A Bélgica tenta enfrentar as sombras de seu passado colonial

Foto: Wikimedia Commons CC

02 Julho 2020

"O pedido de desculpas oficial apresentado em 2019 pelo então primeiro-ministro belga Charles Michel, declararam as cinco mulheres à imprensa, não foi suficiente. Além das reivindicações individuais, quem denuncia os sinais do passado colonial é parte de um movimento amplo intergeracional e transnacional que, ao contrário do que afirmam seus detratores, não quer apagar o passado, mas revelá-lo e combater seus efeitos quando é fonte de opressão.", escreve Francesca Spinelli, em artigo publicado por Internazionale, 30-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Seu nome se destaca entre os escravagistas e colonialistas alvos de manifestantes em todo o mundo: Leopoldo II, rei da Bélgica de 1865 até sua morte em 1909 e proprietário do Estado Livre do Congo de 1885 a 1908. Se alguém ainda não o conhece, Ben Affleck cuidará de preencher a lacuna: em 2019, ele anunciou que filmará e produzirá um filme inspirado ao livro publicado em 1998 pelo jornalista estadunidense Adam Hochschild: O fantasma do Rei Leopoldo II da Bélgica e o holocausto esquecido. Para a maioria dos historiadores, não se pode falar nem de holocausto nem de genocídio, mas a brutalidade do domínio de Leopoldo II sobre aquele território, obtido como propriedade pessoal na conferência de Berlim, causou polêmica já no final do século XIX, a ponto de o rei ser forçado a ceder "seu" Congo ao estado belga em 1908. E dizer que o segundo soberano da Bélgica esperava se despedir discretamente da história. Em seu testamento, escreveu: “Peço perdão pelos erros que eu poderei ter cometido no decorrer da minha existência. Espero que sejam perdoados. Peço um funeral simples, às sete da manhã, na presença dos funcionários do castelo". Ele não foi atendido. Em 22 de dezembro de 1909, uma grande multidão se aglomerou em frente à catedral de São Miguel e Gudula, em Bruxelas. Segundo a imprensa britânica da época, o caixão foi recebido por assobios.

 

República Democrática do Congo em 2020 (Foto: Wallpaperflare)

 

Também na Bélgica, os protestos que eclodiram após o assassinato de George Floyd reacenderam o debate sobre colonização e racismo. Lembrado nos quatro cantos do país por estátuas, nomes de ruas, praças e túneis, Leopoldo II tomou e continua a tomar sua dose de golpes de picareta, pichações e frases antirracistas. Uma petição pedindo a remoção de todas as suas estátuas em Bruxelas até 30 de junho, dia do 60º aniversário da independência do Congo, ultrapassou oitenta mil assinaturas. Mas existem mais de vinte mil pessoas que, através de outra petição, solicitam sua manutenção.

Ruanda-Urundi (Atualmente Burundi) (Foto: Flickr CC/Dave Proffer)

Em 30 de junho, o rei Felipe da Bélgica enviou uma carta a Félix Tshisekedi, presidente da República Democrática do Congo, expressando sua "profunda tristeza" pelas "feridas" infligidas durante o período colonial.

 

Em atraso

Por décadas, a questão colonial não provocou debates na Bélgica, ao contrário do que acontecia na França, na Holanda ou no Reino Unido. Como a Itália, a Bélgica está "atrasada", observa Georgi Verbeeck, professor de história moderna e cultura política da Universidade de Maastricht: uma primeira vez como potência colonial, ansiosa por afirmar seu prestígio como nação ainda jovem e uma segunda vez como sociedade pós-colonial, incapaz de "rever criticamente sua história".

 

Muitos belgas viveram a independência do Congo em 1960 como um trauma. Convencidos de que eram "pessoas boas", não aceitavam ser expulsos. Verbeeck escreveu que a nostalgia pela colônia perdida estava entrelaçada com a certeza de não serem de nenhuma maneira responsáveis pelo "processo turbulento de descolonização" no Congo. Espelho daquela visão estática e acrítica, o Museu Real da África Central, inaugurado por Leopoldo II, continuou a viajar imperturbável no tempo, como uma relíquia monstruosa do passado.

 

Leopoldo II (Foto: Wikimedia Commons CC)

 

Enquanto isso, nas escolas do país, esse capítulo da história belga estava passando em silêncio. Um lento despertar. A Bélgica continuou assim, entre amnésia, torpor e ignorância, até os anos 1990, quando um despertar lento e conturbado começou. Duas comissões parlamentares tentaram esclarecer as responsabilidades do país nos eventos em Ruanda em 1994 (o Ruanda-Urundi foi um território colonial belga de 1924 a 1962) e no assassinato de Patrice Lumumba, primeiro chefe do governo da República Democrática do Congo, morto em 17 de janeiro de 1961. Suas conclusões - consideradas extremas por alguns, muito cautelosas por outros - ajudaram a minar o mito da "inocência da Bélgica". Em 2003, a televisão belga transmitiu o documentário.

 

Patrice Lumumba (Foto: Wikimedia Commons CC)

 

Les ravages du roi Léopold II, versão francesa de rei White king, red rubber, black death, uma coprodução dirigida pelo britânico Peter Bate extraída do livro de Hochschild. O retrato do monarca - ganancioso, inescrupuloso, sanguinário e racista - ofendeu parte dos belgas. Outros decidiram colocar em ação aquele juízo histórico: as primeiras contestações de estátuas datam de 2004. Mas, apesar de uma crescente mobilização, apoiada por associações mais ou menos radicais como a Mémoire colonial, Change asbl e Nouvelle voie anticoloniale, as coisas mudaram pouco.

 

O Museu da África Central, fechado em 2013 para reforma, reabriu em meio a críticas em 2018. Para muitos, incluindo especialistas africanos que se recusaram a colaborar diante do "vazio teórico" do projeto, foi perdida uma oportunidade de transformar o museu em um "espaço crítico ao serviço de toda a sociedade", como escreve o artista e historiador de arte Toma Muteba Luntumbue. Vitória isolada: em 2018, após uma campanha de dez anos, uma praça Patrice Lumumba foi inaugurada em Bruxelas.

 

Provas evidentes

 

Hoje, na Bélgica e em outros lugares, ouvimos dizer que as estátuas não devem ser removidas, mas "explicadas", "contextualizadas", e que o verdadeiro problema, afinal, nem são as estátuas, mas o racismo, a discriminação, a falta de perspectivas de jovens negros. Como se todo busto, monumento ou nome de rua vinculado ao colonialismo - na Bélgica, existem pelo menos 450, segundo a lista compilada pelo historiador Matthew Stanard - não fossem o rosto descarado de um sistema que produziu e continua produzindo tais injustiças.

Em Bruxelas, mais do que em outras metrópoles europeias, a marca do colonialismo vai além de monumentos e nomes de ruas. Com a riqueza acumulada pela exploração dos recursos e do povo congolês, Leopoldo II deu à cidade seu aspecto moderno, construindo avenidas e palácios e criando mil hectares de espaços verdes. Todas essas transformações - possibilitadas pela espoliação do Congo e facilitadas pela lei sobre as desapropriações de 1867 - exigiram a demolição de inteiros bairros operários. Avenidas e parques agora fazem parte do tecido urbano, os bairros da classe trabalhadora não voltarão. Mas as estátuas e os nomes das ruas podem ser removidos de seus imerecidos lugares de honra e substituídos por outras estátuas e outros nomes que reflitam os valores de que nossas instituições se enchem a boca: igualdade, liberdade, dignidade.

 

Praça Patrice Lumumba (Foto: Reprodução/Google)

Um bom resumo do trabalho que a Bélgica deveria realizar foi fornecido em 2019 por quatro especialistas das Nações Unidas, encarregados de investigar a condição dos afrodescendentes no país. "Existem provas evidentes que a discriminação racial é endêmica nas instituições belgas", consta em seu relatório preliminar. "As causas profundas dessas violações dos direitos humanos devem ser buscadas no fracasso em reconhecer a extensão real da violência e da injustiça da colonização". Seguem 37 recomendações, algumas das quais retornam entre as medidas anunciadas recentemente pelas autoridades belgas.

 

A Câmara dos Deputados aprovou a instauração de uma comissão parlamentar sobre o passado colonial belga. A ministra da Educação de língua francesa Caroline Désir e seu colega flamengo Ben Weyts querem tornar obrigatória o ensino da história do colonialismo.

 

Quanto às estátuas, Pierre Kompany (primeiro político negro eleito chefe de um conselho municipal) afirma que deveriam já ter sido transferidas para um museu há tempo. "Ninguém entraria para quebrá-las", observa ele, e quem quiser "pagaria para ir vê-las". Depois, há a questão das reparações, sobre as quais os especialistas da ONU recordam: "O direito às reparações por atrocidades do passado não está sujeito a prazo de prescrição". Em 24 de junho, cinco mulheres processaram o Estado belga por crimes contra a humanidade.

 

Nascidas no Congo Belga de mães congolesas e pais brancos, foram tiradas de suas famílias e colocados em uma instituição religiosa. O pedido de desculpas oficial apresentado em 2019 pelo então primeiro-ministro belga Charles Michel, declararam as cinco mulheres à imprensa, não foi suficiente. Além das reivindicações individuais (todas preciosas, especialmente porque as testemunhas do período colonial já estão avançadas nos anos), quem denuncia os sinais do passado colonial é parte de um movimento amplo, intergeracional e transnacional que, ao contrário do que afirmam seus detratores, não quer apagar o passado, mas revelá-lo e combater seus efeitos quando é fonte de opressão.

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