"As contranarrativas russas e chinesas forneceram simplesmente o vocabulário para os países do Sul Global descreverem o que sentiam há muito tempo: que a ordem baseada em normas era apenas um escudo de virtude para o poder e controle ocidentais. A guerra mais recente em Gaza, onde o direito de Israel à autodefesa envolveu manter 2 milhões de pessoas — mais de 40% das quais são crianças — sob punição coletiva, tornou essa derrota tão evidente que até mesmo o Ocidente não pode deixar de perceber".
O comentário é de Julien Barnes-Dacey, diretor do Programa do Oriente Médio e Norte da África no Conselho Europeu de Relações Exteriores, e Jeremy Shapiro, diretor de pesquisa no Conselho Europeu de Relações Exteriores, em artigo publicado por Foreign Policy, 20-11-2023. A tradução é de Arthur Lersch Mallmann.
Viva a sua vida verdadeira, nos dizem todos os livros de autoajuda. Abrace quem você é, aceite suas falhas, torne-se melhor transformando-as em pontos fortes. Tudo isso pode soar como uma psicologia popular barata, mas pode ser libertador para indivíduos reprimidos e, argumentaríamos, para a civilização ocidental. É hora de o Ocidente finalmente assumir a sua verdade e libertar-se.
A horrível guerra na Faixa de Gaza estranhamente representa uma oportunidade para essa libertação. O castigo coletivo de Israel contra Gaza está forçando agora um ajuste de contas, expondo as alegações ocidentais sobre a santidade de suas normas globais proclamadas em alto e bom som.
Em vez de se refugiar em uma batalha defensiva de narrativas, o Ocidente deve enxergar isso como uma oportunidade para ir além de um discurso que nunca se sustentou. O Ocidente terá uma melhor chance de consolidar sua influência global se for mais honesto sobre essa realidade, oferecendo parcerias globais baseadas em acordos e interesses compartilhados, em vez de infantilizar o Sul Global com discursos vazios sobre normas internacionais.
Desde a vitória intoxicante dos Estados Unidos e seus aliados na Guerra Fria e a subsequente marcha da democracia pela Europa Oriental e além, o Ocidente abraçou uma ilusão reconfortante sobre uma ordem liberal baseada em normas. Com o triunfo final do liberalismo sobre o comunismo, os exércitos vitoriosos da democracia diziam a si mesmos que finalmente poderiam transferir sua bela ideia de Estado de Direito para o âmbito internacional. O direito internacional poderia domar a guerra, defender a soberania e proteger os direitos humanos, tudo ao mesmo tempo.
Era uma visão maravilhosa, mas nunca teve chance. As tentações do poder fizeram com que o Ocidente violasse repetidamente suas próprias regras. Os atores ocidentais invadiram países quando sentiam a necessidade (Iraque), contrataram advogados sofisticados para se isentarem das leis que esperavam que outros seguissem (Kosovo), pregaram Direitos Humanos enquanto faziam acordos com regimes autoritários (Arábia Saudita) e criaram um Tribunal Penal Internacional para julgar líderes africanos (incluindo os do Sudão) enquanto se recusavam a reconhecer sua jurisdição sobre si mesmos (Estados Unidos). Para os países menos poderosos, a ordem baseada em normas sempre foi pouco mais do que hipocrisia em escala global.
Tudo isso permaneceu oculto por muitos anos sob o poder avassalador do Ocidente. Ninguém fora do Ocidente realmente acreditava nisso, mas encarando a supremacia militar dos Estados Unidos, muitos sentiam que era prudente manter suas dúvidas para si mesmos.
Mas, desde pelo menos a crise financeira global em 2008, as potências ascendentes do Sul Global, um conjunto de países que pode ser aproximadamente definido como "aqueles países que acham que a ordem baseada em normas é besteira", têm se tornado cada vez mais vocais em sua frustração sobre a hipocrisia no cerne da ordem global.
"Países como Brasil, Índia, Arábia Saudita e África do Sul desejam a liberdade de lidar com os Estados Unidos, Rússia, China, Europa e qualquer outro conforme seus próprios termos". Na foto, Lula com o presidente dos EUA, Joseph Biden. (Foto: Ricardo Stuckert | Palácio do Planalto)
Eles têm particular desacordo com a exigência do Ocidente de que eles sacrifiquem interesses materiais centrais em defesa dessa chamada ordem, um passo que o Ocidente sempre foi totalmente relutante em dar por si próprio. Assim, apelos dos Estados Unidos e da Europa para que os estados globais cortem laços financeiros e energéticos com a Rússia após a invasão da Ucrânia caíram em ouvidos surdos, enquanto tentativas ocidentais de mobilizar apoio internacional em prol de Israel vacilaram.
As acusações de hipocrisia frequentemente surgiram na forma de propaganda russa ou chinesa tendenciosa, dois estados que frequentemente foram brutais em suas próprias violações das normas internacionais. Nem os países do Sul Global foram principiados em muitas de suas próprias posições.
Mas isso não tornou a afirmação de hipocrisia ocidental menos verdadeira ou impactante. No fim das contas, é difícil acreditar em uma ordem baseada em normas cujas regras você não fez; cujas transgressões você não pode policiar; e cujos resultados, coincidentemente, sempre parecem alinhar-se com os interesses do Ocidente.
Por essas razões, o edifício da ordem baseada em normas já havia basicamente desmoronado no início da invasão russa em larga escala da Ucrânia em 2022. Apenas os antigos hegemonistas liberais dos Estados Unidos e da Europa falharam em perceber.
Muitos deles ficaram um pouco surpresos quando seus esforços para mobilizar apoio à Ucrânia em nome da ordem baseada em normas encontraram certa dose de escárnio no Sul Global. Pessoas sérias em todo o mundo ocidental se perguntavam por que estavam supostamente perdendo o Sul Global. Eles elaboraram planos para vencer a chamada batalha das narrativas, contrapondo a propaganda russa e chinesa e compartilhando o controle da ordem baseada em regras com esses países que não podiam mais ser excluídos.
Agora, o brutal ataque do Hamas a Israel e as represálias ainda mais brutais por parte dos israelenses mais uma vez expuseram que o apego do Ocidente às suas próprias regras é, na melhor das hipóteses, situacional.
Alguns setores esclarecidos temem que isso prejudique o contra-ataque do Ocidente na batalha das narrativas no Sul Global. Josep Borrell, o alto representante da União Europeia para política externa, por exemplo, argumentou que a posição global do Ocidente será seriamente prejudicada se não também julgar a conduta de guerra de Israel pelos padrões do direito internacional.
Mas isso seria lutar a guerra derradeira. A batalha das narrativas foi perdida há anos nas planícies desérticas do Iraque, nos becos de Gaza e nos campos de petróleo do Delta do Níger. As contranarrativas russas e chinesas forneceram simplesmente o vocabulário para os países do Sul Global descreverem o que sentiam há muito tempo: que a ordem baseada em normas era apenas um escudo de virtude para o poder e controle ocidentais. A guerra mais recente em Gaza, onde o direito de Israel à autodefesa envolveu manter 2 milhões de pessoas — mais de 40% das quais são crianças — sob punição coletiva, tornou essa derrota tão evidente que até mesmo o Ocidente não pode deixar de perceber.
31 out of 36 premature babies were safely evacuated from Al-Shifa Hospital in #Gaza city through a mission by @UN and @PalestineRCS.
— UN Humanitarian (@UNOCHA) November 20, 2023
Their condition is now being stabilized.
The other five babies had already died due to lack of electricity and fuel: https://t.co/Q4osOOioTQ pic.twitter.com/SkTZe3s5sA
No entanto, da derrota surge a oportunidade. O Ocidente pode finalmente colocar a batalha das narrativas na pilha de guerras perdidas e seguir em frente. O Sul Global pode nunca ter comprado o que o Ocidente estava vendendo, mas há poucas evidências de que essas nações estejam mais convencidas pela hipocrisia russa ou chinesa, que é ainda mais explícita em sua ambição.
Os países do Sul Global foram muito claros: eles não procuram a narrativa de ninguém. O Sul Global não pertence ao Ocidente. Como revela uma pesquisa recente do Conselho Europeu de Relações Exteriores, países como Brasil, Índia, Arábia Saudita e África do Sul desejam a liberdade de lidar com os Estados Unidos, Rússia, China, Europa e qualquer outro conforme seus próprios termos. Eles buscam acordos geopolíticos.
Mas a mesma pesquisa revelou que o Ocidente tem muito a oferecer. A Rússia oferece pouco mais do que mercenários, e os chineses parecem estar seguindo o modelo histórico ocidental de dominação geopolítica por meio da dívida. Apenas o Ocidente oferece um modelo de sociedade vibrante e livre. Em questões como Direitos Humanos, controle sobre a internet e cooperação em segurança, a maioria das pessoas em países-chave como Brasil, Índia e África do Sul preferem trabalhar com o Ocidente, apesar de sua hipocrisia. E, o que é mais revelador, maiorias ainda mais evidentes de muitos desses países prefeririam viver no Ocidente do que na Rússia ou na China. Há uma razão pela qual os Estados Unidos e a Europa têm crises migratórias e Rússia e China não têm.
Acordos geopolíticos ocidentais oferecem a esperança de um caminho de desenvolvimento em direção aos padrões de vida e governança do Ocidente. Os países não querem receber sermões de seus parceiros ocidentais sobre suas diversas falhas em Direitos Humanos, mas desejam ter acesso aos conceitos ocidentais de governança, Estado de Direito e, acima de tudo, aos padrões de vida que essas instituições possibilitam. O Ocidente só precisa cessar os moralismos e focar na construção de parcerias equitativas, oferecendo assistência financeira e técnica complementada por oportunidades de comércio e investimento, e será capaz de competir de forma mais do que adequada com a influência russa e chinesa em praticamente qualquer parte do mundo.
Isso não é uma desculpa para abandonar os valores considerados fundamentais no Ocidente. Pelo contrário, esses valores não apenas formam a identidade moral do Ocidente, mas também constituem seus interesses estratégicos. Valores democráticos mais difundidos, maior proteção dos Direitos Humanos e um sistema internacional mais justo são, de fato, o que o Ocidente quer e precisa alcançar para garantir sua própria segurança e estabilidade.
No entanto, as hipocrisias e compromissos que o Ocidente realizou em relação a esses valores ao longo das últimas décadas significam que os Estados ocidentais agora precisam focar na consistência de suas próprias políticas e demonstrar disposição para pagar o preço por manter os valores proclamados. Levará tempo considerável e esforço, e será necessário reverter várias políticas, antes que o Ocidente possa voltar à batalha das narrativas.
Nesse meio tempo, os Estados Unidos e a Europa precisam parar de infantilizar os países do Sul Global. Esqueçam as narrativas e tratem-nos como as potências intermediárias maduras que se tornaram. Acordos geopolíticos mutuamente benéficos transmitirão os valores ocidentais pelo mundo de maneira mais eficaz do que palestras paternalistas.
As potências liberais podem agora assumir a sua verdade: são hipócritas geopolíticos típicos, assim como todos os outros. E daí? Ninguém espera nada diferente. A verdade os libertará.