05 Fevereiro 2025
Johan Grimonprez aborda, em seu filme, algo que não aprendeu na escola, na Bélgica: o colonialismo e a luta do Congo pela independência; seu documentário joga nova luz sobre o assassinato de Patrice Lumumba e utiliza o jazz como uma ferramenta da narrativa
A entrevista é de Matheus Mans, publicada por Estadão, 02-02-2025.
Foi apenas um dia após o anúncio dos indicados ao Oscar 2025 que o cineasta belga Johan Grimonprez conversou com o Estadão. Ainda tinha um sorriso estampado no rosto pela surpresa de ter conseguido uma vaga na categoria de Melhor Documentário com seu novo Trilha Sonora para um Golpe de Estado, que acaba de estrear nos cinemas brasileiros.
“Apesar de a lista final ainda ser influenciada por uma visão mais ‘americana’, o crescente envolvimento de cineastas europeus, brasileiros, africanos e asiáticos é algo que eu aplaudo. Isso torna a comunidade mais diversa e inclusiva”, comentou o cineasta.
Seu longa-metragem, afinal, é um prato cheio para polêmicas nos Estados Unidos e Europa – por isso a surpresa pela indicação. O filme busca revisitar o impacto do colonialismo no Congo Belga e a luta pela independência do país, utilizando o jazz como uma potente ferramenta de narrativa histórica. Para tanto, o documentário se debruça sobre o assassinato de Patrice Lumumba, primeiro-ministro do Congo, em 1961, e explora como esse episódio se conecta a dinâmicas políticas e econômicas que ainda marcam o Sul Global hoje em dia.
Ao Estadão, Grimonprez afirmou que a relevância do tema transcende o contexto histórico. “O assassinato de Lumumba representa um modelo de apropriação neocolonial que ainda é usado hoje. O mesmo padrão se repete, apenas adaptado aos tempos atuais”, afirma.
Você acabou de ser indicado ao Oscar. Como você se sente com isso?
Bem, documentários são meio que o “filho adotivo” do Oscar, não? Geralmente, o vencedor é anunciado entre categorias como figurino e maquiagem. Isso mostra como a Academia tradicionalmente considera os documentários. Mas está havendo uma mudança. Hoje, a comunidade internacional tem um peso maior na votação para a seleção inicial dos indicados. Apesar de a lista final ainda ser influenciada por uma visão mais “americana”, o crescente envolvimento de cineastas europeus, brasileiros, africanos e asiáticos é algo que eu aplaudo. Isso torna a comunidade mais diversa e inclusiva. Você também percebe que os documentários escolhidos são mais engajados. Por exemplo, No Other Land é muito crítico sobre o conflito entre israelenses e palestinos. Black Box aborda o movimento Me Too no Japão e enfrentou tentativas de censura lá. Para mim, o mais importante é que, mesmo com toda a pompa do Oscar, ele ainda oferece um megafone para causas cruciais. Especialmente para documentários, isso faz uma diferença.
Como surgiu a ideia para ‘Trilha Sonora para um Golpe de Estado’? Começou com o jazz? Com a Guerra Fria?
Eu já havia trabalhado com temas da Guerra Fria em filmes anteriores, como Double Take, que explora a cultura do medo nos anos 60 por meio de uma narrativa envolvendo Alfred Hitchcock e Nikita Khrushchev. Meu filme anterior, Shadow World, abordou a corrupção no comércio global de armas, com um foco significativo nos Estados Unidos. Com Trilha Sonora para um Golpe de Estado, eu quis explorar a história sombria do meu próprio país, a Bélgica, e seu passado colonial no Congo. Cresci na Bélgica e nunca aprendi sobre isso na escola. Por exemplo, o assassinato de Patrice Lumumba é um evento que ainda hoje é distorcido, com ele sendo frequentemente rotulado como comunista. Achei crucial abordar esse momento histórico para enfrentar o trauma coletivo e as relações desiguais entre o Norte Global e o Sul Global. Se quisermos avançar como sociedade, não podemos negar essas conexões.
Como foi o processo de pesquisa?
Comecei logo após Shadow World, em 2016. Passei cerca de cinco anos pesquisando e editando. Tivemos acesso a arquivos de vários lugares, como o Museu da África, na Bélgica, e a televisão pública belga [a RTBF], que é coprodutora do filme. Também exploramos arquivos da ONU, da Universidade de Columbia e da Escola de Cinema de Havana, onde conseguimos materiais inéditos. Encontramos verdadeiras joias, como uma gravação de um discurso de Lumumba que nunca havia sido liberada e estava esquecida no Museu da África. Outra descoberta foi um telegrama do então embaixador belga nos EUA sugerindo o assassinato de Lumumba, que encontramos nos arquivos diplomáticos da Universidade de Columbia. Essas descobertas foram fundamentais para a narrativa do filme.
E como foi o processo de edição? Como vocês estruturaram o ritmo e a narrativa?
Para mim, a edição é onde a escrita realmente acontece. Nesse filme, a música desempenha um papel central, quase como protagonista. Descobri que a música não era apenas uma presença, mas também um agente histórico e político. Por exemplo, quando Lumumba foi libertado da prisão e chegou à mesa de negociações em Bruxelas, ele estava acompanhado por artistas de rumba que compuseram o Independence Cha-Cha. Essa música se tornou um hino para a independência de vários países africanos. Na edição, tratamos músicos e políticos como protagonistas iguais. Usamos um estilo inspirado nos álbuns da gravadora Blue Note para apresentar tanto os músicos quanto os líderes políticos. Também usamos músicas como comentários para cenas históricas. Por exemplo, o discurso de independência de Lumumba é acompanhado por um álbum de Art Blakey e Eric Dolphy, que adiciona uma camada significativa à narrativa.
O filme aborda temas como soft power, política e colonização. Como vê essas questões hoje?
Essas dinâmicas continuam muito presentes. O assassinato de Lumumba representa um modelo de apropriação neocolonial que ainda é usado hoje. Olhe para o Sudão, Gaza ou o Iêmen — é sempre sobre o controle dos recursos desses lugares. O Banco Mundial, por exemplo, tem um papel crucial nesse esquema de exploração do Sul Global. Esse é o mesmo padrão, apenas adaptado aos tempos atuais. Para mim, o cinema oferece uma oportunidade de explorar essas questões de forma profunda, conectando história e atualidade. E pode dar voz às comunidades que sofrem as consequências dessas dinâmicas. Patrice Lumumba, por exemplo, foi assassinado porque se posicionou como um líder soberano, defendendo que as riquezas do país deveriam beneficiar o próprio povo. Os belgas o rotularam como comunista para conquistar o apoio dos Estados Unidos, mas ele não era comunista. Ele dizia: “Sou africano, antes de tudo. Meu país deve decidir seu próprio destino.”
Muita coisa, aliás, não mudou de lá pra cá.
Exatamente. A realidade no Sul Global ainda é dominada por uma “corporatocracia” transnacional, que opera acima dos países e não pode ser responsabilizada, nem mesmo por códigos internacionais como os de Haia. É o mesmo modelo do passado, com a mineração desempenhando um papel central. No caso de Lumumba, a indústria de mineração foi cúmplice de sua queda, junto com as Nações Unidas. Hoje, vemos algo semelhante no Leste do Congo. Minerais como o coltan, usados em baterias de lítio para produtos como Teslas e iPhones, continuam financiando milícias privadas e guerras. Essas milícias utilizam ferramentas brutais, como a violência sexual, para controlar os minerais de conflito. O ciclo se repete: os minerais atravessam a fronteira para Ruanda, seguem para a China e, no final, empresas como a Apple alegam não ter relação com isso. Existem projetos, como o NAF Project, que tentam responsabilizar essas corporações. Mas, para ser sincero, o que vemos hoje é um modelo de exploração que começou há décadas e só piorou com o tempo.
Como isso tudo se conecta à realidade brasileira?
A história do Brasil tem muitas semelhanças. É crucial abordar a história do Sul Global sem recorrer a estereótipos ou simplificações. Encontrar documentários que explorem isso de forma honesta, como Trilha Sonora para um Golpe de Estado, é difícil porque a história muitas vezes é narrada sob a ótica americana.
Esse é um desafio para você, não? Como belga, incluir diversas perspectivas e entender o que acontece fora da Europa e EUA.
Sim, fiz questão de criar um diálogo, e não de falar por alguém. Incluí memórias de André Blouin, por meio de sua filha Yves Blouin, para trazer uma visão diferente. Convidei Nkole Jombofane, um escritor belga-congolês, para compartilhar sua perspectiva. Também destaquei Conor Cruise O’Brien, representante irlandês na ONU, que tinha uma visão peculiar devido à história de colonização da Irlanda pelo Reino Unido. Ele escreveu sobre o genocídio belga em Katanga do Norte em seu livro To Katanga and Back. Essas vozes foram fundamentais para questionar a narrativa tradicional e destacar momentos históricos como o movimento de Bandung, em 1955, e o surgimento do movimento dos não-alinhados, liderado por figuras como Kwame Nkrumah, Soekarno e Tito.
Para você, qual é a importância de lançar o documentário no Brasil?
O Brasil tem muitas conexões com essa história. Não é apenas sobre o Congo, mas sobre vários países do Sul Global. Aliás, talvez nem devêssemos usar o termo “Sul Global”, porque, como Michael Hardt coloca, vivemos em um momento de “apartheid global”, com desigualdades espalhadas por toda parte. Espero que o público brasileiro se conecte com o filme. No México, tivemos diálogos incríveis após as exibições, e acredito que o mesmo possa acontecer aqui.