja, dos espaços jurídico-políticos de onde os homens vivem. (...) A questão não é protecionismo versus não-protecionismo, mas como preservar os benefícios da globalização, da integração da economia, sem danificar a vida das pessoas locais. (...) O debate se polariza em torno de coisas que não são mais exequíveis como, por exemplo, o protecionismo total ou a abertura completa das economias. É por isso que alguns falam num novo New Deal ou num novo Bretton Woods na sua versão original”, esclarece.
Nesse contexto, sugere, um projeto de desenvolvimento brasileiro precisa “incorporar esse novo espaço criado pela globalização e aumentar o controle sobre os instrumentos-chave, que são o fluxo de capitais, o comércio exterior, o balanço de pagamentos e o financiamento do investimento. Então, tínhamos que reforçar ao invés de debilitar o BNDES e os bancos públicos, ter controle sobre o câmbio, não ficar à mercê do movimento de capitais, mas para isso tem que diminuir muito a importância do mercado financeiro, porque é ele que está mandando no Brasil”.
Professor Belluzzo na Unisinos
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano de Planificação-Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e, atualmente, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas - Facamp, onde é professor.
Publicou este ano o livro Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp / Editora Contracorrente, 2017).
Além disso escreveu, entre outros, O capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009), Temporalidade da Riqueza - Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da UNICAMP, 2000) e Depois da Queda (BELLUZZO, Luiz Gonzaga e ALMEIDA, Júlio Gomes de. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - No noticiário econômico internacional e nacional cada vez mais fala-se em austeridade. Qual é a lógica desse “fenômeno” e como ele se iniciou no âmbito internacional e chegou ao Brasil? Que aspectos têm motivado os governos a adotarem políticas desse tipo?
Luiz Gonzaga Belluzzo – As políticas de austeridade que foram adotadas depois da crise de 2008 partem do princípio de que hoje - como dizia o sociólogo italiano Luciano Gallino – a culpa é de vocês, ou seja, do povo, que quer saúde de graça, que gasta demais, que pressiona os orçamentos. Apesar disso, há uma reação contra a austeridade, que é bastante intensa na Europa e mesmo nos Estados Unidos, onde economistas e sociólogos da corrente principal têm se colocado contra as políticas de austeridade por uma razão muito simples: porque os exageros não são daqueles que estão pagando a conta, mas dos que comandam a economia, os mercados financeiros, ou seja, daqueles que abusaram dos espaços que foram criados e produziram uma bolha financeira de enormes proporções.
Certamente, do ponto de vista da abrangência e da difusão dos ativos que foram supervalorizados, não tivemos nenhum episódio semelhante a esse gerado pela crise de 2008, porque nem a crise de 1929 foi igual, embora, talvez, as consequências da crise de 29 tenham sido maiores. Porém, também as reações em 29 foram muito mais decisivas no sentido de evitar que os efeitos da crise desabassem sobre os mais fracos. O ex-presidente Roosevelt fez isso nos EUA, e, mal ou bem, a economia política do nazismo impediu que houvesse uma devastação social, por conta da crise que começou a ocorrer na Alemanha.
Mas desta vez isso não ocorre. Por incrível que pareça, a reação contra essa situação foi muito tímida e limitada entre os prejudicados, mas provocou um desgosto muito grande entre aqueles que compreenderam que a austeridade foi uma forma de replicar e reproduzir o mesmo sistema de dominação e controle que se tinha ao longo dos anos 1980 e que se acentuou depois.
A insistência na austeridade está sendo muito ruim. Hoje em dia há um “trololó” de que as economias europeia e americana estão crescendo, mas elas estão crescendo com o aumento das desigualdades, com o aumento da precarização de situações que são muito dolorosas do ponto de vista humano. O número de sem-tetos em Nova Iorque cresceu muito e o trabalho precário também. Apesar disso, a situação é difícil, porque as burocracias, especialmente a europeia, é muito resistente a adotar uma política de avanço ao estado de bem-estar social.
É muito difícil antecipar até onde essa situação irá. Vai haver um esforço das classes dominantes e dirigentes de manter essa situação, mas está cada vez mais difícil. Há sintomas claros dessa insatisfação; Trump é um sintoma disso. Ele exprime bem essa grande insatisfação com as políticas de austeridade e com a derrota, de um lado, do ideal americano de que o filho sempre tem uma situação melhor que a do pai e, de outro, do projeto de conquista individual. Precisamos observar isso porque o que guia essas pessoas é a frustração, e está cada vez mais claro que elas não conseguiram conquistar determinadas coisas não por causa delas – que era a justificativa corrente -, mas por outras razões. Esse fracasso é coletivo e as pessoas começam a se dar conta de que não era aquele o problema. O fato de o Corbyn, na Inglaterra, e o Sanders, nos EUA, terem amealhado um bloco de apoiadores que se dizem socialistas é significativo. Isso seria impensável nos EUA 30 anos atrás. Estamos assistindo a uma mudança que está sendo produzida pela insistência na austeridade.
IHU On-Line – Essa insistência na austeridade é um movimento de ordem econômica ou política?
Luiz Gonzaga Belluzzo – A economia é inseparável da política. Ela é política econômica. Uma das consequências dos últimos 30, 40 anos é olhar a economia como uma instância que é separada da política, mas isso não é verdade. Basta olhar o que está acontecendo no Brasil hoje, em que a política econômica, decidida por um governo ilegítimo, acaba se traduzindo na criação da PEC do teto, na reforma trabalhista, na contramão do que está acontecendo na tendência da economia com a vinda da revolução 4.0. Tudo isso se dá no campo político-econômico e não há nenhuma possibilidade de separar essas duas instâncias, ainda que os conservadores façam força para separá-las, porque eles imaginam e trabalham com uma economia que, na verdade, está deslocada da sociedade. Entretanto, vários economistas conservadores, como o Raghuram G. Rajan, que foi presidente do Banco Central da Índia e economista-chefe do Fundo Monetário Internacional - FMI, diziam que a economia estava incrustada na sociedade.
IHU On-Line – A adesão a políticas de austeridade tem relação com o protagonismo que os sistemas financeiros desempenham hoje? Que relações estabelece entre eles?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Sem dúvida, porque a economia, em geral, suprime as relações de poder que foram criadas – e foram lentas - ao longo do estado de bem-estar social, porque o poder e as decisões passaram para a mão das instituições financeiras.
Em boa medida, as pessoas acham que o que elas chamam de financeirização é um fenômeno excepcional para o capitalismo, mas a financeirização faz parte da lógica interna do capitalismo, ou seja, ela não é uma extravagância. Ela é uma forma que o capitalismo assume quando consegue se livrar dos controles, das regulamentações, ou seja, desenvolve isso espontaneamente. Se observarmos os dois autores que trataram disso com mais cuidado e rigor, como Marx e Keynes, veremos que em Marx o capital financeiro é a forma mais avançada do capital no sentido de que leva às últimas consequências a sua dinâmica interna; em Keynes também. Schumpeter, na Teoria do desenvolvimento capitalista e no Tratado da moeda, também desenvolve essa questão.
Hoje em dia a economia começou a se transformar numa espécie de mimetização das ciências naturais, o que é um equívoco grave. Também há um problema histórico, porque quando pensamos no capitalismo do pós-guerra, que combinava uma forte inclinação ao crescimento, ao investimento produtivo, à formação de renda, ao emprego, às políticas de proteção social, percebemos que ele estava organizado de uma determinada maneira que levou a um período de benfazejo da economia capitalista sobre o controle público, que não é só do Estado, mas das forças sociais, dos sindicatos etc.
A partir dos anos 1980 se começou a soltar o “bicho” [capitalismo], e ele criou essa relação que não tem paralelo nem com o século XIX, nem com os anos 1920, e produziu os mesmos resultados: uma crise devastadora, com efeitos mais danosos. Isso porque enquanto nos anos 1930 houve uma reação contra esses estragos que o capitalismo fez, agora se percebe uma resistência enorme das políticas, das visões que sustentam e reforçam o poder das finanças.
IHU On-Line – Em contrapartida, algumas instituições, como o Vaticano e a ONU, já se pronunciaram pedindo o fim da austeridade e afirmando que é preciso de um novo New Deal, uma espécie de um novo pacto internacional. Essa seria uma via possível? Em que consistiria um pacto internacional para diminuir a austeridade?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Muito do debate de hoje está centrado nisso. Além de considerar a posição do Vaticano e da ONU, que são núcleos mais esclarecidos e preocupados com o destino que as pessoas mais frágeis têm, temos que olhar o todo e entender as tendências que estão se movendo nesse debate. Uma delas quer manter o status quo e ficar repetindo que a globalização é importante e que não pode ter protecionismo. Mas as forças que estão produzindo esses desequilíbrios, ao mesmo tempo, suscitam esse protecionismo. O protecionismo seria a melhor solução? Não, a melhor solução seria uma coordenação internacional, mas não vejo quais são os atores e as instituições que vão realizar essa coordenação.
De um lado, os chineses hoje são os maiores defensores da globalização, porque eles são os maiores beneficiários dela e, de outro lado, nos EUA e na Europa há um crescimento dos partidos mais nacionalistas e à direita. Então, a questão é como e de que modo se organiza o sistema internacional de forma que seja possível preservar a sobrevivência dos espaços locais, ou seja, dos espaços jurídico-políticos onde os homens vivem.
A questão não é a globalização; a questão é que a globalização decorre e é acompanhada de uma abstração, o que Marx chamava de abstração real, ou seja, o movimento da economia se dá num espaço que em parte prescinde das pessoas concretas que estão vivendo nos seus territórios e jurisdições e, nesse sentido, os Estados perdem força e capacidade de decisão. O maior exemplo, que foi frustrado pelo Trump, é o tratado que dava jurisdição para as empresas processarem os Estados caso elas se sentissem prejudicadas por medidas adotadas por eles, como uma medida ambiental, por exemplo. Então, está se descolando a economia do espaço jurídico-político, ou seja, está se dando uma autonomia enorme para esses grupos empresariais e invertendo a relação.
Esse debate às vezes esconde isso, porque a questão não é protecionismo versus não-protecionismo, mas como preservar os benefícios da globalização, da integração da economia, sem danificar a vida das pessoas locais. Mas muitas vezes esse debate não aparece assim, mas sobre a forma de se dizer que alguém é protecionista, ou é nacionalista. O debate público foi muito polarizado, e tudo que é polarizado não permite mediação e não permite a compreensão do que está ocorrendo. Então, é preciso que se tente divulgar e compreender melhor o que está ocorrendo: na verdade há uma desestruturação do que aconteceu em 2008 e as tentativas de manter isso vão agravar o problema. O debate se polariza em torno de coisas que não são mais exequíveis, como, por exemplo, o protecionismo total ou a abertura completa das economias. É por isso que alguns falam num novo New Deal ou num novo Bretton Woods na sua versão original.
Em Bretton Woods queriam fazer uma economia internacional, de modo que as entidades internacionais se relacionassem mais, mas preservando a sua autonomia, a sua especificidade. Isso é o mais razoável. O Keynes em 1933 radicalizou e disse que as economias tinham que ser nacionais, mas depois ele disse que era preciso que as nações se integrassem, porque ele pensava no desenvolvimento do comércio, mas com a preservação da autonomia nacional. O que aconteceu depois de Bretton Woods é que foram mantidos mais ou menos esses princípios, mas talvez teria sido preciso criar uma moeda internacional, como se propunha. Isso é uma coisa fundamental, porque uma das razões pelas quais os Estados nacionais, especialmente os emergentes, não conseguem ter autonomia na sua política econômica, é que eles são submetidos aos movimentos de capitais. Então, vira e mexe, se acontece algo na política americana e a Janet Yellen sobe a taxa de juros, nós levamos uma “trombada” no Brasil sem que tivéssemos feito nada de errado. Mas há muita resistência em mudar isso, porque a mídia em geral só transmite a opinião dos mercadistas e vai reforçando essas ideias. Isso é grave, porque vai cravando, nas pessoas que não têm domínio sobre essas questões, ideias simplórias que são repetidas. Isso tem a ver também com a ideia da austeridade, que tem uma origem financeira que consiste em dizer que temos de seguir determinadas regras, sem exigir muito dos orçamentos porque, do contrário, as empresas vão embora daqui. Está cheio de notícias dizendo: “os investidores estão indo embora”. Mas quem são esses investidores? São rentistas.
IHU On-Line - O que seria uma alternativa às políticas de austeridade, considerando a situação brasileira, por exemplo? Alguma dose de austeridade é necessária?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O ajuste, da maneira que foi feito no Brasil, é totalmente equivocado, porque produziu um desajuste. No mundo inteiro, hoje, inclusive no FMI, se tem a percepção de que o único caminho para combinar um bom desempenho da dívida pública e um bom desempenho das finanças públicas é montar um programa de investimento em infraestrutura. Isso o Trump falou e não fez, e os europeus, por causa dos alemães, não fazem. As pessoas raciocinam com as categorias de uma economia como a americana ou a chinesa, mas fazem tudo errado. Então, não há nenhuma possibilidade de resolver o problema fiscal que, no caso do Brasil, não era tão grave, porque a dívida pública estava em 53% do PIB, mas agora está caminhando para 90% - isso mostra o peso que as ideologias têm nas tomadas de decisões.
O que aconteceu com o Brasil, em grande medida, foi que a partir dos anos 1990, com as privatizações, com a ideia de que abrir a economia seria uma estratégia, se perdeu a capacidade de coordenação da economia que o Estado tinha desenvolvido desde o final dos anos 50 até os anos 80. Isso vinha ainda dos anos 30, mas foi intensificado com o governo Juscelino Kubitschek, com o plano pós-64, o Programa de Ação Econômica do Governo - PAEG. Os militares não abandonaram isso. Eles cometeram outras atrocidades, mas levaram essa ideia adiante até os anos 70, 80. Depois da crise da dívida externa, desmontamos tudo e continuamos desmontando.
Eu temo que o Brasil vá ficar por muitos anos paralisado, pois embora se diga que a economia vai crescer 1%, isso não cria condições melhores para as políticas sociais de investimento público. Se olharmos o desempenho do crescimento brasileiro ao longo dos últimos 30 anos, desde a década de 1990 até agora, veremos o seguinte: tivemos o Plano Collor, que foi o que foi; depois o Plano Real, que garantiu um crescimento médio, durante o período Fernando Henrique, de 2,3%, em um país que vinha crescendo a 7%; depois, com a posse do Lula, nós tivemos a sorte do choque das commodities e o Lula aumentou o salário mínimo, fez o crédito consignado, ou seja, permitiu que as pessoas pudessem consumir, e o investimento também subiu. Mas depois da crise econômica de 2008 houve uma reação muito rápida em que a economia cresceu 7,4% em 2010 e daí em diante começou a desacelerar. Então, a tendência estrutural da economia, observada por esses dados, é de crescer pouco.
IHU On-Line — A proposta do seu novo livro, escrito com Gabriel Galípolo, é avaliar os processos sociais, econômicos e políticos que alteraram as dinâmicas das economias a partir dos anos 1970. Sobre isso, gostaria que o senhor comentasse três aspectos: por que a análise parte desse período, quais são esses processos sociais, econômicos e políticos que alteraram as dinâmicas econômicas desde então, e quais são as consequências disso nos dias de hoje?
Luiz Gonzaga Belluzzo — Os anos 1970 foram marcados pelo choque do petróleo, pela crise global de 1974,1975, que foi uma recessão sobre o efeito do ajustamento do choque de petróleo. Além disso, nesse período houve uma estagflação, ou seja, a economia vinha de taxas de crescimento elevadas de 6% e 5% na Europa e um pouco menos nos Estados Unidos, mas o crescimento declinou e o choque do petróleo produziu uma mudança no patamar inflacionário em todos os países: nos EUA, em 1978, a inflação chegou a 13%, que é muito alta. A ideia que surgiu à época era a de que precisávamos acabar com tudo isso, e acabar inclusive com a pressão dos sindicatos — Margaret Thatcher diminuiu o poder dos sindicatos —, pois eles eram acusados de pressionar os salários e produzir a inflação.
Nesse período, defendeu-se também a ideia de que era preciso liberalizar a economia, e o Ronald Reagan disse que o Estado não era a solução, mas o problema. Então, começou um processo de desmontagem do estado de bem-estar, um recuo do Estado em alguns espaços de atuação e, ao mesmo tempo, isso foi simultâneo a uma situação de déficit fiscal e déficit externo na economia americana, e nesse mesmo período iniciou-se a migração da grande empresa americana para fora. Isso tudo aconteceu exatamente no momento em que a China estava fazendo as suas reformas. Na verdade, nesse momento — muitos esquecem disso — se ampliaram os espaços de expansão do capitalismo quando se integrou a China, a partir dos anos 1970. A partir desse período, a China se tornou uma economia receptora de investimentos, no momento em que a valorização do dólar e os déficits americanos estavam empurrando as empresas para fora. Portanto, houve esse movimento de reestruturação global da matriz produtiva, isto é, a globalização da manufatura.
Isso também foi acompanhado de uma progressiva liberalização financeira, que produziu um ingurgitamento do mercado financeiro americano, porque todo mundo correu para o dólar naquele momento. A Europa teve um problema de estagnação, e o Japão, a partir do Acordo do Louvre, no final dos anos 1980, entrou em uma crise de décadas, da qual ainda não saiu. O que aconteceu é que as políticas nacionais foram estimulando essa distribuição espacial da produção. No caso dos chineses — como eles mantêm o controle sobre essas coisas —, eles fizeram um movimento de absorver e reprocessar a produção para dentro, ou seja, criaram seus sistemas de inovação, ao passo que com a recessão da Alemanha, também a Europa sofreu um processo de desindustrialização, assim como os Estados Unidos.
O Brasil, que ainda tinha conseguido manter nos anos 1970 a economia crescendo a 7% e tinha financiamento externo, enfrentou uma crise quando os americanos subiram a taxa de juros em 1979, o que desencadeou um processo terrível para os países da periferia. O Brasil passou toda a década de 1980 tentando resolver a questão da dívida externa, com hiperinflação etc. As consequências foram muito drásticas, inclusive a ideia de que o problema era o fato de ter “muito Estado” nos conduziu para a privatização e para a desarticulação do nosso modo de crescer.
Depois, tivemos a globalização e foi a construção desse espaço de interdependências que levou à crise de 2008, porque, de um lado, os Estados Unidos perderam a capacidade de continuar crescendo como cresciam à base do pagamento de bons salários, e passou a crescer à base do endividamento das famílias — isso cola com a financeirização dos fluxos de capitais, que foi importantíssimo e decisivo, porque sem isso não teríamos a explosão de financiamentos baratos para imóveis etc.
Se olharmos a curva de entrada de capital financeiro nos Estados Unidos, veremos que ela é impressionante a partir dos anos 1980. Não foi o Banco Central norte-americano que baixou a taxa de juros, e sim a taxa de juros longa ficou baixa, facilitando a captura de clientes. Primeiro ocorreu uma bolha, que não teve tanto impacto, depois veio o subprime, mas o fato é que se teve uma inflação de ativos impressionante. Tanto que, para termos uma ideia, economistas que ganharam o Prêmio Nobel, como o Robert Lucas, haviam dito que não iria acontecer nada, porque o subprime estava muito restrito — ele disse isso porque não entendeu como funcionam as conexões dentro do mercado financeiro.
Essa transformação foi muito profunda, porém o saber convencional não se deu conta dessa situação e continuaram raciocinando como se estivessem operando ainda em um sistema de uma economia internacional, mas agora havia uma economia global. A palavra está certa, mas eles não sabiam qual era o conceito, e o conceito é este: as economias foram integradas de tal maneira que tem uma interdependência muito estreita. Trump, por exemplo, está querendo reagir contra a China, mas ele não tem como, porque, se ele fizer isso, acaba com a economia americana. No livro eu trato desse longo processo e no fim apresento a situação do Brasil; no último capítulo, trato das consequências sociais e políticas desse processo.
IHU On-Line — Umas das consequências que o senhor menciona é que não existem mais vários modelos econômicos, mas uma simbiose entre a industrialização chinesa e a financeirização norte-americana. Quais são os impactos dessa simbiose para as demais economias?
Luiz Gonzaga Belluzzo — Não podemos entender o desempenho das duas economias sem olhar para as relações. É claro que existem movimentos internos que também respondem à expansão dessas relações, mas o que se criou mesmo foi uma globalização desigual e combinada. Assim como na Europa, a Alemanha e a periferia europeia não podem ser entendidas separadamente, pois o sucesso da Alamana foi o fracasso das outras economias. Por isso que se chama globalização desigual e combinada, porque ela não é homogênea. A ideia de globalização é a ideia de que se está criando um espaço homogêneo, quando na verdade está se criando um espaço cheio de saliência.
Não vamos resolver essa questão, até porque os chineses estão avançando na internacionalização da sua moeda, estão investindo fora, estão mudando a composição do “portfólio” deles: eles estavam aplicando em títulos americanos e agora estão fazendo investimento em ativos reais; eles tinham quatro trilhões de reservas e reduziram o montante para três trilhões. O pessoal acredita que isso é perda de reserva, mas não é; eles mudaram a composição do "portfólio", saíram para investir fora de maneira muito controlada e estão comprando tudo aqui, inclusive já investiram 52 bilhões no Brasil. A China será um comprador da Eletrobras se forem privatizá-la.
Esse conjunto de relações e interdependências é muito complexo, porém, o que podemos dizer é o que o movimento das relações é o que determina o destino dos países. Claro que se pode ter um momento em que será necessária uma coordenação global — não estou dizendo que tem de haver uma cidadania global. Mas será preciso uma coordenação para preservar a sobrevivência das pessoas que estão nos seus locais. Aliás, está cheio de estudos sobre o local e o comum, porque as pessoas estão vendo que não dá para continuar levando esse capitalismo globalizado de acordo com a sua lógica e as suas tendências, pois ele tende a se tornar cada vez mais independente e indiferente à situação das pessoas.
IHU On-Line — Na última entrevista que nos concedeu, o senhor disse que no momento atual, especialmente por conta das mudanças tecnológicas e no âmbito do trabalho, e por conta das dinâmicas econômicas, não se trata mais de reeditar o estado de bem-estar social que existia nos anos 50, mas precisamos avançar, porque do contrário geraremos uma barbárie. Como precisamos pensar o desenvolvimento do estado de bem-estar social para dar conta da realidade atual e do futuro?
Luiz Gonzaga Belluzzo — Eu falei que temos que avançar e, de fato, temos que ir além. Primeiro, porque a globalização produziu uma redução importante de empregos e salários. A nova onda tecnológica, que o pessoal genericamente chama de 4.0, vai deixar muita gente desempregada — já está se observando isso em muitos países, como Portugal e Espanha, pois os jovens, mesmo os que se formam na universidade, não conseguem empregos. Então, o estado de bem-estar que estava montado, no fundo, em cima da matriz empresarial, organizacional e tecnológica do fordismo, precisa avançar para conseguir aprender essas novas realidades.
Nesse sentido, os sistemas previdenciários não poderão se restringir, a não ser que se reproduza a barbárie, a atender os mais velhos. Terá que ter um programa de renda mínima, que é algo que já está sendo discutido em todos os lugares, entre eles, na Europa, na França, na Finlândia e na Holanda. É preciso ter um programa de renda mínima, mas qual é o problema disso? Se adotarmos uma renda universal cidadã, ela será dada para todo mundo; talvez tenha que se avançar aos poucos. De todo modo, o que isso indica é que o capitalismo produz essas situações, porém ele quer manter, contraditoriamente, a remuneração na dependência da relação salarial; é isso que está em questão.
Muitas pessoas estão dizendo que o aumento da produtividade criará empregos em outros lugares, mas não é assim, pois os serviços e a agricultura estão sendo automatizados, e a indústria já está nessa trajetória há muito tempo. Portanto, teremos um problema de emprego. As pessoas não se dão conta quando falam disso, mas ao longo dos anos 1950, 1960 e 1970, quando houve elevação no número de empregos, o aumento do emprego público foi muito importante, porque as tecnologias que vinham acumuladas da guerra e que foram transferidas para a Europa eram, também, poupadoras de mão de obra. Com isso, montou-se um sistema em que se expandiu o emprego público, que absorveu os excedentes que não estavam sendo incorporados pelo setor privado. Agora a situação é muito mais grave. No meu ponto de vista, temos uma questão crucial aí, porque temos um conflito direto com a ideia de que alguém só pode receber uma renda se estiver em uma relação salarial, se estiver trabalhando; logo, torna-se a renda dependente do trabalho.
E não adianta as pessoas quererem fugir e inventar desculpas, alegando que não funcionará dessa forma, pois vai ser assim, sim: vamos segmentar o mercado de trabalho. Aquelas pessoas com formação média para baixo ficarão em uma situação muito difícil, como já estão ficando — basta ler o capítulo segundo do World Economic Outlook sobre a questão do salário e do emprego nos Estados Unidos, para ver que o FMI está reconhecendo esse problema. Ele está posto e tem graves implicações, porque gera uma massa que acaba recebendo salários muito baixos. O dinamismo da economia também não vai se expandir, então as empresas vão procurar ir além dessa tentativa de reduzir os custos salariais. Isso vai jogando a economia para baixo e não tem demanda possível para os bens que são produzidos com muito maior produtividade. É um problema de demanda efetiva. Isso vai gerar conflitos, choques, incompreensões e resistências. Essas são as virtudes do capitalismo, não são os defeitos.
IHU On-Line — Durante os governos Lula e Dilma falou-se dos ganhos relativos à distribuição de renda no país e ao enfrentamento da pobreza e das desigualdades, especialmente por conta da valorização do salário mínimo, do aumento do mercado formal de trabalho, do acesso de mais pessoas à universidade. Entretanto, estudos que usam como base a análise dos dados do Imposto de Renda sinalizam que não houve uma redução significativa das desigualdades nos últimos 15 anos. Considerando esses dados, que leitura o senhor faz, em retrospectiva, das políticas adotadas no país para enfrentar as desigualdades nesse período?
Luiz Gonzaga Belluzzo — Há, às vezes, uma confusão entre redução da pobreza e redução da desigualdade. É possível ter redução da pobreza, o que significa que muitas pessoas — e foram muitas, aproximadamente 40 mil famílias — foram “resgatadas” de uma situação de pobreza, isto é, tinham condições mínimas de sobrevivência e passaram a ter acesso aos bens, a comer, a ter luz em casa. Então, o ataque que o governo Lula fez foi, fundamentalmente, às condições de pobreza absoluta.
Agora, a desigualdade não diminuiu porque está embutida, na estrutura social brasileira — de propriedade, de riqueza —, uma diferença abissal e isso vem de muitos anos. Todo o crescimento, a expansão, a industrialização e a urbanização brasileira foram feitos com a reprodução dessas desigualdades, por exemplo: trouxemos a pobreza de algumas regiões mais deprimidas para dentro das cidades, e São Paulo e Rio de Janeiro são o exemplo disso, pois as favelas não surgiram por acaso. Qual é a origem dessa disparidade? A origem está na desigualdade da riqueza e da propriedade.
A estrutura tributária brasileira é a mais regressiva do mundo, não tem nada igual: os impostos sobre a propriedade são baixos, sobre a herança são irrisórios, o Imposto de Renda tem uma alíquota marginal muito baixa, de 27,5%, em descompasso com todo o resto do mundo. O sistema tributário é um elemento importante na redução da riqueza. Se olharmos a formação da receita tributária, verificaremos que mais ou menos 55% é formado por impostos indiretos, que é altamente regressivo, e o Imposto de Renda tem um caráter muito pouco redistributivo, e essa deve ser uma das preocupações do sistema tributário. A propósito, isso está sendo rediscutido no mundo inteiro, porque os sistemas tributários estão se tornando regressivos. Se compararmos com os anos 1950, 1960, veremos que a mudança foi impressionante. Nos anos 1970 começou a se aceitar a ideia de que era preciso reduzir os impostos sobre os ricos, porque os ricos são os que investem e melhoram a vida dos pobres; mas parece que isso não ocorreu.
Um exemplo aberrante é a questão dos dividendos. No ano passado o Brasil distribuiu 272 bilhões de dividendos, e quanto foi pago de imposto? Zero. Podem alegar que a empresa já pagou o imposto no lucro, mas é mentira. Então o melhor seria desonerar o lucro e cobrar o dividendo. Uma coisa que um economista que foi meu aluno, Bernardo Arpi, disse corretamente foi o seguinte: nas camadas mais altas não se paga nem mesmo a alíquota marginal por conta da pejotização. Todo mundo quer ser Pessoa Jurídica - PJ para fugir do imposto, portanto temos um sistema que favorece a regressividade.
Aqui a questão da desigualdade será uma batalha difícil. Basta ver a história do pato da Fiesp na avenida Paulista, como se fossem eles que pagassem os impostos. Mas essa ideia de igualdade, cá entre nós, não tem muitos adeptos. Aliás, a sociedade brasileira é violenta, desigual e truculenta; isso tem uma origem e não nos livraremos tão cedo disso. O Sérgio Buarque falou do “homem cordial”: o sujeito do “homem cordial” é aquele da dependência pessoal, da troca de favores, o que não é muito produtivo para a melhoria da desigualdade.
IHU On-Line – Nos últimos anos, voltou-se a discutir a necessidade de o Brasil ter um projeto de país. O que seria uma política econômica adequada para o Brasil para impulsionar esse projeto, considerando os nossos problemas característicos, como a desindustrialização e a falta de investimento em inovação?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Essa é uma carência que está assomando a consciência das pessoas, e é verdadeira, mas não podemos reproduzir, diante das transformações da economia global, o projeto brasileiro a partir das estratégias que foram adotadas nos anos 50, 60, 70 e 80, ainda que seja preciso ter inovação com continuidade. Então, o que precisamos recuperar é um mínimo de capacidade de controle sobre a economia brasileira, e estamos perdendo essa capacidade. A abertura comercial e financeira insiste em entregar essa capacidade de controle para a globalização, que não tem nenhum compromisso com o que está acontecendo aqui. Então, esta é a questão: como se monta um projeto de desenvolvimento nacional dentro dessa estrutura criada pela globalização?
A China teve uma política nacional que foi compatível com a tendência da globalização, mas o Brasil abandonou isso completamente em nome de uma internacionalização e abertura abstratas, porque se achou que seria melhor abrir a economia para melhorar a capacidade de competição das empresas e vive se repetindo isso, enquanto estamos assistindo que esse processo produz processos adversos, como a destruição da indústria brasileira.
Num projeto para o país, temos que incorporar esse novo espaço criado pela globalização e aumentar o controle sobre os instrumentos-chave, que são o fluxo de capitais, o comércio exterior, o balanço de pagamentos e o financiamento do investimento. Então, tínhamos que reforçar ao invés de debilitar o BNDES e os bancos públicos, ter controle sobre o câmbio, não ficar à mercê do movimento de capitais, mas para isso tem que diminuir muito a importância do mercado financeiro, porque é ele que está mandando no Brasil. Esses agentes do mercado financeiro são autorreferenciais e não têm relação com o que acontece na vida do cidadão. Um deles disse para mim: “Que bom que o desemprego vai aumentar, porque a inflação vai cair”.
IHU On-Line - Considerando que estamos em véspera de ano eleitoral, já se especula em torno das candidaturas de Ciro Gomes, Lula, Doria, Bolsonaro e Alckmin. Do ponto de vista econômico, é possível especular quais seriam os programas propostos por esses candidatos? Em que aspectos eles seriam substancialmente diferentes?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Eu diria que o Ciro tem uma visão clara das condições em que se pode formar um projeto nacional. Acho que o Lula seria capaz disso também e ele aprendeu bastante com a experiência que teve. O Bolsonaro deu declarações bastante nacionalistas à direita e recentemente foi para os EUA se vender como um liberal; é completamente despreparado e é orientado pelo Olavo de Carvalho. O Doria é uma espécie de Macron ou Collor, sem nenhuma novidade, e não tem noção de nada; ele tem se desgastado na prefeitura de São Paulo e também dentro do PSDB. A ameaça maior é o Bolsonaro, mas ele não tem noção de nada. Temos dois candidatos que poderiam até se juntar para reunir forças, que é o Lula e o Ciro, que considero com mais condições de tentar realizar esse projeto nacional.
IHU On-Line – Mas o senhor apostaria no retorno do ex-presidente Lula mesmo depois da Lava Jato?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Estou considerando em abstrato, mas, de fato, acho que não vai ser fácil ele escapar da condenação, se bem que está se discutindo a condenação em segunda instância e isso está na mão do STF. Acho que seria um erro fatal pensar que se pode fazer eleição, depois das pesquisas de opinião, sem o Lula. É um erro que podem cometer, mas isso vai gerar uma turbulência.
IHU On-Line – Como o senhor acompanhou e está lendo o desdobramento da Lava Jato e o envolvimento do PT e de vários outros partidos, como o PSDB e o PMDB, com as empreiteiras e o pagamento de propina?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Existem vários aspectos disso. Primeiro, as relações das empresas com o Estado no Brasil são muito intensas e não muito canônicas, e isso vem de muito longe; não é de hoje que a Petrobras é tratada do jeito que é. Não vamos esquecer de vários episódios que ficaram soterrados, como o de ministros de Minas e Energia que ficaram ricos e presidentes da Petrobras que também enriqueceram. Então, isso é antigo, como de resto no mundo capitalista também. Nos EUA esse tipo de relação é normal e não é crime, porque o lobby existe, o lobby compra medidas no Congresso e patrocina eleições. Mas no Brasil houve um certo desvio, que é típico de uma economia em que o Estado é imprescindível. As pessoas falam em privatizar para evitar esse tipo de corrupção, mas eu morro de rir com esse tipo de proposta. É claro que se for cometido crime, tem que punir.
A outra consequência é que tudo na vida tem várias dimensões. Nesse caso da Lava Jato, o que aconteceu é que o processo e as punições confundiram as pessoas físicas com as empresas, e as empresas são importantes. O JP Morgan nos EUA fez barbaridades no mercado imobiliário, mas os americanos deram uma multa e preservaram as empresas, porque eles são muito pragmáticos. Aqui não, misturaram tudo, as pessoas falam barbaridades e isso deu origem a um protagonismo das burocracias públicas, como do Judiciário e da Polícia Federal, que não é aceitável.
Ontem [9-10-2017], na palestra, eu estava procurando um trecho do discurso de aposentadoria do meu pai para lê-lo, mas não o encontrei. Vou lê-lo agora para você: “Preferi a tranquilidade do silêncio ao ruído das propagandas falazes. Não suportei afetações. As cortesias rasteiras, sinuosas e insinuantes jamais encontraram agasalho em mim. Em lugar algum pretendi subjugar, mas ninguém me viu acorrentado a submissões. Dentro de uma humildade que ganhei de berço, abominei a egomania e a hidrolatria. Não me convenceram as aparências e para as minhas convicções busquei sempre os escaninhos. Nos exercícios da minha função de magistrado, diuturnamente dei o máximo dos meus esforços para bem desempenhá-los e, ainda que em meio a uma atmosfera serena e compreensiva, em nenhum momento transigi com a nobreza do cargo. Escapei de juízes temerários, tomando cautela para desembaraçar-me das influências e preferências determinantes de uma decisão. E, se alguma vez, inadvertidamente, pequei contra a lei, vai-me a certeza de que o fiz para distribuir bondade e benevolência”. Bonito, não? Eu enviei esse discurso para o Moro.
IHU On-Line – Mas o senhor acha que deveríamos aceitar o lobby como algo que faz parte da disputa e do jogo político? No caso específico do PT, o partido sempre adotou o discurso da ética na política, mas agora se vê diante dessa situação desvelada pela Lava Jato. Como lidar com isso?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Não temos que encarar que é assim mesmo que funciona, porque teríamos que aceitar um padrão de comportamento. Mas o mais importante nessa história toda é que o mais prejudicado não tem nada a ver com isso. Se produziu, por exemplo, um desemprego monumental no setor da construção civil pesada. Nós não temos que nos conformar com isso, mas é difícil controlar essa situação, porque ela está no DNA da concorrência capitalista que, nesse caso, se faz através da mediação do Estado. É claro que tem de ter uma legislação que tente coibir isso, mas é um equívoco imaginar que é possível eliminar essas práticas de uma vez por todas através do endurecimento das leis. Temos que julgar e punir dentro da normalidade e não podemos transformar a corrupção no maior problema do país. A pobreza e a desigualdade são os nossos maiores problemas.
Alguém poderia dizer que estou justificando a corrupção para reduzir as desigualdades, mas não se trata disso. Estou reduzindo a importância da corrupção para tratar de outros problemas que importam e que não se discutem mais no país, porque se liga a TV e só se escuta sobre a Lava Jato, e isso faz com que se escape dos problemas de verdade. E mais, se introduz uma deformação no judiciário, porque eles fazem tudo ao contrário do que falam. Isso é uma coisa humana, não estou atribuindo isso à maldade dos indivíduos, porque eles estão sendo carregados por esse espírito da celebridade, que faz parte da nossa sociedade atual e está embutido nos valores da sociedade moderna, que é exaltação do sucesso do indivíduo. Isso é muito ruim e não poupa ninguém. No caso do reitor Cancellier, a delegada se prestou a isso, e não é culpa dela, mas ela não resistiu à pressão e se sente uma pessoa diferente, singular, com seus méritos. Isso faz parte da formação da consciência das pessoas, mas é grave na burocracia pública, porque a pessoa é um servidor público.
As burocracias públicas têm que cumprir seu papel de vigiar e punir se tiverem provas, têm que seguir o processo legal, os ritos do processo penal, não é possível encurtar tempos. As pessoas dizem que a Justiça é lenta, mas ela tem que ser lenta, porque se ela não tiver que ser lenta, é melhor fazermos como faziam no regime do rei: ele determina como e quando o sujeito será exposto e dilacerado por quatro cavalos. Isso que estou dizendo escorrega um pouco, porque as pessoas têm convicções e têm certezas esféricas e idiotas, mas isso também não é culpa delas; elas reagem assim porque o ambiente onde elas vivem permite que elas construam essas falácias, que infelizmente levarão essas pessoas e os seus filhos à desgraça.
IHU On-Line – Mas, de outro lado, há um clamor popular diante dos casos de corrupção justamente por conta do próprio funcionamento da esfera pública no país.
Luiz Gonzaga Belluzzo – Mas o clamor popular é como a justiça do nazismo, que se fundava no saudável espírito do povo alemão, que mandou gente para a câmara de gás. Mas assim caminha a humanidade.
Assista à conferência Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo na íntegra:
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"O ajuste, da maneira que foi feito no Brasil, é totalmente equivocado, pois produziu um desajuste". Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU