Terrorismo e erro moral. Artigo de Denis Coitinho

Uma mulher se recupera no Hospital Al Hilo, na cidade de Gaza, depois de ser soterrada nos escombros e passar por uma cesariana de emergência. (Foto: Bisan Ouda | Fundo de População das Nações Unidas)

20 Novembro 2023

"A regra padrão de uma guerra justa, que exige que os danos colaterais não devem ser desproporcionais ao valor do alvo militar, não é simples de ser aplicada em uma guerra em que os terroristas se escondem entre a população ou utilizam civis como escudos humanos", escreve Denis Coitinho, eticista, professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos e pesquisador do CNPq. 

Eis o artigo.

Em 07 de outubro de 2023, o grupo Hamas atacou Israel em uma ação coordenada, deixando 1.400 mortos e fazendo mais de 200 reféns. Foi o pior ataque em solo israelense desde a formação do Estado de Israel, em 1948. Mais ou menos 1.500 integrantes do grupo palestino Hamas romperam o bloqueio à Faixa de Gaza e se infiltraram no sul de Israel, onde realizaram massacres de civis e sequestraram mais de 240 pessoas. Os massacres ocorreram em vários Kibutz e, inclusive numa rave “Universo Paralelo”, com 260 mortos. Um dos piores massacres ocorreu no kibutz de Beéri, onde foram encontrados 108 corpos, entre eles, o de mulheres e crianças. Esses atos foram amplamente censurados pela opinião pública global, considerando a ONU – Organização das Nações Unidas, países europeus, como Alemanha, França, Itália etc., além de EUA e Reino Unido, e classificados de forma geral por atos terroristas. Entretanto, alguns atores globais não tiveram esse mesmo entendimento. Por exemplo, para Irã, Catar e Turquia os atos do Hamas são melhor compreendidos como atos de libertação. Inclusive o presidente da Turquia, Recep Erdogan, disse claramente que “O Hamas não é um grupo terrorista”, mas sim “um grupo de libertadores”, e acusou Israel de cometer crimes de guerra.

Outros mantiveram uma posição de equidistância, como o México, que através de seu presidente Manuel López Obrador, afirmou no dia 09 de outubro que seu país “não tomou partido”, e que “mais que condenações, era necessária uma solução pacífica”. Essa pareceu/parece ser também a posição brasileira se observarmos os discursos do Presidente Lula sobre o conflito. Outros ainda procuraram justificar os atos cometidos em razão do confronto de Israel com os palestinos. Foi o caso dos governos da Venezuela, Cuba e Nicarágua, que atribuíram os ataques do Hamas à ocupação israelense dos territórios palestinos. E essa pareceu ser a posição comum da esquerda no mundo, que em geral condenaram de forma genérica os atos cometidos pelo Hamas, mas com uma dificuldade em fazer uma condenação moral contundente em razão da defesa da causa palestina.

A controvérsia da questão se dá porque o terrorismo é um fenômeno social-político muito complexo, que levanta várias interrogações, como por exemplo: Pode o terrorismo ser justificado moralmente, considerando que sua causa é justa? Os fatos históricos, políticos, econômicos e culturais devem ser levados em conta ao julgar a moralidade de um ato terrorista? Quais seriam os limites morais do contraterrorismo de Estado? Apenas os rivais dos Estados é que seriam terroristas e não os próprios Estados?

Nesse ensaio, meu foco não será tanto a discussão sobre o termo “terrorismo”, por exemplo, se ele é um termo apropriado ou não para analisar a complexidade do fenômeno de movimentos políticos contestatórios que usam a violência para atingir seus fins, mas sobre a moralidade dos atos terroristas, de forma a pensar se eles são errados ou se podem ser justificados moralmente. Assim, parto de uma definição geral do terrorismo, e de como ele é entendido pela ONU e pelo Brasil.

O terrorismo, no seu sentido mais amplo, é o uso da violência intencional e do medo para atingir objetivos políticos. O termo é utilizado a este respeito principalmente para se referir à violência intencional durante tempos de paz ou no contexto de guerra contra não combatentes (principalmente civis). Os termos “terrorista” e “terrorismo” originaram-se durante a Revolução Francesa do final do século XVIII, mas tornaram-se amplamente utilizados internacionalmente e ganharam atenção mundial na década de 1970 durante os conflitos na Irlanda do Norte (com o IRA), o conflito basco (com o ETA) e o conflito entre Israel e Palestina. O aumento do uso de ataques suicidas desde a década de 1980 foi tipificado pelos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos realizado pela Al-Qaeda contra as Torres Gêmeas e o Pentágono.

Segundo Paul Wilkinson, um dos principais especialistas no tema, o terrorismo político se caracteriza pelo emprego da intimidação coercitiva por movimentos revolucionários, regimes ou indivíduos, com motivação política, tendo uma natureza indiscriminada (aleatória), em que ninguém está seguro (WILKINSON, 1976, p. 15-17). Segundo ele, o terrorismo político é aquele que combina o uso do terror psíquico, como a chantagem, por exemplo, com a violência física com vistas a alcançar um objetivo político, tendo as seguintes características: realiza atos premeditado e visa criar um clima de medo extremo ou terror; é dirigido a um público mais amplo do que a vítima imediata da violência; envolve inerentemente ataques a alvos aleatórios e simbólicos, incluindo civis; os atos são violações de normais sociais que geram indignação na sociedade onde ocorrem; suas ações objetivam influenciar o comportamento político de alguma forma (WILKINSON, 1976).

Importante observar que a comunidade internacional tem sido lenta na formulação de uma definição universalmente acordada e juridicamente vinculativa deste crime. Estas dificuldades surgem do fato de o termo “terrorismo” ter uma carga política e emocional muito grande, que envolvem várias questões sobra a justiça. Também, é importante compreender que há uma grande discussão acadêmica sobre o tema, vide a posição revisionista, que defende que a posição tradicional da teoria da guerra justa não se sustenta diante da complexidade e da violência política praticada no século XXI, a exemplo de Rodin (2004). Mas, penso que de forma pragmática, há um relativo consenso sobre a matéria. Por exemplo, a Secretária Geral das Nações Unidas, a despeito da controvérsia no âmbito da política internacional, descreve o terrorismo, a partir do relatórioA More Secure World, Our Shared Responsibility” de dezembro de 2004, como “qualquer ato destinado a causar a morte ou lesões corporais graves a civis ou não combatentes, com o objetivo de intimidar uma população ou obrigar um governo ou uma organização internacional a fazer ou abster-se de praticar qualquer ato” (para 164(d), p. 52). Isso já aparecia no Artigo 1 da Liga das Nações, classificando os atos terroristas como “atos criminosos dirigidos contra um Estado e com a intenção calculada de criar um estado de terror nas mentes de pessoas específicas ou de um grupo de pessoas ou do público em geral”.

Também, os países internamente tipificam o terrorismo como crime, consistindo em atos violentos, como a matança deliberada de pessoas inocentes, feita aleatoriamente, com o objetivo de espalhar o terror entre toda uma população, a fim de concretizar seus objetivos políticos. No Brasil, por exemplo, a Polícia Federal recentemente prendeu três suspeitos de ligação com o grupo libanês Hezbollah. Segundo a investigação, os brasileiros preparavam atos de terrorismo no Brasil, com foco em ataques a prédios da comunidade judaica (CNN Brasil, 13/11/2023). E isso porque em nosso país terrorismo “consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo – a exemplo de usar explosivos para causar destruição em massa, fazer sabotagem e atentar contra e vida e integridade física da pessoa – por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”, sendo a pena de reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência (Lei No. 13.260 – 16/03/2016).

Com essa definição em mãos, nosso objetivo agora é saber se atos terroristas, como os perpetrados pelo Hamas no recente ataque à Israel, podem ser justificados ou se eles são errados moralmente e, por isso, se devem ser fortemente censurados. Veja-se que nos atos em tela, o grupo de fato matou civis aleatoriamente e sequestrou pessoas inocentes a fim de serem usadas como meio de troca. Com isso já identificamos dois elementos centrais que caracterizam os atos como terroristas, a saber, eles atacam alvos civis e não apenas alvos militares, causando dano à agentes inocentes, bem como as ações de assassinato e sequestro são aleatórias. O problema moral disto é que este tipo de ato que tem por alvo pessoas inocentes e realizado indiscriminadamente mostra um profundo desprezo à vida humana e à integridade física das pessoas. Note-se que ao não distinguir entre alvos civis e militares, o terrorismo mata pessoas não por elas terem feito algo de errado, mas simplesmente por terem uma certa identidade coletiva, como no caso, a de serem judeus.

Um argumento importante para identificar a imoralidade dos atos terroristas é compreender que desrespeitar certos critérios morais normativos comuns, como os que podemos encontrar na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tais como o respeito à dignidade da vida humana, a liberdade, a integridade e a justiça, entre outros, leva a uma insegurança generalizada. Ainda que as causas políticas possam ser consideradas justas, o método terrorista é moralmente injustificável porque ele desrespeita os valores morais que são centrais para a comunidade política. Isso é o mesmo que dizer que a lógica de que os fins justificariam todos os meios levariam a um desrespeito absoluto aos critérios morais que são centrais em nossa vida comum, o que implicaria na eliminação mesma desses critérios normativos para nossa convivência. Mas isso não seria perigoso? Veja-se que certos países que usaram do terror como método para a conquista do poder, como foi o caso da Rússia no contexto da Revolução de 1917, que se valeram do terrorismo como um recurso indispensável para a derrubada do regime czarista, continuaram se valendo do mesmo método para assegurar o poder. Nesse caso específico que aponto, o terror revolucionário parece que pavimentou o caminho para o terror do Estado totalitário, como o do regime stalinista. Em outras palavras, qual a garantia que temos de que estes grupos que usam do terror como método para alcançar seu objetivo político não continuem operando da mesma forma quando conquistado o poder?

Um segundo argumento para identificar a imoralidade dos atos terroristas é dizer que eles ao não distinguirem entre população civil e alvos militares, consideram que é correto executar deliberadamente pessoas inocentes. Esse argumento tem uma história longa, sendo já identificado nas teorias medievais da guerra justa, como as de Agostinho e Tomás de Aquino, bem como é encontrado na teoria contemporânea da guerra justa de Michael Walzer (2003), que fazem uma importante distinção entre jus ad bellum e jus in bello, isto é, entre a justiça da guerra (das causas da guerra) e os meios corretos usados na guerra. A ideia geral é de que por mais que se aceite que o grupo contestatório/revolucionário está travando uma guerra justa, isto é por razões corretas, como a de lutar contra a opressão de um regime, ele não pode fornecer uma justificativa moral para a escolha deliberada do assassinato, tortura e sequestro sistemático e indiscriminado como meios principais de luta e isso porque se romperia com o comprometimento aos direitos humanos. Note-se que a execução deliberada de inocentes é assassinato e assassinato é um erro moral por não respeitar o direito básico à vida, bem como o sequestro deliberado de inocentes é um erro por não respeitar o direito básico à integridade física e psicológica. Não estou apelando para uma ideia de direitos naturais incontestáveis, mas como justificamos esses direitos intersubjetivamente, como pode-se ver na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que encontram sua justificação pela aceitação dos envolvidos.

Uma forma comum de objetar a esses argumentos é querer justificar os atos terroristas por suas causas, como miséria, desigualdade, opressão. No caso em tela, se justificaria os atos perpetrados pelo Hamas em razão da opressão de Israel aos Palestinos. Em razão da luta pelo Estado Palestino ser uma causa justa, todos os meios empregados para a conquista desse fim seriam igualmente justos. Mas, o problema deste argumento é que ele toma a justiça como critério normativo para julgar o objetivo do ato, mas não para analisar a propriedade dos meios empregados e, assim, ele relativiza o próprio valor moral da justiça. Concordando com Walzer, ao não ter uma preocupação adequada com os meios empregados para a realização do fim político, o terrorismo releva um desprezo injustificável pela vida humana, estando geralmente identificado com a tirania e opressão (WALZER, 2004, p. 81).

É claro que as mesmas regras do jus in bello devem se aplicar à guerra contra o terrorismo, de forma que um Estado ao combater grupos terroristas também deve proteger os inocentes, em que pese estarmos falando de uma guerra assimétrica. E isso porque a regra padrão de uma guerra justa, que exige que os danos colaterais não devem ser desproporcionais ao valor do alvo militar, não é simples de ser aplicada em uma guerra em que os terroristas se escondem entre a população ou utilizam civis como escudos humanos. Nesse caso, penso, a responsabilidade deve recair sobre os próprios terroristas.

Referências

BRASIL. Lei No. 13260 de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis n º 7.960, de 21/12/989, e 12.850, de 2/08/2013, 16/03/2016. Disponível no link.

CNN BRASIL. Polícia Federal prende no RJ terceiro suspeito de ligação com o Hezbollah, CNN Brasil, 13/11/2023.‌

RODIN, David. Terrorism without Intention. Ethics, vol. 114, no. 4, 2004, p. 752-771.

UNITED NATIONS. A More Secure World, Our Shared Responsibility. Report of the Secretary-General’s High-level Panel on Threats, challenges and Change, 2004.

WALZER, Michael. Guerras Justas e Injustas: uma argumentação moral com exemplos históricos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

WALZER, Michael. A Guerra em Debate. Lisboa: Cotovia, 2004.

WILKINSON, Paul. Terrorismo Político. Rio de Janeiro: Artenova, 1976.

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