04 Julho 2023
"Caso a Ucrânia ingresse nas instituições europeias antes do fim do conflito, a tensão russo-ucraniana pode se transformar num conflito verdadeiramente mundial amparado no artigo 5º do Regimento da Otan. Parece evidente que Estados Unidos e, especialmente, China não desejam nada disso. Reino Unido e França desejam menos ainda".
O comentário é de Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
A tensão russo-ucraniana continua intensa e sem horizontes de desfecho harmonioso. O “compromisso suportável”, sugerido pelo alemão Jürgen Habermas, vai se afirmando insuportável para todos os envolvidos. Russos e ucranianos prometeram lutar “até o último homem” para garantir a soberania multidimensional de sua integridade territorial, cultural e moral. Europeus e norte-americanos começam a, majoritariamente, hesitar sobre a incondicionalidade de seu apoio à Ucrânia. Países não-ocidentais vão ampliando a sua convicção de neutralidade num conflito que acreditam não lhes competir. A opinião pública em toda parte, por razões diversas, condena o conflito. Ninguém está disposto seguir guerreando contra moinhos de vento. Imaginários ou não.
Para o ano de 2024, o Fundo Monetário Internacional revisou para baixo a projeção de crescimento da Rússia de 2,1% para 1,3%. Quem, portanto, jogava água no moinho do caos em 2022, acreditando que sanções e embargos conduziriam a economia russa à bancarrota, precisa, agora, mesmo com essa revisão, reconhecer, essencialmente, a resiliência econômica desse país de mujiques. A razão dessa resiliência pode ser mobilizada em diversas variáveis de conjuntura e estrutura do mundo anterior ao 24 de fevereiro de 2022. Mas o fundamento de tudo parece estar contido na evidência da emergência de um mundo pós-ocidental.
Europeus e norte-americanos custam a reconhecer – e muitos não reconhecerão jamais – o fim do monopólio ocidental sobre os negócios do mundo. Os cinco séculos de ocidentalização do mundo avançam implacavelmente para o seu fim. Dados econômicos demonstram. Feitos diplomáticos, evidenciam.
O 11 de setembro de 2001 representou o simbolismo da revanche dos povos retirados da História antes e depois do “fim da história”. A crise financeira mundial de 2008 revelou a força dos países sem “brancos de olhos azuis”. A eleição de verdadeiros bonifrates para cargos supremos em países relevantes como Estados Unidos e Brasil anunciou a gravidade do nível de entropia das democracias liberais, núcleo moral do poderio ocidental. Os desarranjos políticos e sociais no interior dos países europeus ao longo dos anos 2000 e 2010 indicaram a fragilidade de regimes políticos tangidos por representação democrática. As democracias parecem que começaram a morrer onde nasceram. E isso sem nenhum exagero. A consumação do Brexit trouxe à tona a desilusão com a possível “paz perpétua” tangida pelo Direito e pela razão. O conflito ucraniano, por sua vez, simplesmente reabilita e intensifica todos os demônios contidos em todas essas situações.
Mas o infortúnio vai ancorado mais longo.
O chão de ruínas europeu em 1945 forjou a construção de alianças concretas para a inibição de extremismos feito os vivenciados entre 1871 e 1945. Com ele, o never more virou mantra de todos os atores e de todas as instituições internacionais. Ninguém queria voltar a vivenciar Auschwitz ou a Batalha de la Somme. Mas os seus principais fiadores da harmonia europeia após 1945 sempre foram corpos ausentes. Especial e majoritariamente a União Soviética do ditador Stálin, por um lado, e os Estados Unidos do presidente Roosevelt, por outro. Aliados nesse propósito, soviéticos e norte-americanos seguiram oponentes em sua tensão Leste-Oeste, inaugurada em 1917, e em sua Guerra Fria, materializada na deliberação sobre o destino da Alemanha após 1945.
A aceleração da dissolução do bloco soviético em 1989-1991 pôs fim à guerra fria. Tanto que o muro de Berlim foi simbolicamente aberto a Alemanha voltou a se unificar. Entretanto, a tensão Leste-Oeste jamais se arrefeceu. Talvez, em contrário, tenha se amplificado.
Foi ilusão acreditar na “vitória do bem contra o mal” com a capitulação do camarada Gorbachev e foi arrogância incensar o triunfalismo norte-americano, europeu e ocidental depois do “fim da história”. Europeus, norte-americanos e aliados fizeram – e fazem isso – desde então sem notar a indigência intelectual e a gravidade moral de suas ações.
Estrategistas norte-americanos e europeus, veteranos da guerra fria e marinados no realismo old school tipo Henry Kissinger jamais alimentaram essa ilusão. Desde a véspera de novembro de 1989 que eles advogavam pela integração da Rússia ao meio internacional de maneira harmônica, respeitosa e responsável. Todos percebiam que o triunfalismo do lado e cá era recebido como humilhação do lado de lá. E não precisa se conhecer muito da vida para se saber que a humilhação é péssima conselheira.
A longa duração da nova fase do conflito russo-ucraniano inaugurado no 24 de fevereiro de 2022 decorre, portanto, da longa duração de arrogância, triunfalismos, ilusões, percepções de humilhação e humilhação efetiva.
Malgrado mundiais as externalidades negativas do conflito, é na Europa que o problema se manifesta em sua dimensão mais visceral.
Pela primeira vez na história do continente que as janelas da Rússia se fecham para a Europa e as portas da Europa se fecham para a Rússia. Como consequência, o centro de gravidade do poder europeu deixou Paris, Londres, Berlim para se instalar, novamente, em Washington, a Otan foi reanimada de sua “morte cerebral” e a segurança do continente voltou a níveis severos de indeterminação.
Segue incerto o desfecho da situação, mas segue clara a intenção de ampliação da agremiação europeia. Ucrânia e Moldávia foram alçados ao estatuto de candidatos ao ingresso na União. O avançar do conflito dissipou todas as resistências, especialmente França e Alemanha. O debate está lançado.
Independente do desfecho do conflito, os ucranianos vão precisar de um verdadeiro Plano Marshall para reconstruir seu país. É ilusão imaginar que esse apoio possa vir de outro lugar que não Europa e Estados Unidos. Mas, ao mesmo tempo, o ingresso da Ucrânia na União Europeia impõe ao menos reflexões sensíveis para Washington e para Bruxelas.
Caso a Ucrânia ingresse nas instituições europeias antes do fim do conflito, a tensão russo-ucraniana pode se transformar num conflito verdadeiramente mundial amparado no artigo 5º do Regimento da Otan. Parece evidente que Estados Unidos e, especialmente, China não desejam nada disso. Reino Unido e França desejam menos ainda.
Por outro lado, vale sempre se lembrar que a Ucrânia possui, atualmente, 41 milhões de hectares de terras férteis e agriculturáveis ao passo que França e Alemanha somados possuem 43. Como equacionar essas potencialidades e seus imensos interesses? Outra PAC (Política Agrícola Comum) vai ser implementada? Quais as consequências disso para a economia mundial?
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Indeterminações. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU