30 Janeiro 2023
É uma guerra que ninguém quer ver no leste da República Democrática do Congo. O próprio Papa Francisco não pode ir a Goma, lugar simbólico de um conflito que se arrasta há quase três décadas "Nosso país está em perigo!" É um grito de alarme aquele que o cardeal Fridolin Ambongo, arcebispo de Kinshasa, lançou no dia seguinte à última assembleia plenária da Conferência dos Bispos da República Democrática do Congo (Cenco) que, além disso, havia publicado um documento com o título muito explícito: “A hora é grave!”.
A reportagem é de Anna Pozzi, publicada por Mondo e Missione, 25-01-2023.
E, efetivamente, apesar do enorme entusiasmo com que os congoleses estão acolhendo o Papa Francisco, em visita ao seu país de 31 de janeiro a 2 de fevereiro (antes de fazer uma peregrinação ecumênica a Juba, no Sudão do Sul), a República Democrática do Congo vive, especialmente em suas regiões orientais, uma crise que se arrasta há quase três décadas e que se agravou ainda mais no último ano. A tal ponto que a etapa em Goma, capital do Kivu do Norte, inicialmente prevista para a visita papal, foi cancelada.
Goma é hoje o símbolo de um conflito interno e inter-regional que envolve mais de uma centena de grupos armados nas províncias de Kivu do Norte e do Sul e em Ituri: em particular as Forças Democráticas Aliadas (ADF), movimento islâmico de origem ugandense que opera especialmente na zona de Beni-Butento; e o Movimento M23 que, apoiado pela Ruanda, chegou a ocupar um território tão vasto como a Bélgica, cercando e ameaçando a capital do Kivu do Norte.
Mapa da África (Foto: Wikimedia Commons)
O Papa Francisco deveria celebrar a missa não muito longe de Goma, perto do local onde o embaixador italiano Luca Attanasio foi morto em 22 de fevereiro de 2021, junto com o carabineiro Vittorio Iacovacci e seu motorista, Mustapha Milango. Lá ele também deveria encontrar algumas vítimas da violência cega da qual principalmente a população é vítima.
Uma etapa cancelada que, no entanto, adquire um significado ainda maior nesta viagem, no qual o Papa Francisco colocou no centro o tema da reconciliação, convidando todos a "não deixar que a esperança seja roubada". No entanto, a hora é realmente grave, como dizem os bispos congoleses, segundo os quais “não devemos esquecer que, além dos recursos naturais, existe o povo congolês que precisa de paz. De que tipo de manutenção da paz estamos falando quando os mortos continuam se acumulando?”
A retomada das violências perpetradas pelo grupo armado M23 - melhor organizado e equipado não só pelo exército congolês, mas da própria força de estabilização das Nações Unidas (Monusco) - provocou um aumento dramático no número de mortes de civis e a fuga de centenas milhares de pessoas (quase 400 mil segundo a ONU) que se somam aos 5,6 milhões de deslocados presentes no país, o maior número da África e um dos mais altos do mundo.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) pediu "a todas as partes envolvidas o fim imediato dessa violência sem sentido, que está forçando dezenas de milhares de pessoas a fugir. Também pedimos respeito ao direito humanitário internacional e aos direitos humanos para proteger civis e agentes humanitários da violência e garantir que os responsáveis sejam imediatamente levados à justiça”.
Apesar desse e de muitos outros apelos, aqueles que vivem com a população, como o arcebispo de Bukavu François-Xavier Maroy, infelizmente continuam testemunhando "um ciclo infernal de violência, perda de vidas humanas, deslocamentos em massa de populações e destruição de nosso tecido econômico e social. É a história que se repete!"
De fato, o leste do Congo nunca conheceu a verdadeira paz desde que, após o genocídio de Ruanda em 1994, mais de um milhão de refugiados chegaram a essa região. Aqui, em 1996, teve origem a primeira guerra congolesa que levou à queda do regime de trinta anos de Mobutu Sese Seko; e sempre aqui, com a segunda guerra que começou em 1998, se exacerbaram as relações com o ex-aliado Ruanda. Hoje, a tensão entre Kinshasa e Kigali está no auge. O governo congolês acusa Ruanda de apoiar os rebeldes do M23, também com base em "evidências concretas" recolhidas por um grupo de especialistas das Nações Unidas que documentam operações militares realizadas diretamente pelo exército ruandês em território congolês e de apoio ao M23. O relatório também fala de bombardeios indiscriminados, assassinatos de civis e ataques à Monusco.
O Presidente Félix Tshisekedi denunciou explicitamente as “tendências expansionistas” de Ruanda que teriam “como principal interesse a apropriação dos nossos minerais. Para fazer isso, está trabalhando para desestabilizar o leste do Congo e criar uma zona de ilegalidade a fim de satisfazer seus apetites criminosos”. Ruanda, por sua vez, além de negar qualquer responsabilidade, acusa Kinshasa de apoiar as Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (Fdlr), grupo armado composto principalmente por hutus de origem ruandesa, presentes no Congo desde 2000.
Até os Estados Unidos, grandes aliados de Ruanda, pediram ao presidente Paul Kagame para parar de apoiar o M23 e trabalhar por uma paz e uma estabilidade necessárias que não podem mais ser adiadas. O secretário de Estado, Antony J. Blinken, esclareceu que “qualquer apoio externo a grupos armados na R.D. Congo deve acabar, incluindo o apoio de Ruanda ao M23" e expressou ainda "profunda preocupação com o impacto dos combates sobre os civis congoleses que foram mortos, feridos e deslocados de suas casas".
Por seu lado, a União Europeia aprovou uma disposição duramente criticada: ou seja, a atribuição de 20 milhões de dólares às Forças Armadas Ruandesas (Rdf), oficialmente para apoiar o seu empenho em Moçambique contra os grupos jihadistas presentes na província de Cabo Delgado. A Human Rights Watch pediu a todos os países doadores que "interrompam a assistência militar aos governos que apoiam o M23 e outros grupos armados".
No Congo, receia-se que esses fundos contribuam para exacerbar não só o conflito, mas também o ramificado sistema de corrupção e exploração das pessoas e das imensas matérias-primas destas regiões, em especial ouro, coltan e cassiterita, de que a vizinha Ruanda continua a se aproveitar amplamente, assim como muitos políticos, militares e negociadores congoleses sem escrúpulos.
O resultado está à vista de todos: depois de tantos anos de violência e desestabilização que teriam causado mais de 6 milhões de mortos, o leste do Congo continua a ser atingido por uma violência sem precedentes e pela pilhagem ininterrupta dos seus recursos. E, no entanto - como denunciam as autoridades civis e eclesiais - a comunidade internacional parece não ver. Ou não quer ver. A Conferência Episcopal definiu essa atitude em termos inequívocos como "hipócrita".
"Como pastores do Congo que vivem ao lado das pessoas - o cardeal Ambongo aumentou a dose em uma recente entrevista à Rádio Vaticano -, constatamos com amargura que a comunidade internacional é cúmplice do que aconteceu no Leste, pela simples razão de que todos sabem o que está acontecendo. Mas finge não ver…”.
Ao mesmo tempo, porém, a Igreja congolesa reafirmou ainda a necessidade de lutar contra a impunidade e a corrupção e de promover a paz e a reconciliação de todas as formas possíveis. Essas instâncias - que se tornam ainda mais urgentes neste 2023 em que também estão previstas eleições gerais - foram levados às ruas e praças de muitas cidades do país no último dia 4 de dezembro por iniciativa da Conferência Episcopal e do Comitê leigo de coordenação (Clc) dos católicos: “Não à balcanização do país! Não ao saqueio de nossos recursos! Não à insegurança!”, gritaram os manifestantes: “A soberania nacional e a integridade territorial não são negociáveis!. Nossa marcha – especificou o cardeal Ambongo – não tem significado político, é para mostrar ao mundo que somos um só povo, unidos pela causa nacional, pela soberania de nosso país e pela dignidade de nosso povo”.
Mas para continuar lutando, os congoleses ainda precisam de muita coragem e esperança, um pouco mais de unidade e também de atenção de parte do mundo. “Nós, congoleses – declarou o vencedor do Prêmio Nobel Denis Mukwege, após o encontro com o Papa Francisco em dezembro passado – esperamos que sua presença possa contribuir para sensibilizar a opinião pública mundial sobre o drama que nosso povo está vivendo. Também esperamos que, com suas orações e voz, possa contribuir para pôr fim a essa tragédia".
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O grito do Congo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU