11 Novembro 2023
A boa notícia é que ainda somos uma Igreja do Vaticano II: graças a Francisco, os esforços de alguns para moldar a Igreja de uma forma anticonciliar ou não conciliar fracassaram. A má notícia é que, em muitas questões, ainda estamos onde estávamos há 60 anos no Vaticano II.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por Commonweal, 08-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A primeira assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade, em outubro, deixou-nos algumas certezas importantes, assim como algumas incertezas.
Uma das certezas é que a sinodalidade não é uma experiência (mesmo que a forma da recente assembleia seja um tanto experimental). De fato, a sinodalidade é uma forma há muito esquecida de a Igreja se reunir, escutar e tomar decisões a serviço do Evangelho. É um momento de ressourcement da tradição da Igreja – uma reconexão com uma parte importante e muito real de seu passado.
Outra certeza é que esta assembleia diferia fundamentalmente das 29 que o Sínodo dos Bispos celebrou desde 1967, após a criação da nova instituição por Paulo VI durante a última sessão do Vaticano II em setembro de 1965. Não apenas porque faz parte do longo “processo sinodal” iniciado em 2021 e que se concluirá com a segunda assembleia em outubro de 2024; ela também é diferente devido à posição que o Sínodo ocupa entre os momentos decisivos da história católica nos últimos dois séculos.
No século XIX, o Vaticano I (1869-1870) reagiu contra a modernidade liberal e declarou o primado e a infalibilidade papais. No século XX, o Vaticano II (1962-1965) equilibrou o “novo” papado com a colegialidade episcopal, e faz isso de forma claramente parlamentar: com debates (disputationes teológicas tanto na sala quanto nas comissões) que levavam à formação de maiorias e minorias, e, no fim, convergindo para uma quase unanimidade nas votações dos documentos finais.
O atual Sínodo não é como o Vaticano I nem como o Vaticano II. Por um lado, ele não tem a mesma autoridade. Mas é o que há de mais próximo desses concílios e é expressivo da dimensão global da Igreja com toda sua diversidade e contrastes – o verdadeiro desafio do século XXI. Embora os bispos e os superiores das ordens religiosas estivessem representados, os outros membros da Igreja também. Assim, o catolicismo global complementou o primado papal do século XIX e a colegialidade episcopal do século XX com a sinodalidade eclesial.
Em vez de utilizar o método da disputatio, adotou a “conversa espiritual” como forma de apreender o consensus fidelium. Mas quem quer que seja que tome a decisão sobre algumas das questões em jogo – o Sínodo ou o papa – nunca haverá um consenso de 100%. Haverá uma maioria e uma minoria, assim como quando o Vaticano II decidiu rejeitar o antissemitismo e restaurar o diaconato permanente.
Este Sínodo não difere apenas institucionalmente. Também expressa um conceito de sinodalidade que difere das fases anteriores (especialmente na communio eclesiologia pós-1985), quando a sinodalidade era vista como uma dimensão da vida das Igrejas locais e das relações entre elas. Aconteça o que acontecer ao nome daquilo que foi criado em 1965 como “Sínodo dos Bispos”, este já não é o Sínodo de bispos, mas sim um Sínodo com bispos, no qual os bispos (especialmente o bispo de Roma) têm um papel particular. Já não é mais exatamente a mesma entidade criada por Paulo VI, a menos que Francisco ou seu sucessor mudem de ideia e voltemos a um órgão estritamente episcopal.
É também o Sínodo de uma Igreja que reconhece que está mais dividida do que no Vaticano II. Como escreveu recentemente o teólogo jesuíta franco-alemão Christoph Theobald (um dos peritos teológicos da assembleia) em seu livro – cujo título sugere que este Sínodo é como um concílio que não consegue dizer o seu nome – a sinodalidade é o reconhecimento de que a pacificação é a condição sine qua non para a Igreja hoje.
A pacificação requer que a Igreja reconheça a dor sofrida por seus membros marginalizados – portanto, uma estrutura orientada a um modo de escuta, e não de debate. É apenas no sentido da “pacificação” que a assembleia pode ser vista como uma resposta à crise dos abusos; não houve nenhuma revolução institucional ou doutrinária.
No entanto, a pauta está notavelmente próxima daquilo (e atualizada em relação àquilo) que o cardeal jesuíta Carlo Maria Martini, biblista e arcebispo de Milão (1980-2002), articulou em seu discurso de outubro de 1999 no Sínodo para a Europa:
“Que o festivo retorno dos discípulos de Emaús a Jerusalém para se encontrar com os apóstolos torne-se um estímulo para repetir, de vez em quando, ao longo do século que se abre, uma experiência de debate universal entre os bispos que sirva para desatar alguns daqueles nós disciplinares e doutrinais que reaparecem periodicamente como pontos críticos no caminho das Igrejas europeias e não só europeias.”
(Os líderes do Sínodo daquela época não gostaram da sugestão de Martini de discutir “nós disciplinares e doutrinais”, como o papel das mulheres e o magistério sobre a sexualidade.)
A assembleia deste ano também foi diferente pela sua estrutura: mais do que uma assembleia produtora de documentos, ela foi preparada e vivida como um retiro, aberto magistralmente pelas seis reflexões do Pe. Timothy Radcliffe, que, junto com a Madre Maria Grazia Angelini, é “conselheiro espiritual do Sínodo”.
O acréscimo de membros não episcopais e não clericais da Igreja tornou a reunião mais complexa do que o binário “clérigo ou não clérigo” ou “homem ou mulher”. Entre os membros clericais do sexo masculino e os membros não clericais e não masculinos do Sínodo, há membros de instituições eclesiástico-burocráticas, de ação pastoral, de movimentos eclesiais e sociais, do Povo de Deus e teólogos.
Chega de certezas. Precisamos de encontrar alguma clareza entre agora e outubro de 2024. O relatório de síntese final desta assembleia não deve ser lido de uma forma fundamentalista, capítulos e versículos. Isso porque a dinâmica da relação entre o Sínodo e o Papa Francisco (e seu novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o cardeal Fernández) é mais importante para entender o que pode acontecer com a Igreja em relação, por exemplo, ao papel da mulheres e aos católicos LGBT.
As respostas pré-sinodais às dubia e a audiência de Francisco durante o Sínodo à Ir. Jeannine Gramick podem ser mais indicativas do que o documento de síntese de 28 de outubro. Ao mesmo tempo, tanto durante o Sínodo quanto imediatamente após a conclusão da assembleia, o papa repetiu mais uma vez a teoria do “princípio mariano-petrino” sobre o papel da mulher na Igreja.
O papel da teologia no processo sinodal daqui para frente será importante. Na história dos concílios e dos sínodos, os teólogos geralmente não tinham direito a voto, mas tinham voz, inclusive em Trento, no Vaticano I e no Vaticano II. Os teólogos presentes no Sínodo como “peritos e facilitadores” eram mulheres e homens amplamente respeitados por aquilo que sabem sobre a sinodalidade. Mas, exceto pela pequena lista de reflexões teológicas publicadas, não está claro até que ponto eles tinham voz.
Ouvi de vários deles a respeito do papel marginal da teologia no processo, antes, durante e depois do Sínodo. Alguns dos presentes divulgaram uma declaração sobre suas preocupações, embora em linguagem diplomática, após a assembleia. “Para dizer a verdade, é preciso notar também que o nível da reflexão teológica e da profundidade de análise das situações concretas de algumas intervenções não eram muito brilhantes”, escreveu o eclesiólogo italiano Pe. Severino Dianich. “Em particular, fiquei impressionado com a dificuldade de muitos em encarar e tirar as consequências do fenômeno do abandono da fé na Europa e na América do Norte por parte de um grande número de batizados.”
O Pe. Piero Coda, secretário-geral da Comissão Teológica Internacional e reitor do Instituto Universitário Sophia (do Movimento dos Focolares), escreveu que é necessário “rever, também levando isso em conta, a configuração e a prática do método da ‘conversa no Espírito’, para que preveja uma oportuna e incisiva conjugação entre a dimensão espiritual-existencial e a dimensão intelectual-prática, em conformidade com a vocação de inteligência da fé, que é própria da teologia”.
O problema para a teologia é como ancorar a sinodalidade na tradição teológica e canônica. Aqui, ela está em desvantagem em relação a outras fontes e linguagens, funcionando como uma espécie de parceiro júnior da sociologia, da espiritualidade, da pastoral, da teoria organizacional e dos estudos de liderança.
Outra incerteza diz respeito ao modelo institucional do Sínodo e a seu efeito sobre outras instituições colegiais e sinodais (conferências episcopais nacionais, concílios plenários) e sobre sua relação com a Cúria. O papel da Cúria não é tão central nos sínodos de Francisco quanto foi durante os papados de João Paulo II e de Bento XVI, mas isso poderá mudar se o novo Sínodo não encontrar uma estabilidade institucional.
Mais fundamental é saber se a sinodalidade é uma forma de mudar os sistemas de governo da Igreja em todos os níveis (universal, local e intermediário) ou, em vez disso, é uma forma de a Igreja se tornar mais pastoral. Desde 2015, vimos a teologia da sinodalidade de Francisco evoluir para um conceito mais pastoral e espiritual e menos institucional.
A boa notícia é que ainda somos uma Igreja do Vaticano II: graças a Francisco, os esforços de alguns para moldar a Igreja de uma forma anticonciliar ou não conciliar fracassaram. A má notícia é que, em muitas questões, ainda estamos onde estávamos há 60 anos no Vaticano II. Muito depende de como os debates da primeira assembleia continuarão entre agora e outubro de 2024, tanto entre os membros do Sínodo quanto na Igreja como um todo.
Embora o Sínodo sobre a Sinodalidade não seja um concílio como o Vaticano II, existem algumas semelhanças. Após o fim da primeira sessão do Vaticano II, nas intersessão de 1963, houve uma “segunda preparação” dos esboços dos documentos do Concílio. O “Relatório de Síntese” da primeira assembleia deste Sínodo é como um segundo Instrumentum laboris, uma nova preparação do Sínodo. Mas será preciso mais contribuições teológicas, e isso deve começar agora.
O Sínodo precisará se conectar mais com os membros da Igreja que não estavam fisicamente presentes e que não tinham contato com os meios de comunicação em Roma para lhes contar o que estava acontecendo. A política de blecaute midiático imposta por Francisco impediu os católicos de entenderem os procedimentos e a razão pela qual eles eram importantes. A conversa deve ultrapassar as paredes da sala do Sínodo e não ser deixada àqueles membros que têm uma presença significativa na mídia ou muitos seguidores nas redes sociais digitais.
Quase todas as Igrejas parecem estar vivendo uma crise de governança, com cismas declarados ou de facto nas Igrejas ortodoxas e nas Igrejas da Reforma Protestante, e até mesmo em organizações ecumênicas. O teólogo ortodoxo russo e polímata Pavel Florensky, em seu livro “O pilar e as bases da verdade”, opôs o modelo “eclesiástico-jurídico” do catolicismo (no qual o caráter hierárquico desempenha esse papel definidor) ao modelo “eclesiástico-científico” do protestantismo (em que uma fórmula confessional constitui o critério decisivo) e o sentido ortodoxo da Igreja (em que a experiência de ser Igreja precede sua definição). Seu amigo e colega Sergej Bulgakov, no ensaio “Ortodoxia: ensaio sobre a doutrina da Igreja”, descreveu o catolicismo como um “positivismo eclesial”, colocando-o contra a conciliaridade-colegialidade da Ortodoxia, que afirma a precedência e a preexistência da comunidade e da experiência religiosa em relação à dimensão institucional. Na nossa cultura pós-institucional, o catolicismo está tentando agora encontrar sua própria sinodalidade – aprendendo com outros modelos, mas também tentando diferenciar-se deles.
O Sínodo é importante por razões que vão muito além das nossas rixas intracatólicas. As disrupções e a instabilidade globais, das Américas à Ásia, com as guerras na Ucrânia e em Israel, refletem tensões não apenas entre diferentes religiões, mas também a polarização dentro de tradições religiosas individuais.
Pensemos nessa “pacificação sinodal” como algo essencial para o serviço da Igreja ao Evangelho e à única família humana. Como disse o Papa Francisco na conclusão de seu discurso fundacional sobre a sinodalidade em 2015, “uma Igreja sinodal é como um estandarte erguido entre as nações”, uma expressão do “sonho de que a redescoberta da dignidade inviolável dos povos e da função de serviço da autoridade também poderão ajudar a sociedade civil a se edificar na justiça e na fraternidade”.
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A jornada sinodal continua. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU