31 Agosto 2023
"A aceitação do ingresso de Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã representa, em si, um feito extraordinário. Mas, como todo feito extraordinário, eivado de consequências insondáveis".
O comentário é de Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas” (Brazil Publishing, 2019).
Os feitos do BRICS em Joanesburgo na semana passada foram recebidos com entusiasmo por toda opinião pública de linhagem progressista no mundo inteiro.
Um estranho ar de triunfalismo tomou conta do noticiário. Impressões contrárias ou polêmicas, como as do economista Jim O’Neill, criador do acrônimo BRICS, em 2001, têm sido estrategicamente silenciadas, menosprezadas e ridicularizadas. Uma quase ditadura de pensamento único foi, assim, instaurada. Como bem sabido, tudo que cheira à ausência de possibilidade de diálogo denota mau-agouro. Especialmente porque qualquer análise verdadeiramente honesta e sem parti pris precisa reconhecer que ninguém consegue mensurar o destino do BRICS, essencialmente porque ninguém consegue dimensionar os próximos movimentos da tensão russo-ucraniana nem as suas implicações ao encontro da tensão Estados Unidos-China. Ou seja, ninguém consegue prospectar com baixos níveis de erro a realidade mundial e as conformações regionais no curto nem no médio prazo.
De volta ao essencial, é preciso, de início, reconhecer que o retorno do presidente Lula da Silva ao poder representou, claramente, a reabilitação da possibilidade de deliberação no interior da agremiação BRICS. Sem exageros, o Brazil is back pode ser entendido como BRICS is back. Com a presença positiva do Brasil, o grupo avivou o frescor de suas razões originais de existência que foram matizadas pela crise financeira mundial de 2008.
A crise financeira mundial de 2008 permitiu a precipitação da politização dos BRICS. No G20 de Washington, em dezembro de 2008, o protagonismo dos países do grupo, notadamente do Brasil e da China, foi inquestionável. A liderança do presidente Lula da Silva, reeleito em 2006 e desvencilhado dos respingos do escândalo do mensalão de 2005, posicionava o Brasil como um verdadeiro “organizador das periferias do mundo”.
A China, com a manutenção de seu estrondoso crescimento econômico, seguia comprando a dívida soberana de países indistintamente por todos os continentes. A sua penetração na Europa e nos Estados Unidos era mascarada pela sua atuação inquestionavelmente predatória na África e na América Latina. Mas a conjunção do “B” e do “C” do BRICS projetava que o conjunto dos países do outrora de “terceiro mundo”, depois “subdesenvolvidos”, “não alinhados”, do “sul” e do G77, em seguida “emerging markets” e “países-baleia”, na terminologia do lendário George Kennan, estavam às voltas de rapidamente, somados, aquinhoarem um PIB maior que o dos outrora países de “primeiro mundo”, “ricos” e sempre ricos do “norte”. Com tudo isso, a partir de 2009, o grupo começou a se vertebralizar. A sua primeira cúpula em Ecaterimburgo, na Rússia, em 2009, foi a mostra eloquente desse processo.
Mas a crise financeira mundial de 2008 não tardaria a alcançar os países BRICS. A partir de 2011-2012, ela começou a ser notada. Desde então, teve início um forte recuo de todos os resultados econômicos dos países do grupo.
Se isso não bastasse, no caso do Brasil, as tormentas das noites de junho de 2013 causaram uma imensa entropia que continua canibalizando praticamente todos os setores da sociedade brasileira até hoje. No caso da Rússia, as escaramuças ucraniano-ocidentais de 2014 foram pedras de toque para a situação verdadeiramente imprevisível da nova fase da tensão iniciada em 2022.
Numa perspectiva mais dilatada, a presidência de Donald J. Trump produziu diversos efeitos perturbadores sobre a realidade do BRICS que ainda precisam ser melhor analisados e dimensionados. A presidência de Jair Messias Bolsonaro, por sua vez, simplesmente retirou o Brasil de seu Eldorado. As complicações políticas na África do Sul justificariam a sua ejeção do grupo. A intempestividade do líder da Índia também tem tornado o convívio turbulento no interior do grupo.
Ou seja, entre 2011 e 2022, a embarcação BRICS enfrentou tormentas consideráveis e quase foi a pique em vários momentos.
O Brasil, por exemplo, foi posto de fora de decisões em diversas ocasiões. Todos viram. Ninguém se esqueceu.
A reabilitação do interesse do Brasil pelo BRICS com o retorno do presidente Lula da Silva ao poder representou, repita-se, um reavivamento do grupo.
Desde o início de sua campanha eleitoral que o presidente Lula da Silva projetou o BRICS como uma de suas principais plataformas de atuação exterior. Nestes seus oito meses de seu terceiro mandato, essa projeção vem se concretizando. Quase todas as passarelas históricas de atuação da política externa brasileira foram, agora, reativadas sob a égide da presença do Brasil no BRICS. Mesmo nos países e regiões que o presidente ainda não visitou, a mensagem de “normalização diplomática” foi enviada fortemente.
Por tudo isso, o encontro do BRICS da semana passada – seguido do tour africano do presidente Lula da Silva – era um momento muito esperado e valorizado.
Muitos temas foram preparados para o encontro. Mas, no âmbito majoritariamente presidencial, a criação de uma moeda BRICS e a expansão dos participantes do grupo foram as deliberações mais aguardadas.
Mesmo que gente de muito relevo, como o amigo J. Carlos de Assis, defenda a criação da moeda BRICS, existem ressalvas que precisam ser sempre encetadas. O euro representa o exemplo melhor acabado de inspiração para a moeda BRICS. Ele foi produto da longa aventura europeia. O presidente Nicolas Sarkozy, no momento mais agudo crise financeira de 2008 sobre a realidade europeia, reforçou que “l’Europe c’est l’euro et l’euro c’est la paix” [a Europa é o euro e o euro é a paz]. Ou seja, a supressão coletiva de parcelas de soberania entre os países europeus a partir de Maastricht para a sua fusão monetária tinha por objetivo a manutenção da recordação e a consequente negação da reprodução de um novo chão de ruínas no espaço europeu como se vivenciou entre 1914 e 1945. “A Europa é o euro e o euro é a paz”, mesmo quase ninguém acredite verdadeiramente nisso hoje, representa o leitmotiv da moeda euro. É difícil de se encontrar razão similar para a harmonização de interesses políticos e monetários no interior do BRICS.
Mas existem outras indeterminações, sutis e em distopia, que parecem inviabilizar paralelos mais profundos entre a moeda euro e uma possível moeda BRICS.
Embora o Ocidente e todas as suas instituições – inclusive as saídas de Bretton Woods – estejam em evidente saturação e decomposição, parece prematura a saudação de seu féretro. As notícias do fim do Ocidente ou da “ordem internacional” saída de 1945 figuram como demasiadamente exageradas. E sobre esse exagero, o presidente Mikhail Gorbatchov, antes de morrer em Moscou, no dia 30-08-2022, há exatos doze meses, chamou, reiteradamente, a atenção.
Esse último grande líder soviético lembrou às autoridades internacionais de que, com as novas intempéries mundiais suscitadas pela situação russo-ucraniana, “vivemos o momento mais perigoso da história da humanidade”. Não necessariamente uma “guerra de civilizações” do Ocidente ante a Eurásia e vice-versa. Mas uma miopia sobre a realidade mundial que pode causar tragédias jamais vistas. Ocidente e suas instituições, em sua impressão, estão, sim, em grande parte apodrecidos, anacrônicos, démodé e inconformes. Mas não parece ser o caso de se seguir cutucando-os com varas curtas. O peso do Ocidente e de suas instituições ainda pesa e não deve ser subestimado, na conclusão do presidente soviético.
Esse seu bemol mereceria maior atenção que essa que vem recebendo até agora. Olhando bem de perto, da mesma maneira que o presidente Putin tem afirmado que não haveria sentido “um mundo sem a Rússia” e o presidente Zelensky vem indicando que os ucranianos estão dispostos a lutar “até o seu último homem”, os europeus e norte-americanos, fiadores do Ocidente e de suas instituições, estão, claramente, dispostos a fazer o mesmo para não sucumbia à irrelevância.
Uma rápida olhadela sobre a distribuição de capacidades bélicas pelo planeta, como sugeria o presidente Gorbatchov, pode deixar essa discussão um pouco mais concreta e realista.
Quem tiver a curiosidade de acompanhar as atualizações dos dados sobre gastos militares mundiais, sobre o SIPRI Military Expenditure Database, do Stockholm International Peace Research Institute, vai notar que o mundo inteiro gasta, atualmente, 2,2 trilhões de dólares nesse expediente. Desse montante, os Estados Unidos dispensaram, em 2022, 877 bilhões de dólares, expressando 39% do total. A China, em segunda colocação, figura com 13% do total com um gasto de 292 bilhões. Logo em seguida vem a Rússia com um dispêndio de 86,4 bilhões, 3,9% do total.
Parte desse imenso arsenal militar norte-americano serve para garantir a manutenção das instituições saídas do chão de ruínas da Segunda Guerra Mundial, notadamente aquelas forjadas em Bretton Woods. Ninguém pode ter a ilusão de que os Estados Unidos abdicarão facilmente de sua supremacia monetária mundial. Continua gigantesca a capacidade norte-americana de coerção a partir de sua moeda. A extraterritorialidade do dólar continua arraigada em todas as economias do planeta. Inclusive na russa e na chinesa. Goste-se ou não, continua imensa a relevância do dólar. Talvez, por isso, o debate sobre a moeda do BRICS tenha sido claramente apequenado no transcurso do encontro de Joanesburgo em favor do outro grande tema em avaliação que era a expansão dos membros do grupo.
A aceitação do ingresso de Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã representa, em si, um feito extraordinário. Mas, como todo feito extraordinário, eivado de consequências insondáveis.
O lado não tão claramente positivo da ampliação do grupo diz respeito à agudização da disformia do BRICS. Pouco a pouco, a aglomeração vai ganhando as dimensões de um ornitorrinco.
É verdade que sempre foi precária a harmonia entre os países do BRICS. Com as intempéries de 2011 a 2022, os interesses de todos ficaram ainda mais irreconhecíveis.
Mesmo diante do avivamento da plataforma, com o retorno do presidente Lula da Silva, os países envolvidos dormitam juntos, mas sonham sonhos diferentes. Muito diferentes. Cada vez mais diferentes.
Quem alguma dúvida sobre isso tiver, que simplesmente revisite os principais discursos e os principais documentos emitidos no encontro da semana passada em Joanesburgo.
Olhando em perspectiva, as manifestações na África do Sul foram as mais frias e protocolares desde a formalização do BRICS em 2009. Todos os chefes de estado presentes ou representados pareciam, na semana passada, estar num jogo de espelhos borgiano. Repisando pastos já muito pisados. Retomando temas já demasiados cansados. E intentado a criação de sintonia jamais alcançada.
Mais membros, menos sintonia.
De toda sorte, daqui até o ingresso dos novos países no grupo em 2024, muitas águas vão lavar as ruas de Brasília, Moscou, Nova Deli, Pequim, Joanesburgo, Buenos Aires, Cairo, Addis Abeba, Teerã, Riad e Abu Dhabi.
Sobre o assunto, o chanceler brasileiro foi instado a demonstrar que Brasília não tem nada a perder, nem em presença tampouco em influência, com a expansão das capitais representadas. Entretanto, ele e todos os envolvidos sabem muito bem que os possíveis ganhos não estão claros nem garantidos.
A aceitação de todos os novos membros foi unânime. Mas a motivação dos apadrinhamentos mereceria uma maior atenção.
A Argentina recebeu apoio inquestionável do Brasil. Ainda não se sabe se a demanda foi do presidente Alberto Fernández ou do convencimento veio do presidente Lula da Silva. O Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos foram incentivados pela interação sino-russa. E aqui tudo fica muito mais complexo.
Todas as recentes movimentações geoeconômicas na Eurásia envolveram todos esses países – Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Rússia e China. A resiliência da economia russa ante as catadupas de embargos e sanções vindas da Europa e dos Estados Unidos se deveu, em grande medida, a eles. Para ficar num singelo, mas expressivo exemplo, talvez seja o caso de se mencionar os novos arranjos mundiais da comercialização de insumos energéticos proporcionados pela sintonia desses países com a China e com a Rússia.
De volta ao passado, a Arábia Saudita iniciou a sua saga até a condição de principal representa dos países produtores de petróleo com os conhecidos acordos entre a família Saud e o presidente Roosevelt nos anos de 1930. Afiançados na promessa de proteção norte-americana incondicional, os sauditas forneceriam o seu petróleo e derivados à gestão dos Estados Unidos. Esse pacto de cavalheiros levou os negociadores de Bretton Woods a definir a moeda norte-americana, o dólar, como a moeda exclusiva para a comercialização mundial da commodity energética. Os choques do petróleo dos anos de 1970 e todas as suas decorrências começaram a arranhar esse pacto. Mas no âmbito da nova tensão russo-ucraniana, a partir de 2022, ocorreu o inimaginável: os sauditas profanaram os acordos anteriores e deram anuência ao fim do monopólio do dólar sobre a comercialização do petróleo. Com isso, os russos puderam negociar o seu principal produto em rublo, o que tem garantido muito da saúde de sua economia e do aprofundamento de sua relação com os países do Oriente Médio.
Ou seja, sinais dos tempos.
A aceitação do Egito e da Etiópia indica ainda mais a incidência desses sinais dos tempos. A África do Sul teve papel importante no processo. Mas a China e a Rússia também. Olhando de perto, a aceitação do Egito no BRICS poderá minorar a influência dos Estados Unidos sobre o Magreb. No caso da Etiópia, poderá vir a reforçar a visibilidade da União Africana cuja sede administrativa continua sendo na capital etíope, Addis Abeba.
Analisando a expansão do BRICS por esses prismas, vai ficando evidente a geometria variável dos interesses aportados. Caso tudo se efetive a partir de 2024, um evidente arejamento geoestratégico tende a tomar conta das deliberações do grupo.
Contudo, ainda é cedo para triunfalismos. O jogo nem começou e nenhum resultado está garantido. Nesse sentido, com todo o respeito que o notável professor José Luís Fiori, mestre de todos nós, merece, é pouco provável que o “novo BRICS” tenha, de verdade, explodido a “ordem internacional” (vide Novo BRICS explode a ordem internacional - A Terra é Redonda). Ele, mais que ninguém, sabe que resta muito centeio a ser apanhado nesse campo em flor. Conseguintemente, mais que gestos triunfalistas, o “novo BRICS” precisa de prudência para não se revelar um gigante de pés de barro.
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BRICS: pés de barro. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU