05 Abril 2024
"Esse não é apenas um ataque contra a WCK – escreveu ontem Erin Gore, CEO da organização – é um ataque às organizações humanitárias que se apresentam nas situações mais terríveis em que o alimento é utilizado como arma de guerra. E isso é imperdoável", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado em La Stampa, 04-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um ataque a um comboio, uma rota segura que não era segura, sete mortes e as forças armadas israelenses que no dia seguinte garantem “investigar o incidente”. Não estamos no início de abril de 2024 e não é Gaza. Estamos em 2006, a guerra é no Líbano, o comboio atingido é em Marjayoun. No início de agosto de 2006, o exército israelense conquista a base do exército libanês em Marjayoun, uma cidade cristã a oito quilômetros da fronteira. A Unifil, em contato com as tropas de Telavive, organiza a evacuação, preparando uma rota planejada em direção a Beirute e escoltando os veículos.
Segundo o então porta-voz da ONU, Milos Strugar, as forças israelenses haviam sido informadas antecipadamente da passagem do comboio e haviam dado a permissão. Rotas definidas como seguras pelas forças israelenses, portanto. No entanto, poucas horas depois, centenas de veículos lotados de forças armadas libanesas, civis e um jornalista da Associated Press foram atacados pela força aérea israelense. Oito bombas que mataram 7 pessoas e feriram 36. Então, como hoje, o exército israelense prometeu uma investigação detalhada, depois, como hoje, declarou que tinha “identificado movimentos suspeitos ao longo da rota”.
Ontem, Itay Epshtain, consultor em direito e políticas humanitárias e conselheiro especial do NRC (Conselho Norueguês para os Refugiados), escreveu que “o assassinato por parte de Israel dos operadores humanitários da World Central Kitchen não é um acidente trágico, como afirmaram as autoridades israelenses, mas o culminar de problemas normativos que remontam a décadas atrás" e que legitimaram uma atitude permissiva em relação ao uso da força. Epshtain, religando os fios da história e guerras mais recente que a libanesa, cita eventos relacionados com o conflito em Gaza de 2009, quando o exército israelense atacou várias sedes das Nações Unidas, como o centro de saúde de Bureij, onde - consta no relatório elaborado após o ataque – as forças armadas não tinham feito “esforços suficientes nem tomado precauções para proteger nem os civis nem o pessoal das Nações Unidas”. Violações que se tornam sistêmicas e não poderiam ser justificadas pela conveniência militar, "uma degradação jurídica" a define Epshtain, que ao longo dos anos levou a ataques “sem distinção adequada e precaução”.
O ataque de dois dias atrás, que incluiu entre as vítimas também operadores ocidentais, é apenas o último de uma longa lista que, desde o início da guerra, matou 173 membros e atingiu 161 estruturas das Nações Unidos e matou centenas de civis que buscavam abrigo naquelas estruturas.
Para o primeiro-ministro Netanyahu, um “erro” que um “órgão independente irá investigar profundamente”.
Para o presidente dos EUA, Joe Biden, o seu aliado mais próximo, é a prova de que Israel “não está protegendo os operadores humanitários de quem os civis desesperadamente necessitam”.
Um dia antes do ataque ao comboio da World Central Kitchen (Wck) em Deir Al-Balah, a revista estadunidense The New York Review publicou um longo e detalhado artigo de Neve Gordon e Muna Haddad, estudiosas e especialistas em direitos humanos no conflito israelense-palestino. O título era “O caminho para a fome”.
Gordon e Haddad não se limitam a reconstruir as declarações dos líderes políticos e da cúpula das Forças armadas israelenses após o ataque do Hamas em 7 de outubro (em Gaza “não existem civis inocente”, Presidente Isaac Herzog, 13 de outubro; “nem um grama de ajuda humanitária entrará... apenas centenas de toneladas de explosivos", ministro Itamar Ben Gvir 17 de outubro; “não permitiremos a assistência humanitária na forma de alimentos e medicamentos do nosso território para a Faixa de Gaza", primeiro ministro Benjamin Netanyahu, 18 de outubro, etc.), mas acompanham o controle que desde 1967, ano em que se ocupou pela primeira vez a Faixa de Gaza, Israel fez do recurso alimentar palestino, modificando o aporte nutricional dos seus habitantes e utilizando o alimento como arma para gerir a população.
“Durante décadas – escrevem as estudiosas – Israel danificou sistematicamente a capacidade da Faixa de produzir seu próprio gêneros alimentares, diminuindo seu acesso à água potável e ao alimento nutricional”.
Quando Israel ocupou Gaza, cerca de 400 mil palestinos viviam lá, 70% deles refugiados, fugidos ou em fuga expulsos de suas casas durante a Nakba (a catástrofe do deslocamento forçado) de 1948. Durante décadas, Israel controlou tudo: água, eletricidade, medicamentos e hospitais, sistema judiciário e instrução.
Até o final da década de 1980, a estratégia do alimento foi aquela de garantir ou aumentar o aporte calórico per capita dos habitantes para – relatam os Arquivos de Estado Israelenses – “normalizar a ocupação e aplacar a resistência”.
Em suma, fazê-los comer mais e melhor, para que os refugiados palestinos se resignassem a não querer voltar para o lugar de onde vieram.
Mais tarde, em 1987, depois da primeira Intifada, a atitude mudou: a limitação do valor nutricional e a criação de insegurança alimentar entre os palestinos em Gaza tornaram-se centrais na estratégia de contrainsurreição. Em 2000, após a segunda Intifada, Israel limitou progressivamente a circulação de pessoas e mercadorias, destruiu fazendas, arrasou terrenos agrícolas, arrancou árvores, consolidou o controle aéreo e marítimo tanto que dois anos depois o British Medical Journal informou que o número de crianças em Gaza com desnutrição havia dobrado em menos de 24 meses.
Em 2005, Israel desmantelou os assentamentos na Faixa, cercando-a de bases militares e criando uma zona tampão que devorou e erodiu mais terras agrícolas palestinas depois, em 2007, quando o Hamas venceu as eleições e tomou o poder, Israel impôs um bloqueio total, limitando combustível, eletricidade e permitindo o acesso apenas a bens essenciais à sobrevivência: “Os alimentos proibidos incluíam chocolate, coentros, óleo de oliva, mel e algumas frutas, todas definidas por Israel como ‘artigos de luxo’. A cota de carne fresca para toda a população era fixada em trezentos bezerros por semana”.
Em 2012, após uma batalha legal de três anos e meio travada pela organização de Direitos Humanos Gisha, o governo israelense foi obrigado a publicar um documento confidencial de 2008 em que descrevia “as linhas vermelhas para o consumo de alimentos na Faixa de Gaza”, enquanto o governo liderado pelo então primeiro-ministro Ehud Olmert reforçava as restrições à circulação de veículos e pessoas. O documento calculava o número mínimo de calorias necessárias para garantir uma alimentação suficiente para a subsistência sem o desenvolvimento de desnutrição e servia para determinar a quantidade de alimentos que podiam ser admitidos a cada dia.
Em média, o mínimo somava 2.279 calorias per capita por dia, que podiam ser fornecidas por 1.836 gramas de alimento, ou seja, 2.575 toneladas de alimentos para toda a população de Gaza. As estatísticas eram usadas para determinar quantos caminhões poderiam ter permissão de acesso, quais seriam as linhas vermelhas para evitar cair abaixo dos níveis mínimos contra a desnutrição e quais alimentos seriam considerados não indispensáveis. Por exemplo: o húmus simples podia entrar, mas não o húmus com pinhões. Era considerado um item de luxo.
Em 2022, a UNRWA forneceu alimentos a mais de um milhão de refugiados em Gaza, catorze vezes mais em comparação com 2000, escrevem Gordon e Haddad.
No final de 2022, 81% dos refugiados na Faixa viviam abaixo do limiar da pobreza, 85% das famílias conseguiam alimentos a partir dos resíduos do mercado e mais de três quartos das famílias estavam reduzindo tanto o número de refeições por dia quanto a quantidade de alimentos em cada refeição.
Muito antes do Hamas atacar Israel em 7 de outubro, a crise humanitária em Gaza era do conhecimento de todos.
Mesmo antes, o alimento que entrava na Faixa era insuficiente.
No dia 1º de abril, as Nações Unidas lançaram mais um apelo pedindo o desbloqueio do acesso das ajudas humanitárias, apelo que se seguiu às ordens da Corte Internacional de Justiça (CIJ) que pediu a Israel para respeitar as suas obrigações como signatário da Convenção sobre o genocídio e abrir as passagens de fronteiras para permitir a entrada de ajudas suficientes no enclave.
Hoje, quase seis meses depois do 7 de outubro, mais de 32 mil pessoas morreram em Gaza, mais de 13 mil crianças. Há 75 mil feridos, três quartos das infraestruturas civis estão destruídas ou danificadas e 75% da população da Faixa antes da guerra, ou seja, um milhão e setecentas mil pessoas, é deslocada de suas casas. Os palestinos continuam a morrer sob as bombas, ou enquanto tentam se alimentar. Uma dúzia teria morrido em decorrência dos lançamentos aéreos de pacotes de alimentos, morrido por afogamento enquanto tentavam recuperá-los no meio do mar, ou morrido por serem atingidos pela queda de caixas de ajudas.
Após o ataque ao comboio da World Central Kitchen, Anera, um grupo humanitário com sede em Washington, que opera nos territórios palestinos há décadas, suspendeu as operações em Gaza, onde havia contribuído a fornecer aproximadamente 150.000 refeições por dia. E, segundo o site estadunidense Axios, os Emirados Árabes Unidos, o principal financiador da rota que lidera os esforços para levar alimentos por mar para Gaza, teriam decidido suspender o seu envolvimento no corredor marítimo para Gaza até que Israel forneça garantias de que os operadores humanitários no enclave estarão protegidos. A World Central Kitchen também suspendeu as atividades na região.
“Esse não é apenas um ataque contra a WCK – escreveu ontem Erin Gore, CEO da organização – é um ataque às organizações humanitárias que se apresentam nas situações mais terríveis em que o alimento é utilizado como arma de guerra. E isso é imperdoável”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A arma da fome. Artigo de Francesca Mannocchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU