22 Agosto 2023
"Como a cooperação e a transferência de tecnologia podem apoiar a reindustrialização de países como o Brasil e a África do Sul, especialmente em setores estratégicos como biotecnologia, tecnologia da informação, inteligência artificial e energias renováveis, ao mesmo tempo em que combatem a pobreza e a desigualdade e atendem a outras demandas básicas dos povos do Sul?", escreve Vijay Prashad, diretor do Tricontinental: Institute for Social Research e editor chefe da LeftWord Books, chefe de redação do Globetrotter, um projeto do Independent Media Institute e escreve regularmente para The Hindu, Frontline, Newsclick e BirGün, em artigo publicado por Tricontinental e reproduzido por Outras Palavras, 21-08-2023.
Em 2003, altos funcionários do Brasil, da Índia e da África do Sul reuniram-se no México para discutir seus interesses mútuos no comércio de medicamentos. A Índia era e é um dos maiores produtores mundiais de vários medicamentos, incluindo aqueles usados para tratar o HIV-Aids; o Brasil e a África do Sul precisavam de medicamentos a preços acessíveis para pacientes com HIV, bem como para uma série de outras doenças tratáveis.
No entanto, esses três países foram impedidos de negociar livremente entre si devido às rígidas leis de propriedade intelectual estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio. Apenas alguns meses antes da reunião, os três países formaram um grupo, conhecido como IBAS, para discutir e esclarecer questões de propriedade intelectual e comércio, mas também para confrontar os países do Norte Global por sua exigência assimétrica de que as nações mais pobres acabem com seus subsídios agrícolas. A noção de cooperação Sul-Sul deu um contorno a essas discussões.
O interesse na cooperação Sul-Sul remonta à década de 1940, quando o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas estabeleceu seu primeiro programa de assistência técnica para auxiliar o comércio entre os novos Estados pós-coloniais na África, Ásia e América Latina. Seis décadas depois, tal como na formação do IBAS, esse espírito foi comemorado pelo Dia das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul em 19 de dezembro de 2004.
Nessa época, a ONU também criou a Unidade Especial para a Cooperação Sul-Sul (dez anos depois, em 2013, essa instituição foi renomeada como Escritório das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul), que se baseou no acordo sobre o Sistema Global de Preferências Comerciais entre Países em Desenvolvimento. Em 2023, esse pacto inclui 42 Estados-membros da África, Ásia e América Latina, que abrigam coletivamente quatro bilhões de pessoas e têm um mercado combinado de 16 trilhões de dólares (cerca de 20% das importações globais de mercadorias). É importante registrar que essa agenda de longa data para aumentar o comércio entre os países do Sul forma a pré-história do Brics, criado em 2009 e atualmente composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Todo o projeto do Brics está centrado na questão de saber se os países que estão na extremidade inferior do sistema neocolonial podem sair dele por meio de comércio e cooperação mútuos ou se os países maiores (inclusive os do Brics) inevitavelmente desfrutarão de assimetrias de poder e escala contra os países menores e, portanto, reproduzirão as desigualdades em vez de transcendê-las. Nosso mais recente dossiê sobre a teoria da dependência marxista questiona qualquer projeto capitalista no Sul que acredite que possa, de alguma forma, libertar-se do sistema neocolonial importando dívidas e exportando commodities baratas. Apesar das limitações do projeto Brics, está claro que o aumento do comércio Sul-Sul e o desdobramento de instituições do Sul (para o financiamento do desenvolvimento, por exemplo) desafiam o sistema neocolonial, mesmo que não o transcenda imediatamente. No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, temos acompanhado de perto os desenvolvimentos e as contradições do projeto Brics desde o seu início e continuamos a fazê-lo.
No final deste mês, a 15ª cúpula do Brics será realizada em Joanesburgo, África do Sul, de 22 a 24 de agosto. Essa reunião ocorre no momento em que dois dos membros do grupo, a Rússia e a China, estão enfrentando uma Nova Guerra Fria com os Estados Unidos e seus aliados, enquanto os outros membros enfrentam imensa pressão para serem arrastados para esse conflito. […]
A 15ª Cúpula do BRICS (22 a 24 de agosto) em Joanesburgo, África do Sul, tem o potencial de fazer história. Os chefes de Estado do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul se reunirão para seu primeiro encontro cara a cara desde a cúpula de 2019 em Brasília, Brasil. A reunião ocorre dezoito meses após o início do conflito militar na Ucrânia, que não apenas elevou as tensões entre as potências ocidentais lideradas pelos EUA e a Rússia a um nível nunca visto desde a Guerra Fria, mas também acentuou as diferenças entre o Norte e o Sul Global.
Há rachaduras crescentes na ordem internacional unipolar imposta por Washington e Bruxelas ao resto do mundo por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), do sistema financeiro internacional, do controle dos fluxos de informação (tanto nas redes tradicionais quanto nas redes sociais) e do uso indiscriminado de sanções unilaterais contra um número cada vez maior de países. Como recentemente afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, “o período pós-Guerra Fria chegou ao fim. Está em andamento uma transição para uma nova ordem global”.
Nesse contexto global, três dos debates mais importantes a serem monitorados na cúpula de Joanesburgo são:
(1) a possível expansão do número de membros do Brics;
(2) a expansão do número de membros de seu Novo Banco de Desenvolvimento (NDB);
(3) o papel do NDB na criação de alternativas ao uso do dólar americano. De acordo com Anil Sooklal, embaixador da África do Sul no Brics, 22 países já solicitaram formalmente o desejo de se somar ao bloco (incluindo Arábia Saudita, Argentina, Argélia, México e Indonésia) e mais duas dúzias manifestaram interesse. Mesmo com inúmeros desafios a serem superados, os Brics agora são vistos como uma importante força motriz da economia mundial e, em particular, dos desenvolvimentos econômicos em todo o Sul Global.
Em meados da última década, os Brics enfrentaram vários problemas. Com a eleição do primeiro-ministro Narendra Modi na Índia (2014) e o golpe contra a presidente Dilma Rousseff no Brasil (2016), dois dos países-membros do grupo passaram a ser chefiados por governos de direita mais favoráveis a Washington. Tanto a Índia quanto o Brasil recuaram em sua participação no grupo. A ausência de facto do Brasil, que desde o início foi uma das principais forças motrizes por trás dos Brics, representou uma perda significativa para a consolidação do grupo.
Esses acontecimentos prejudicaram e dificultaram o progresso do NDB e do Acordo de Reserva Contingente (CRA), estabelecido em 2015, que representou a maior conquista institucional do Brics até o momento. Embora o NDB tenha feito algum progresso, ele ficou aquém de seus objetivos originais. Até o momento, o banco aprovou cerca de 32,8 bilhões de dólares em financiamento (na verdade, menos do que isso foi emitido), enquanto o CRA, que tem 100 bilhões de dólares em fundos para ajudar os países com escassez de dólares estadunidenses em suas reservas internacionais e que estejam enfrentando pressões de curto prazo no balanço de pagamentos ou de liquidez – nunca foi ativado.
Entretanto, os acontecimentos dos últimos anos revigoraram o projeto Brics. As decisões de Moscou e Pequim de responder às escaladas de agressão na Nova Guerra Fria por Washington e Bruxelas, o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do Brasil em 2022 e a consequente nomeação de Dilma Rousseff para a presidência do NDB, além do relativo distanciamento, em graus variados, da Índia e da África do Sul em relação às potências ocidentais, resultaram em uma “tempestade perfeita” que parece ter reconstruído um senso de unidade política nos Brics (apesar das tensões não resolvidas entre a Índia e a China). Soma-se a isso o peso crescente do bloco na economia global e o fortalecimento da interação econômica entre seus membros.
Em 2020, a participação global do Produto Interno Bruto (PIB) dos Brics em termos de paridade de poder de compra – 31,5% – ultrapassou a do Grupo dos Sete (G7) – 30,7% – e espera-se que essa diferença aumente. O comércio bilateral entre os países do Brics também cresceu fortemente: o Brasil e a China estão batendo recordes todos os anos, chegando a 150 bilhões de dólares em 2022; as exportações russas para a Índia triplicaram de abril a dezembro de 2022, ano a ano, chegando a 32,8 bilhões de dólares; enquanto o comércio entre a China e a Rússia saltou de 147 bilhões de dólares em 2021 para 190 bilhões de dólares em 2022, um aumento de quase 30%.
Diante dessa situação internacional dinâmica e das crescentes solicitações de expansão, os Brics enfrentam uma série de questões importantes:
Além de fornecer respostas concretas aos candidatos interessados, a expansão tem o potencial de aumentar o peso político e econômico do Brics e, eventualmente, fortalecer outras plataformas regionais das quais seus membros fazem parte. Mas a expansão também exige que se decida sobre a forma específica que a associação deve assumir e pode aumentar a complexidade da formação de consenso, com o risco de retardar o progresso da tomada de decisões e das iniciativas. Como essas questões devem ser tratadas?
Como aumentar a capacidade de financiamento do NDB, bem como sua coordenação com outros bancos de desenvolvimento do Sul Global e outros bancos multilaterais? E, acima de tudo, como o NDB, em parceria com a rede de think tanks do Brics, pode promover a formulação de uma nova política de desenvolvimento para o Sul Global?
Já que os países-membros do Brics têm reservas internacionais sólidas (com a África do Sul tendo um pouco menos), é improvável que eles precisem usar o CRA; em vez disso, esse fundo poderia fornecer aos países necessitados uma alternativa à chantagem política do Fundo Monetário Internacional, que exige que os países em desenvolvimento adotem medidas de austeridade devastadoras em troca de empréstimos.
Há informações de que o Brics está discutindo a criação de uma moeda de reserva que permitiria o comércio e o investimento sem o uso do dólar estadunidense. Se isso fosse estabelecido, poderia ser mais um passo nos esforços para criar alternativas ao dólar, mas ainda restam dúvidas. Como a estabilidade dessa moeda de reserva poderia ser garantida? Como ela poderia ser articulada com mecanismos comerciais recém-criados que não usam o dólar, como os acordos bilaterais China-Rússia, China-Brasil, Rússia-Índia e outros?
Como a cooperação e a transferência de tecnologia podem apoiar a reindustrialização de países como o Brasil e a África do Sul, especialmente em setores estratégicos como biotecnologia, tecnologia da informação, inteligência artificial e energias renováveis, ao mesmo tempo em que combatem a pobreza e a desigualdade e atendem a outras demandas básicas dos povos do Sul?
Líderes representando 71 países do Sul Global foram convidados a participar da reunião em Joanesburgo. Xi, Putin, Lula, Modi, Ramaphosa e Dilma têm muito trabalho a fazer para responder a essas perguntas e progredir nas questões urgentes do desenvolvimento global.
[…]
Quando esses grandes países do Sul se reunirem em Johanesburgo, eles se confrontarão com as grandes desigualdades na África do Sul. Essas fissuras são a matéria-prima para os poemas de Vonani Bila, cuja voz se eleva a partir da vila de Shirley (Limpopo) e nos lembra da longa caminhada que temos pela frente, por meio do projeto Brics e além:
Quando o sol se põe
em Soutpansberg,
Giyani Block coloca um
casaco de víbora negra;
um espelho de morte e desespero.
Médicos e enfermeiras permanecem de pé.
Eles não descansarão quando a greve dos trabalhadores
acender sua chama furiosa.
Eles estão na ponta dos pés, olhando para cima,
lutando contra o monstro sem rosto e sem cauda.
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O Brics diante de seu maior desafio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU