22 Agosto 2017
Um pedreiro resume o que pensa sobre a esquina do desemprego no centro de São Paulo: "Olho para nós, para cada um esperando por uma obra, e lembro daquela letra dos Racionais: 'Aqui tem um coração ferido por metro quadrado'".
O trecho da música fala do Capão Redondo, na zona sul da cidade, mas a vida pode ser igualmente louca na esquina das ruas Barão de Itapetininga e Dom José de Barros. Toda manhã, dezenas de desempregados da construção civil se reúnem ali: estão famintos de alguma obra que pague as contas do mês.
A reportagem é de Leandro Machado e publicada por BBC Brasil, 21-08-2017.
Em outros tempos a vida era melhor. O fã dos Racionais MC's explica: "Uns anos atrás, a gente vinha aqui e não demorava em conseguir emprego, patrão buscava pedreiro nessa rua. Parava ônibus para levar peão".
Na semana passada, o IBGE enumerou essa queda do trabalho sentida pelos pedreiros: no segundo trimestre de 2017, a construção civil cortou 683 mil vagas no Brasil em relação às que existiam no mesmo período do passado - nos primeiros três meses, foram fechadas outras 719 mil. Hoje, o setor tem 6,7 milhões de trabalhadores - no final de 2013, eram 8,1 milhões. No total, o Brasil tem cerca de 14 milhões de desempregados.
"Os empregos saíram daqui e fugiram para longe", diz o pintor Aristides dos Santos, de 42 anos, parado desde 2016 e saudoso do tempo em que conseguia obra facilmente. "Eles não foram para longe, não, foram é para lugar nenhum", corrige.
Os peões da esquina, com mais de 40 anos, têm pouca qualificação formal: a maioria que conversou com a BBC Brasil não terminou o ensino fundamental. Grande parte saiu há décadas de cidades de Minas Gerais, do Norte e do Nordeste. Buscavam uma vida boa em São Paulo, mas às vezes ela pode virar uma decepção.
O pedreiro fã dos Racionais até conseguiu se dar bem por anos, mas tem uma visão crítica de sua trajetória. Saiu do norte de Minas, onde deixou dois filhos, viveu de bicos, por uns tempos caiu no excesso de bebida e, agora, despencou na crise econômica. Hoje, vai diariamente à esquina do centro, esperando que apareça alguma sorte.
Ele prefere não revelar seu nome nesta reportagem, por medo de ser reconhecido pelos parentes. "Meu irmão, eu moro num albergue, almoço no Bom Prato (restaurante popular que cobra R$ 1 por refeição). O trem está ruim para qualquer lado que eu pego", diz, emocionado. "Você quer que minha filha me veja assim, fodido e mal pago?
"Ninguém sabe como esse ponto de encontro surgiu. Os mais velhos dizem que ele existe desde a década de 1970, mas que já foi em outros locais do centro de São Paulo, como o Brás e a Luz. Um dia, ninguém lembra quando, ele se mudou para o cruzamento da Barão com a Dom José de Barros, um calçadão.
Essa região é cheia de agências de empregos temporários, subempregos, pequenos bicos. Toda manhã, na frente de alguns prédios, formam-se filas com pessoas de envelope na mão.
Na área dos pedreiros, porém, pouca gente leva o currículo. A experiência está nas mãos calejadas, nas botinas sujas de tinta e nas conversas que revelam a construção de um grande prédio.
O ajudante Evaldo Gonçales, de 50 anos, conta que as últimas grandes construções das quais participou foram uma fábrica da Fiat em Betim (Minas Gerais) e um edifício da Monsanto em Campo Verde (Mato Grosso), em 2015. Nessa, ele era "fichado" - como os peões chamam as vagas com carteira assinada. Hoje, sobrevive de bicos esporádicos.
Ainda há agências de emprego que contratam a mão de obra na esquina - elas são chamadas de "tempero", por oferecerem vagas temporárias. Uma delas é de um empresário conhecido como "Alemão", um homem de cerca de 1,90 de altura e com cabelos um pouco grisalhos.
O problema é que Alemão não aparece com frequência: em quatro manhãs, ele passou duas vezes pelo cruzamento, gerando grande expectativa entre os peões, que se viravam para vê-lo. O "salvador" apenas acenava com a cabeça para conhecidos, trocava duas ou três palavras com alguém e ia embora.
Não é assim com Antonio Rodriguez Gonzalez, o Toninho, um espanhol de 66 anos, dono de outra agência. Ele passa parte da manhã entre os pedreiros, conversando, sondando-os.
Parece que todos esperam pela presença do homem baixinho, de bigode, e que sempre usa uma boina preta. Toninho, que trabalha no ramo desde 1975, quando fundou sua empresa, também é saudoso dos bons tempos em que eram abundantes os empregos na construção civil. "Diminuiu bastante, com certeza. Antigamente o sujeito chegava aqui e não saía sem uma obra", conta.
Ele diz que chegou a ter 300 peões empregados pelo Brasil no começo da década. Hoje, em meses bons, consegue colocar 80.
Em 2016, o piso salarial de um empregado da construção civil era R$ 1.362, segundo o sindicato da categoria em São Paulo.
Até hoje, funciona assim: a agência recebe um pedido de "X" funcionários. Toninho, por exemplo, vai até a esquina e escolhe alguns. Na semana passada, ele estava selecionando trabalhadores para a construção de um supermercado em Aracaju. Os escolhidos devem viajar na segunda-feira.
Enquanto a BBC Brasil entrevistava os homens, rodinhas se formavam no entorno do repórter. Alguém sempre perguntava: "É boca?", como os trabalhadores apelidaram as vagas de emprego.
Toninho explica como recruta: "Converso, vejo como o sujeito está. Se eu te disser que, aqui, só dá para chamar uns 30% desses homens você acredita?", questiona. "Sim, tem um problema sério de alcoolismo: o homem até começa a trabalhar, mas no primeiro salário desaparece para beber", diz.
De fato, a bebida alcoólica é presença constante no ponto de encontro. Mas poucos são os que exageram - bebem pinga 51 ou uma cachaça mais barata, conhecida como "barrigudinha" por ter o frasco redondo e pequeno.
"O peão está desempregado, mora em albergue, não tem família, não tem perspectiva. Dá para entender porque muitos bebem tanto. Aqui tem mestre de obras que caiu em desgraça na bebida", diz Toninho. O ajudante Evaldo concorda. "Quando a turma não consegue nada, divide uma garrafa de 51 para espairecer", diz.
Apesar de tudo, há entre os pedreiros um clima de agradável amizade. Eles não vão ali apenas pela possibilidade de emprego, mas também porque existe um sentimento de pertencimento a um grupo. E a nostalgia: passam a manhã em rodinhas contando histórias de viagens pelo Brasil atrás das obras.
Um deles brincou com a operação que atingiu as maiores construtoras do país: "Essa Lava Lato acabou foi com tudo, não tem mais emprego nenhum. O único que tem dinheiro aqui é esse repórter aí".
Em outro grupo, Joselito Bispo dos Santos, de 52 anos, é um dos poucos que não dependem de um emprego para viver, pois recebe um benefício do governo. "Venho aqui mais é para passar o tempo com as amizades", diz.
Ele é orgulhoso da função que exerceu por décadas, desde que saiu de Madre de Deus (BA), para buscar a sorte em São Paulo. "Você sabe quanto de areia precisa para fazer um saco de cimento?", questiona ao repórter. "Meu irmão, ergui foi casa, prédio, ponte. Sou um pedreirão. Sou igual ao joão-de-barro, carrego tijolo no bico."
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A esquina do desemprego: os pedreiros que esperam por trabalho todos os dias no centro de SP - Instituto Humanitas Unisinos - IHU