Por: Patricia Fachin | 19 Outubro 2016
“Nós vivemos um momento em que o temor supera a capacidade de formulação, nós estamos adstritos a fórmulas ultrapassadas. Isso tem a ver muito com esse caráter performático da visão econômica, mecânica, desprovida de qualquer capacidade de avaliar o que está acontecendo concretamente”, diz Luiz Gonzaga Belluzzo à IHU On-Line. Na avaliação do economista, um exemplo prático que resulta dessa compreensão, é a proposta do governo federal de instituir um novo regime fiscal com duração de 20 anos, conforme sugere a PEC 241.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Belluzzo explica as razões que levaram ao “salto da dívida pública” e frisa que, para colocar a economia nos eixos e retomar o crescimento, é preciso seguir um princípio “contraintuitivo” e ampliar os gastos estatais ao invés de contraí-los. “Na economia capitalista, o que forma a renda é o gasto; não é a renda que determina o gasto. E se pudéssemos viver uma situação em que as empresas, diante do ajuste fiscal que foi feito, começassem a gastar porque elas ganharam confiança – como o governo diz – seria bom, mas isso não é verdade. Como as empresas vão começar a gastar depois de um ciclo de endividamento como esse? Ou como as empresas vão gastar dado o estoque de dívidas que elas têm e com o choque de juros que elas levaram? Então, é o Estado que tem mais liberdade de fazer o gasto”, defende.
Segundo ele, também é necessário instituir um “regime fiscal que dê conta das flutuações da economia, porque não se pode tomar decisões radicais”. Em 2014, exemplifica, “a economia estava caminhando para um déficit um pouco maior e, quando se deu o choque, o déficit aumentou, porque o efeito da contração abrupta do gasto para uma economia em desaceleração provoca um efeito negativo no resto da economia”. E crítica: “Agora há esse déficit monumental, e se usa o déficit que se provocou, por uma política estúpida, para dizer que não há instrumentos para fazer a economia crescer”.
Belluzzo também comenta a possibilidade de se instituir uma renda mínima universal mundial, dada a tendência de transformação dos mercados de trabalho determinados pelo avanço da tecnologia da informação. “Com essa superindustrialização, inevitavelmente, haverá sobra de gente, ou seja, mesmo que a dinâmica populacional seja de queda da taxa de crescimento da população, haverá pessoas sobrando por aí. (...) Como solução a essa mudança, alguns propõem que o tempo de trabalho seja reduzido para três horas por dia e que se compensem as pessoas com uma renda mínima. Então, a questão previdenciária, nesse sentido, não ficará restrita aos velhos que se aposentam, ao contrário, teremos pessoas que estarão semiaposentadas com 25 anos, e elas provavelmente terão que receber uma renda mínima para sobrevier. E essa situação gera outro problema: o que se faz com essas pessoas, como elas continuam a operar no meio social?”, questiona.
Belluzzo | Foto: Blog Pensaeai
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano de Planificação-Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e, atualmente, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O texto da PEC 241 inicia afirmando que há uma “necessidade de mudança de rumos nas contas públicas”, porque a dívida bruta do governo aumentou de 51,7% do PIB em 2013 para 67,5% do PIB em abril de 2016, e afirma ainda que a despesa pública primária cresceu 51% acima da inflação entre 2008 e 2015, e a receita aumentou 14,5%. Como o senhor interpreta esses dados? A partir deles, um novo regime fiscal é ou não necessário e por quê?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Vamos começar por partes [risos]. Em primeiro lugar, houve um salto da dívida pública e eu tenho escrito vários textos, junto com o Gabriel Galípolo, mostrando que o fator mais importante do aumento dessa trajetória da dívida – o que os economistas chamam de dinâmica da dívida - se deve ao fato de que temos taxas de juros reais absurdamente altas. Muitos economistas alegam que as taxas são altas porque o regime fiscal é incapaz de infundir ao mercado a ideia de que o país é solvente. O fato é que a taxa de juros no Brasil, tanto a nominal quanto a real, é a mais alta do mundo desde os anos 1990, ou seja, desde que o Brasil assumiu o regime de política econômica que culmina em taxas de juros muito altas, em geral, porque foi feita uma abertura financeira insensata. Mas essa abertura financeira parece servir aos interesses dos investidores estrangeiros e aos interesses dos agentes do mercado financeiro, que fazem arbitragem com o câmbio. Um dos prejuízos acarretados por conta disso, nesse período todo, foi a valorização do câmbio somada a uma taxa de juros muito alta, o que causou um dano infernal à indústria de transformação.
Não preciso nem explicar que a queda da participação da indústria – a chamada desindustrialização precoce – foi uma das marcas dos últimos 20 anos. Essa é uma das anomalias desse sistema. Outra anomalia gerada pela taxa de juros é a indexação dos títulos públicos brasileiros, porque existe um volume de operações compromissadas no valor de quase R$ 1 trilhão, que são operações de aluguel de títulos de curtíssimo prazo, com uma remuneração altíssima. Isso tem a ver com formas de gestão monetária, que são realmente inadequadas e que colocam o Tesouro em má situação diante dessa operação monetária. A esterilização monetária, inclusive, decorre de efeitos de esterilização da acumulação de reservas, que é algo inevitável na situação do sistema financeiro internacional, isto é, não se pode deixar de ter reservas, porque se ficaria muito mais vulnerável. Então, infelizmente, tem que se carregar esse “inconveniente” porque o sistema monetário é muito assimétrico. Enfim, tudo isso não entra na cogitação dos nossos analistas ou dos proponentes desse ajuste fiscal.
Bom, vamos retomar a questão do gasto primário e da evolução do sistema fiscal. Até 2010/2011, a economia vinha tendo um desempenho muito bom por conta não só do ciclo de commodities, mas do ciclo de expansão da demanda, sobretudo, comandada pelo consumo americano e europeu. Isso permitiu um desempenho muito bom da economia brasileira, com superávit na balança comercial, com a abertura de um espaço para as políticas que trouxeram as camadas menos favorecidas para uma situação melhor de consumo. Houve também o reajuste do salário mínimo e políticas de estímulo ao investimento, sendo que a taxa de investimento subiu a 21%. Esse ciclo terminou em 2013, mas já em 2011 e 2012 começou a apresentar sinais de fadiga. O fim desse ciclo tem a ver, também, com o declínio da receita fiscal, porque a economia começou a perder dinamismo – ela caiu de 7,6% para 3,5%, depois para 2% e foi desacelerando. Essa forte desaceleração teve um impacto sobre a receita.
Seja como for, em 2014 a situação era a seguinte: a economia cresceu 0,1%, ou seja, nada, e tivemos, pela primeira vez, um déficit primário de 0,6% - é importante darmos as cifras porque as pessoas estão dizendo absurdos sobre isso. Realmente o governo, durante esse período, cometeu o erro de fazer as tais desonerações fiscais, o que agravou a situação fiscal. O governo não só fez uma compensação do câmbio valorizado para os setores exportadores, mas generalizou isso diante da pressão do Paulo Skaf [presidente da Fiesp], do pato da Fiesp. De todo modo, em 2014 a situação fiscal era a de uma economia em desaceleração, com queda de receita, e quando a economia desacelera se tem, de fato, uma tendência de que os estabilizadores automáticos comecem a funcionar, ou seja, seguro desemprego e outras medidas de proteção social começam a operar. Logo, isso gera um déficit naturalmente, pelo próprio movimento da economia.
De 2014 para 2015, no final do processo eleitoral, houve uma pressão muito grande e um verdadeiro “foguetório” negativo em relação à situação fiscal, que estava numa situação de desequilíbrio, porém não era a catástrofe que alguns economistas, e muitos dos políticos que perderam a eleições, fizeram fazer crer. Mas o governo da presidente Dilma cometeu um erro fatal ao aceitar o diagnóstico e as propostas dos adversários, e com isso ela partiu para o tal de ajuste fiscal, que foi uma tragédia. Na verdade, foi um verdadeiro desajuste – de 0,6% do PIB, o déficit caminhou para 2,5% e 3%. Por conta do quê? Por uma combinação funesta de um choque de tarifas a fim de tentar compensar aquilo que devia ter sido feito ao longo do tempo, durante o seu primeiro mandato, ou seja, deveria ter corrigido os preços, sobretudo o preço da gasolina.
Além disso, houve um problema com a tarifa de energia elétrica, que sempre foi uma das mais altas do mundo. Depois da privatização - é preciso que se diga -, com os critérios de indexação das tarifas ao Índice Geral de Preços do Mercado - IGPM, houve uma pressão dos empresários no sentido de controlar essas tarifas, mas aí o governo foi pego de surpresa com a seca e com os problemas das termoelétricas, e cometeu um erro ao dar um choque de tarifa, que atingiu as empresas por baixo. E, para conter essa inflação produzida pelos preços administrados, o governo subiu a taxa de juros, entre 2013 e 2014, para 14,25%.
Para dar um choque de confiança, foi produzida uma tragédia no comportamento das empresas que, prejudicadas pela queda das receitas, do faturamento, algumas não conseguem sequer pagar os juros da dívida que contraíram. Houve ainda a desvalorização do câmbio, e quando isso ocorre depois de um longo período de valorização, afeta negativamente os custos das empresas que dependem muito das importações. Ao mesmo tempo se desmobilizou e se desestruturou a indústria doméstica, se desestruturou cadeias inteiras e tornou a indústria mais dependente das importações. Sempre que se dá um choque, depois se causa um dano enorme.
Por conta dos juros mais altos e da situação econômica até então favorável no país, as empresas começaram a se endividar em moeda estrangeira e muitas delas sofreram esses choques, que geraram um problema nos custos, juntamente com o choque de tarifas. Com o aumento do custo e do serviço da dívida em moeda estrangeira, o Brasil tem, mais ou menos, de dívida de moeda estrangeira acumulada pelas empresas não financeiras, algo em torno de 95% do PIB. Então, é nesse cenário que a política econômica agravou a situação ao provocar uma recessão de aproximadamente 8% do PIB em dois anos.
Portanto, é só como piada que eu posso aceitar a ideia de que o desemprego só vai parar de aumentar quando a confiança dos empresários aumentar. Como a confiança dos empresários vai aumentar se está se promovendo a desconfiança? Veja o que está acontecendo no crédito: os bancos agem individualmente, se protegendo, e o resultado para o conjunto é uma contração do crédito que volta em cima deles como inadimplência; e a inadimplência está em 20%. Esse é o quadro que o governo quer tratar com a ridícula PEC do gasto por 20 anos. O problema maior disso tudo é a persistência da burrice.
IHU On-Line - Diante desse quadro que o senhor descreve, se o novo regime fiscal não é adequado, qual seria? O senhor aponta que baixar a taxa de juros é necessário. Nesse momento, baixar a taxa de juros já seria suficiente?
Luiz Gonzaga Belluzzo – A capacidade de resposta numa situação como essa em que estamos é bastante limitada. De todo modo, é importante baixar a taxa de juros para não continuar deteriorando o balanço das empresas, mas é preciso que se tenha outro instrumento para fazer a economia se recuperar.
Voltando àquilo que eu disse, essa ideia de resolver tudo rapidamente através de choques faz parte de um modelo que entende que a economia está sempre em equilíbrio, e de que a economia cresce sem que se tenha inflação. Eu vi muitas análises que afirmam que o produto em potencial caiu e que qualquer ação de expansão da economia por intervenção do Estado vai gerar mais inflação, porque aumentará a demanda nominal, e como se está operando acima daquilo que está determinado pelo equilíbrio do produto potencial, se produzirá inflação e mais desequilíbrio. Hoje em dia esses modelos ainda são usados pelos Bancos Centrais, mas estão sujeitos a muitas críticas, porque isso é uma construção muito mal concebida e não decorre de uma observação, porque é difícil fazer um teste empírico dessa situação. Mas é esse modelo que está por trás das medidas adotadas.
O que eu quero dizer é que tem que ter um regime fiscal que dê conta das flutuações da economia, porque não se pode tomar decisões radicais. Em 2014 a economia estava caminhando para um déficit um pouco maior e, quando se deu o choque, o déficit aumentou, porque o efeito da contração abrupta do gasto para uma economia em desaceleração provoca um efeito negativo no resto da economia.
O que o governo Temer fez? Jogou o déficit primário para 170 bilhões e com isso esticou o prazo do ajustamento, mas veja a situação dos estados, por exemplo, está insustentável. Não é viável manter os estados sufocados dessa maneira. O pessoal argumenta que os estados gastaram demais no passado, mas eles não estão conseguindo pagar o salário dos funcionários.
IHU On-Line – Mas o que seria esse regime fiscal que daria conta das flutuações? Se o senhor tivesse poder de propor algo, o que faria?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O que eu faria? [risos] Faria uma discussão do orçamento de modo que eu pudesse controlar a expansão de certas despesas. Mas, num momento como esse, tem que concentrar os esforços para “puxar a economia pelos cabelos”. Através de que gasto seria possível fazer isso? Através do investimento autônomo. Se não gastar, a receita não vai aumentar. Se não colocar a economia para funcionar, a receita não aumenta. Veja o que aconteceu: se o PIB caiu 8%, a receita caiu 12%.
IHU On-Line – Quem tem que financiar esse desenvolvimento é o Estado?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Sim.
IHU On-Line – Mas aí voltamos àquela discussão de que ao gastar, aumenta o gasto e aumenta o déficit, ou não?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Sim, mas aí tem que ser cuidadoso, tem que controlar o gasto corrente – o Brasil nunca fez isso –, e montar um fundo com a ajuda dos bancos públicos, e deslanchar um programa de infraestrutura e, ao mesmo tempo, reduzir a taxa de juros. Alguns dizem que ainda não é possível baixar os juros porque é preciso colocar a inflação na meta, mas esse é um dos maiores desastres que foram produzidos no Brasil: estávamos com inflação de 6,4% em 2014, quase no teto da meta - mas isso é normal -, mas foi feita aquela barulheira, e o governo subiu a taxa de juros, deu um choque de tarifas e a inflação foi a 10% em 2015. Não tem outro jeito de mudar a situação a não ser fazendo algo progressivo e com muito cuidado.
Agora há esse déficit monumental, e se usa o déficit que se provocou, por uma política estúpida, para dizer que não há instrumentos para fazer a economia crescer. Diante dessa situação, o Michel Temer diz que, quando as empresas recuperarem a confiança, o desemprego será solucionado. O desemprego para o governo é apenas um acidente. Mas o que acontece com as famílias desempregadas? Recentemente um rapaz que perdeu o emprego foi à Justiça do Trabalho e, como não houve audiência, se jogou de um prédio com o filho. Mas isso é visto como normal, como um dano colateral que temos que admitir, porque temos que deixar que a economia se ajuste. Precisamos falar direito sobre esses absurdos que decorrem do caráter performático da economia, e as pessoas acreditam que as finanças públicas funcionam da mesma maneira que as finanças domésticas, o que é um absurdo.
IHU On-Line – Então sua proposta consiste em diminuir a taxa de juros e aumentar o investimento através do Estado, de tal modo que o gasto seja controlado e direcionado para alguns setores para não gerar um déficit maior?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O estudo do Fundo Monetário Internacional - FMI diz o seguinte: o ajuste fiscal tem que ser feito organicamente com crescimento da economia, porque ao colocar a economia para funcionar e ao gerar demanda adicional, as empresas irão reagir e aos poucos vão descomprimir a situação dos seus balanços; trata-se, na verdade, de uma política anticíclica. Não se pode agravar ainda mais uma recessão que está no fundo do poço.
Na economia capitalista, o que forma a renda é o gasto; não é a renda que determina o gasto – isso é contraintuitivo. E se pudéssemos viver uma situação em que as empresas, diante do ajuste fiscal que foi feito, começassem a gastar porque elas ganharam confiança – como o governo diz – seria bom, mas isso não é verdade. Como as empresas vão começar a gastar depois de um ciclo de endividamento como esse? Ou como as empresas vão gastar dado o estoque de dívidas que elas têm e com o choque de juros que elas levaram? Então, é o Estado que tem mais liberdade de fazer o gasto. Não é preciso necessariamente que o Estado, nesse momento, aumente o gasto em investimentos, mas ele pode coordenar os setores que têm chance de gastar, dar garantias para que esses setores possam investir. Por que todo mundo fala do setor de infraestrutura? Porque aí tem um espaço de investimento que é importante para a economia e que melhora a produtividade e ao mesmo tempo gera renda e emprego. É o Estado que tem a liberdade de fazer isso, porque o setor privado está sufocado por uma sucessão de besteiras que foram feitas lá atrás.
Portanto, só será possível cobrir o déficit se reduzir os juros. O déficit primário são todas as despesas exceto os juros. O déficit nominal é formado pelo déficit primário mais o déficit dos juros, que está em torno de 10% do PIB, mas 85% desse déficit é formado por gastos com juros.
Um economista polonês chamado Michal Kalecki diz que os capitalistas ganham o que gastam e os trabalhadores gastam o que ganham. Isso se aplica ao Estado também. Então os detentores dos meios de produção, que têm acesso ao crédito, são os que têm a liberdade para gastar. Se os capitalistas ganham o que gastam, essa formulação diz o seguinte: os capitalistas podem acumular lucro e o Estado só pode aumentar a sua receita se alguém estiver gastando e formando renda, porque a renda não é dada. Na cabeça de alguns economistas, existe uma renda dada, e quando se gasta demais, gera-se um déficit. No entanto, não é assim que funciona. A formação da renda depende do gasto do conjunto dos protagonistas do sistema econômico, inclusive dos consumidores. Mas quando se gera uma recessão, o consumidor não aumenta seus gastos, porque está desempregado. Ao contrário, com uma massa de desempregados, as famílias reduzem os gastos. É isso que estamos observando agora na economia. E as empresas estão encalacradas em seus endividamentos e não vão gastar. Então, quem vai gastar? O setor externo, se ele estivesse tendo um dinamismo, mas isso também não está acontecendo. Estamos tendo superávit na balança comercial, mas é porque as importações caíram mais do que as exportações. Diante disso, como se recupera a economia? Como se cobre o déficit? Só se fecha o déficit se a receita aumentar. Do contrário, não tem mágica.
Aliás, a economia brasileira aumentou o superávit primário até 2013. Muita gente diz que o Brasil quebrou e que vai dar um calote, mas como isso é possível se a dívida brasileira é toda em moeda nacional? Um país quebra quando a dívida é em moeda estrangeira, como ocorreu em 1980 ou no período de FHC, em que se tinha um estoque de dívida interna denominada em moeda estrangeira. Fizeram um festival de besteira dizendo que o país vai quebrar, mas como, se ele pode, como muitos países fazem, financiar isso com expansão monetária? Alguns dizem que isso pode gerar hiperinflação, mas você está vendo algum sinal de hiperinflação? Estamos caminhando para uma queda da inflação.
IHU On-Line - Em um artigo recente o senhor mencionou o economista Gunnar Myrdal como um pioneiro na preocupação em estabelecer uma política fiscal capaz de suavizar as flutuações econômicas. Pode nos explicar em que consistia a proposta dele e, nesse sentido, como essa proposta poderia sugerir um arranjo fiscal adequado para o Brasil não precisar fazer um ajuste fiscal como o atual, num momento de recessão ou de queda da arrecadação?
Luiz Gonzaga Belluzzo - Myrdal é um economista sueco e um dos pais do Estado de bem-estar social sueco. Nos anos 20, 30, ele tinha uma proposta de que o Estado deveria funcionar como o estabilizador do ciclo econômico e que, portanto, deveria ser mais austero nos tempos de prosperidade – o que está certíssimo – e mais ativo no momento em que a economia flutuasse ou que caminhasse para uma recessão, a fim de estabilizar o ciclo. Isso já era pensado por outros economistas suecos, como Johan Gustaf Knut Wicksell – que era um conservador -, que tinham uma visão mais complexa de como a economia flutuava.
Myrdal teve influência importante sobre Keynes, que, em sua teoria geral, disse que a economia tinha uma tendência à estabilidade, mas não uma trajetória de equilíbrio estável ao longo do tempo. Ao contrário, a economia se desenvolve e cresce a partir das expectativas dos empresários que avaliam, sempre numa condição de incerteza absoluta, se devem ou não aumentar seus gastos, contratar ou não mais pessoas, porque eles não têm controle sobre o futuro. Isso dá ao investimento uma instabilidade muito grande, porque a economia oscila entre o otimismo e o pessimismo.
Keynes era contra fazer intervenções pontuais de curto prazo na economia. Ele dizia que era preciso organizar a economia da seguinte maneira: tem que ter uma socialização do investimento, isto é, o Estado tem que ter um orçamento de capital, o que faz com que os empresários tenham mais conforto para tomar decisões ao saberem que, se houver algum problema de flutuação da economia, o Estado vai interferir. Em segundo lugar, é preciso controlar a taxa de juros, o que Keynes chamava de a eutanásia do rentista. A terceira coisa a fazer é um sistema fiscal progressivo em que se pudesse, nos momentos de oscilação, favorecer o consumo dos menos favorecidos. E, em quarto lugar, o programa de ajustamento internacional.
Essas medidas nunca foram rigorosamente aplicadas e, no caso do Brasil, sequer são discutidas. Mas, com essas medidas, Keynes dizia aos seus contemporâneos que a sua ideia era prevenir, e não curar a economia, porque a cura pode ser mais danosa do que a prevenção. Então, ele estava preocupado em fazer um sistema que envolvesse uma combinação entre o Estado e o mercado, de modo que pudesse estabilizar a economia. Infelizmente, o Brasil tem alguns problemas, entre eles, o da inserção externa e o da perda de protagonismo da indústria brasileira. A minha preocupação é com o fato de que temos um declínio secular na economia brasileira. O Brasil já foi o país mais importante do ponto de vista do investimento estrangeiro produtivo manufatureiro, entre o final dos anos 1940 e os anos 1980, e hoje perdeu essa posição para a China. Estamos andando para trás, infelizmente.
IHU On-Line - Os críticos à PEC 241 argumentam que ela irá desmontar o Estado social brasileiro ao reajustar os investimentos com educação e saúde de acordo com a inflação nas próximas duas décadas. O senhor também tem críticas à PEC nesse sentido?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O Brasil é um país que tem gastos per capita em educação e saúde muito baixos, inclusive, mais baixos do que muitos países menos desenvolvidos da América Latina. A Constituição de 1988 teve como foco principal a manutenção do avanço, em termos reais, dos gastos em saúde e educação, que são questões fundamentais em uma sociedade civilizada. O Brasil chegou muito tarde a esse debate acerca do Estado de bem-estar social, e foi a Constituição de 1988 que trouxe esse debate à tona. O Brasil não tinha essa preocupação, era atrasado, enquanto os países europeus e mesmo os Estados Unidos construíram seus sistemas de proteção social logo depois do pós-guerra, ou seja, após as lições terríveis que tiveram nos anos 1920 e no entreguerras.
Apesar de o Brasil ter estabelecido que os orçamentos de saúde e educação eram prioridade, muitos contra-argumentavam que o orçamento se tornou rígido. O orçamento, portanto, é a peça democrática por excelência, a peça que concentra as demandas da sociedade. Então é importante que se preservem certos gastos, e isso não pode ser feito mecanicamente, segundo a determinação de uma PEC que estará em vigência por 20 anos. Essa proposta não tem o menor cabimento, é algo inacreditável, porque, em primeiro lugar, se perde qualquer capacidade de manobra na utilização do orçamento, ou seja, se fica com as mãos amarradas; segundo, é preciso discutir quais são as questões prioritárias, mas isso precisa envolver um debate. A Constituição condensou esse debate público e deu preeminência aos gastos de educação e saúde. Agora o governo está tentando dar explicações que são insuficientes sobre essa questão.
IHU On-Line – Alguns economistas do governo argumentam que os orçamentos de educação e saúde estarão protegidos, mas essa proteção depende de os parlamentares aprovarem orçamentos maiores. Isso lhe parece adequado ou confuso?
Luiz Gonzaga Belluzzo – É bastante confuso porque eles mesmos não têm certeza do que estão fazendo. A questão é exatamente esta: quem teria que determinar a composição de gastos do orçamento é o parlamento, representando a opinião majoritária da população; é assim que se faz. Agora, não se pode querer engessar isso e tirar essa capacidade de discussão. Acho que a discussão não está completamente suprimida, mas do jeito que está estabelecida, trará problemas para discutir a composição do gasto. Isso não pode ser feito assim, de cima para baixo, de maneira tecnocrática. O orçamento tem que ser discutido pelas várias posições interessadas, porque a sociedade é uma sociedade de interesses. As pessoas pensam que se pode ter, em uma peça orçamentária, a expressão da vontade geral, mas a vontade geral é formulada por quem? Pelos tecnocratas? É isso que está parecendo, porque eles pensam que existe uma racionalidade que está acima do debate político entre as várias camadas sociais, mas isso é uma ilusão tecnocrática de economista. O que a sociedade, através dos seus representantes e de um debate público, considera mais importante? Esse é o princípio orçamentário de um país democrático.
IHU On-Line - Hoje alguns têm retomado a discussão sobre uma renda mínima suficiente para todos os cidadãos. Essa proposta lhe parece plausível nos dias de hoje? Por quais razões?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Esse é um debate que está ocorrendo no mundo. A revista The Economist – uma revista conservadora – publicou, cinco edições atrás, uma matéria discutindo essa questão diante das tendências de transformação dos mercados de trabalho determinados pelo avanço da tecnologia da informação; ou seja, daquilo que chamei da superindustrialização – alguns dizem que se trata da pós-industrialização, mas é mentira, trata-se de uma superindustrialização, porque estão industrializando os serviços e a agricultura. Com essa superindustrialização, inevitavelmente, haverá sobra de gente, ou seja, mesmo que a dinâmica populacional seja de queda da taxa de crescimento da população, haverá pessoas sobrando por aí.
Nesse cenário, a renda mínima está sendo discutida no mundo inteiro: já tem essa discussão na França, na Holanda e nos Estados Unidos, por conta da capacidade produtiva que está se apresentando com o avanço tecnológico. Esse novo cenário não aparece nas estatísticas, porque o avanço da produtividade está sendo feito com o deslocamento de pessoas para o setor de serviços e para regiões do setor de serviços que são muito pouco produtivas. Então, quando se faz o cálculo da produtividade total, se percebe que ela está caindo, mas ela não está caindo, está subindo, só que está subindo e deslocando gente para os setores de menor produtividade; está subindo nos setores que são mais intensivos na introdução em tecnologia. E quais são esses setores? Todos. A agricultura não emprega mais ninguém, o setor de serviços está deslocando gente não só nos trabalhos rotineiros, mas também médicos, advogados e contadores estão vivenciando esse processo. Os softwares começarão a dispensar esses trabalhadores, e os próprios engenheiros e médicos estão virando trabalhadores em tempo parcial e, portanto, precários com esse avanço tecnológico. Isso acontecerá, inevitavelmente, no mundo inteiro.
Os chineses estão fazendo essa discussão de outra maneira, porque estão inflando o setor de serviços, mas estão fazendo isso de uma maneira muito engraçada - por exemplo, num ônibus chinês tem um motorista, um cobrador e uma terceira pessoa, que fica olhando se os passageiros estão bem -, mas ao mesmo tempo eles estão investindo pesado nas tecnologias de automação e inteligência artificial.
Aliás, essa situação foi discutida pelos economistas e pensadores que olharam essa tendência na sociedade com mais cuidado. Se analisarmos Grundrisse, por exemplo, perceberemos que Marx falou o tempo inteiro do impacto do sistema de maquinaria na formação do valor e na estrutura do emprego – ele tem páginas proféticas que estão se observando agora.
Como solução a essa mudança, alguns propõem que o tempo de trabalho seja reduzido para três horas por dia e que se compensem as pessoas com uma renda mínima. Então, a questão previdenciária, nesse sentido, não ficará restrita aos velhos que se aposentam, ao contrário, teremos pessoas que estarão semiaposentadas com 25 anos, e elas provavelmente terão que receber uma renda mínima para sobrevier. E essa situação gera outro problema: o que se faz com essas pessoas, como elas continuam a operar no meio social? Será preciso dar uma atividade para elas. Isso poderá ser muito bom, porque poderão ser desenvolvidas atividades culturais, e aí precisaria haver outra forma de se integrar no mundo que não mais pelo trabalho, então há uma oportunidade aí.
Nesse aspecto sou otimista, mesmo que eu entenda que nessa mudança irão ocorrer muitos choques, muita fricção para as pessoas entenderem o que está acontecendo. E mais, tem que mudar o sistema tributário, penalizar os mais ricos para que eles gerem os recursos suficientes. Foi o capitalismo que colocou esses problemas, mas eu não sei se ele é capaz de resolver isso por seus próprios termos. Mas essa questão está posta, está tão posta que até a The Economist está discutindo, porque ao contrário do Brasil, os conservadores ingleses são muito mais abertos.
Pensar a renda mínima nesses termos não é uma proposta de um programa assistencial, mas uma forma de enfrentar essa questão do desemprego tecnológico estrutural. E é também um problema de atendimento das necessidades. Não podemos deixar uma legião - como vemos nos Estados Unidos e na Europa - de trabalhadores precários, cuja renda, às vezes, não permite nem pagar o aluguel. Trata-se de um problema que está aflorando com manifestações muito claras. Se analisarmos os eleitores do [Donald] Trump, eles estão expressando isso, porque eles foram chutados para fora do sistema e ninguém explica ou tem uma discussão séria – o Sanders teve – e proveitosa com a população a respeito do que está acontecendo. A maioria dos eleitores homens votará no Trump, porque são os que sentem mais de perto os danos dessa mudança tecnológica combinada com a transferência de empresas para a China, por exemplo, no caso dos EUA.
Diante desse cenário, estão todos discutindo se a globalização acabou, mas trata-se de um problema da forma de organização da economia mundial em todas as suas dimensões, sobretudo nessa dimensão importante que é o mundo do trabalho e que está se transformando com uma rapidez incrível. Então, não se trata mais de reeditar o Estado de bem-estar do jeito que ele existia nos anos 1950, tem que se fazer um avanço, do contrário, a situação irá gerar uma barbárie.
IHU On-Line – Como o senhor está compreendendo o atual momento brasileiro, em que muitos tinham uma euforia em relação aos primeiros anos do governo Lula e agora o país está imerso numa crise novamente?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Estou pensando que nós vivemos um momento em que o temor supera a capacidade de formulação, nós estamos adstritos a fórmulas ultrapassadas. Isso tem a ver muito com esse caráter performático da visão econômica, mecânica, desprovida de qualquer capacidade de avaliar o que está acontecendo concretamente. É muito perigoso ficar navegando em abstrações insustentáveis. Esse aspecto tomou conta de uma parte da opinião pública, e com isso entendo que o debate está se estreitando também, porque é muito difícil encontrar, na grande mídia, um debate mais esclarecedor, e eu temo muito pela decadência do Brasil.
Eu já disse que o Brasil está caindo para a série C do campeonato mundial, e não vejo, nesse momento, possibilidades cravadas no seio da sociedade e expressas em atitudes de política econômica que possam mudar esse rumo. Estou muito preocupado, mas não estou pessimista, porque sempre tenho esperança de que a sociedade se mova. Mas estou muito preocupado, porque estou vendo que ao longo de 20 anos nós não aprendemos nada.
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O Brasil está caindo para a série C do campeonato mundial e estamos adstritos a fórmulas ultrapassadas. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU