18 Outubro 2016
Esta semana foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que congela os gastos federais por 20 anos. Anunciada pelo governo Temer como o único remédio para a crise que o país atravessa e comemorada pelo grande empresariado, ela está longe de ser consenso entre os economistas e tem gerado muitas reações negativas entre entidades, movimentos sociais e instituições de pesquisa ligadas a áreas como saúde e educação.
Em entrevista à Cátia Guimarães do portal EPSJV/Fiocruz, 17-10-2016, a economista Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, caracteriza a PEC como um ato de terrorismo e faz uma denúncia: segundo ela, o texto esconde um esquema que visa inscrever na Constituição o desvio de recursos do orçamento para o sistema da dívida pública. Na prática, diz, isso significa que os gastos sociais serão congelados, mas a porteira que beneficia o capital financeiro ficará ainda mais aberta.
Foto: Divulgação. Fonte: EPSJV/Fiocruz
Eis a entrevista.
A PEC 241 tem sido apresentada como o único caminho para conter os gastos, gerar crescimento econômico e conter a crise que o Brasil vive. Na sua avaliação, isso é verdade?
Não, e não só minha avaliação como de inúmeros economistas de renome. Terça-feira [11/10] eu participei de uma audiência pública na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara. Tinha um economista professor da Unicamp, outro da UFRJ e um outro que dá aula em Washington. São economistas de renome nacional e internacional. E todos formam unânimes em dizer que essa PEC é o caminho mais rápido para arrebentar com o país. Isso sim. O problema do país não está nos investimentos com educação, saúde, previdência e assistência.
Esses investimentos representam solução. São investimentos de altíssimo retorno, para a sociedade, para a economia, retorno em todos os sentidos. O problema dos gastos no Brasil está nos gastos financeiros, nos gastos abusivos com a chamada dívida pública, um arranjo, uma obrigação sem contrapartida, com os juros mais elevados do planeta. O problema está aí. E o que essa PEC faz? Ela congela todos os investimentos que são impulsionadores do desenvolvimento socioeconômico, amarra isso para que sobrem mais e mais recursos para esses gastos financeiros. E mais: nós temos denunciado que essa PEC esconde um esquema financeiro.
Que esquema financeiro?
Um esquema financeiro brutal, que envolve empresas estatais não dependentes. Então, a gente já começa com uma tremenda contradição. Estamos em época de aceleração de privatizações. As privatizações estão acontecendo há 20 anos, mas neste momento está acelerando. O Temer aprovou uma Medida Provisória para acelerar as privatizações. Além disso, ele foi à China oferecendo hidrelétricas que restam ainda [para privatizar] e outras empresas que são úteis para a sociedade, que são estratégicas e lucrativas. Tudo isso está sendo privatizado. E o que é que está acontecendo aqui? Estão criando novas empresas estatais não dependentes.
O que a PEC [241] faz? Ela destina recursos para estatais não dependentes. Entre as estatais não dependentes nós temos o Grupo Petrobrás e o Grupo Eletrobrás, mas temos também algumas outras novas que são estatais que emitem debêntures, papéis financeiros. Essas estatais são pessoas jurídicas de direito privado, elas têm inclusive sócios, pessoas físicas, e emitem papéis que aqui no Brasil são chamadas de debêntures. Esses papéis são vendidos para investidores privilegiados – porque essa operação não é anunciada - com um desconto que pode chegar a 60% do valor do papel.
Ela emite e venda mais barato?
E vende com desconto. Por exemplo, um papel que vale R$ 100 mil, ela vende por R$ 40 mil.
São papéis da própria estatal?
Dela mesma. Mas esses papéis têm a garantia do ente federado. Então, é um filé. E esse filé está sendo vendido com esse desconto por quê? A propaganda pública, inclusive dos grandes meios de comunicação, é de que o que estaria sendo vendido seria a chamada dívida ativa. O que é a dívida ativa? É um ativo do Estado. É aquela dívida de tributos, multas, que o Estado não arrecadou no prazo, então a Secretaria de Fazenda foi lá e inscreveu aquilo em dívida ativa. A maior parte dessa dívida ativa, que é um crédito que existe na União, nos estados, nos municípios, é podre. Por quê? Porque são dívidas de empresas que quebraram décadas atrás e aquele débito ainda está lá, sendo corrigido todo ano.
Mesmo sabendo-se que essa dívida nunca será paga?
Mesmo sabendo que nunca o Estado vai receber, aquilo está lá. Então, é uma montanha de créditos que nunca serão arrecadados. Qual é a propaganda que está sendo feita? Que o que está sendo vendido seriam esses créditos podres. Então é uma propaganda irresistível. Imagina se você tem uma montanha de carne podre, da qual você salva no máximo uma beiradinha, que na melhor das hipóteses chega a 5%. E aí você acha alguém que paga 40%. Não é uma propaganda irresistível?
Claro.
Só que é mentira, o que está sendo vendido é um papel novo, emitido por essas empresas estatais não dependentes que estão sendo criadas em vários estados e municípios e também pela União. Ela emite um papel novo. E onde é que entra a dívida ativa nessa história? A dívida ativa é meramente o parâmetro para indicar o tamanho da garantia que o ente federado vai dar. Só que tem um detalhe: ele vai dar essa garantia independentemente de receber ou não a dívida ativa. E ele sabe que não vai receber. Isso vai gerar um rombo sem tamanho. E da onde vai vir o dinheiro para cobrir isso? Da PEC 241.
Mas a PEC 241 destina dinheiro do orçamento para cobrir isso?
Lá no final, ela tem um artigo que fala: ficam fora do congelamento recursos para eleições, recursos para isso, para aquilo e recursos para estatais não dependentes. E, como nós sabemos, a Constituição Federal é a linha mestra para as Constituições Estaduais. Cada estado tem a sua Constituição, que são o espelho da Constituição Federal. Então, isso virá para as Constituições estaduais, entendeu? Primeiro aprovaram a Desvinculação de Receitas nos estados e municípios, e agora vem isso aí.
Você está dizendo que essa PEC limita os gastos sociais mas deixa intocável o dinheiro que vai aumentar a dívida pública?
No fundo essa PEC é isso: teto para os gastos públicos, recursos sem limite para o sistema da dívida e para o esquema das debêntures das estatais não dependentes. É isso, esse é o resumo da ópera.
Independentemente desse artigo específico, que fala das estatais não dependentes, a PEC 241 estabelece um teto para os gastos do governo federal, mas continua não havendo teto para os recursos que vão para o pagamento da dívida. Por quê?
Exatamente. Por quê? Qual é a pegadinha? A PEC congela os gastos primários. Quando fala ‘primários’, você já está deixando de fora a dívida, a dívida está fora do orçamento primário. O orçamento primário engloba toda a arrecadação tributária e os gastos em saúde, educação, previdência, assistência, tecnologia, manutenção do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, etc. Todos os gastos, exceto dívida. Isso que é gasto primário.
Então, quando ela fala em congelamento dos gastos primários, as pessoas não sabem o que é primário. Fica todo mundo achando que está congelando tudo, e que vai sobrar dinheiro para investimento. Não. Vai congelar tudo e vai sobrar mais dinheiro para juros, para pagar dívida ilegal, ilegítima, que deveria ser anulada porque já tem muito indício de irregularidade. Só vai sobrar dinheiro para alimentar esse esquema, que é um esquema sem fundo.
O Programa de Parceria de Investimentos (PPI) e particularmente o Projeto Crescer, lançado pelo governo Temer como incentivo a concessões e privatizações, trazem como novidade o uso de debêntures pelas empresas que quiserem participar do programa...
Exatamente. É o mesmo desenho. Inclusive é o mesmo esquema que foi colocado lá na Grécia. Eles criam um papel e, com esse papel, que também é de uma empresa que emite debêntures, o investidor que compra tem direito a ter acesso depois a bens do Estado. Lá na Grécia nós detectamos isso, uma securitization notes, papéis de securitização para fins de aquisição de empresas privatizadas.
Então uma empresa, que no Brasil seria uma estatal não dependente, vende esse papel para uma outra empresa, que é o investidor, e esse investidor usa esse mesmo papel depois para comprar o direito a uma concessão, por exemplo, no leilão de uma rodovia ou de um aeroporto?
Isso. Só que aqui o investidor compra já com um desconto brutal, já ganhando juros, entendeu? A empresa [estatal não dependente] vende com um desconto, o investidor já compra aquilo na bacia das almas. E depois ele usa esses papéis para se apoderar de bens [do Estado]. No caso da Grécia, até as ilhas foram colocadas para privatização, a água, as companhias de trem, tudo. Tudo.
O governo tem defendido que essa PEC é só o começo, que ela precisa ser complementada por outras reformas, principalmente a da Previdência. Alguns economistas apontam, inclusive, que, sozinha, ela pode ser um tiro no pé do próprio governo...
Sabe por que esse discurso? Porque, se fizer esse congelamento [de gastos federais, que a PEC estabelece], dentro de poucos anos o orçamento só vai cobrir os gastos de Previdência, Saúde, e Educação. Vai sobrar 1% para toda a manutenção do Estado, inclusive Forças Armadas. Então, esse congelamento inviabiliza o funcionamento do Estado. Por que eles querem a reforma da Previdência? Para tirar os recursos que hoje vão para a Previdência, diminuir o que vai para a Saúde e para a Educação, para conseguir, por exemplo, manter as Forças Armadas, para manter minimamente a segurança. Agora, o que é isso? Um país rico como o Brasil! Essa PEC 241 ela tem que ser apelidada de PEC da Violência, PEC do Terrorismo. Nós temos que dar o nome certo a esse escândalo. Não é possível a gente acolher essa PEC.
Existe resistência nesse momento organizada capaz de barrar isso?
Armaram muito bem esse cenário. Mas a nossa esperança está nos estudantes, na juventude. Porque se eles não entrarem nessa luta, não terão mais um Brasil...
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‘Essa PEC é o caminho mais rápido para arrebentar com o país’. Entrevista com Maria Lucia Fattorelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU