29 Março 2022
O Núncio Apostólico na Ucrânia Mons. Kulbokas: “Sem um mínimo de trégua seria arriscado para o Pontífice e para os fiéis. Uma viagem secreta ou clandestina de Francisco nem é imaginável. Através dos canais diplomáticos, pedi a Moscou que protegesse os mais frágeis”
Afirma que uma visita do Papa a Kiev “seria belíssima, mas é impossível porque faltam as condições mínimas de segurança”. E conta como se vive sob a ameaça de bombas e ataques aéreos: “Desde que a guerra estourou, não usamos mais os andares superiores da Nunciatura. Dormimos e celebramos missa todos os dias no térreo. Em alguns momentos em que ouvimos o barulho das explosões muito perto do nosso bairro e o alerta dispara, refugiamo-nos nos abrigos subterrâneos mesmo que não seja possível viver ali noite e dia”.
Monsenhor Visvaldas Kulbokas, lituano, 47 anos, fala italiano perfeitamente, além de francês, inglês, russo e espanhol. Chegou à capital ucraniana como núncio apostólico em 7 de setembro passado, depois de ter sido, entre outros cargos, secretário da nunciatura em Moscou de 2009 a 2012.
A entrevista com Visvaldas Kulbokas é de Antonio Sanfrancesco, publicada por Famiglia Cristiana, 28-03-2022.
Você esperava esse ataque da Rússia?
Não. Durante as primeiras semanas deste ano vimos os movimentos das tropas nas fronteiras do país e então entendemos que tínhamos que nos preparar para o pior. Antes, eu não teria imaginado que realmente se pudesse chegar a um conflito de tais dimensões.
Kiev há dias vive suspensa na angústia? Como está a situação?
Melhor quando comparada a outras cidades como Kharkiv ou Mariupol, a cidade mártir que está pagando o preço mais alto até agora. É um centro de trezentos mil habitantes, o maior da Ucrânia depois da capital, onde não resta mais nada. Falta eletricidade, água e gás. Em Kiev temos energia elétrica e aquecimento, algumas lojas ainda estão abertas e as pessoas saem para comprar algo para comer. A ajuda humanitária também chega de outras regiões e do exterior. Mesmo que todos os dias tenhamos que lidar com o medo: os mísseis que passam sobre nossas cabeças, os alertas contínuos. As pessoas que ficaram se acostumaram, mesmo que estejam cada vez mais estressadas e angustiadas.
Você consegue falar com as autoridades das cidades mais atingidas no Sudeste?
Ouvi o bispo auxiliar católico de Kharkiv, em cuja diocese se encontra Mariupol, e ele me disse que da capela apenas um missal conseguiu ser salvo. Tudo foi destruído ou roubado, como tantas outras igrejas e capelas. O povo de Mariupol não tem mais contato com familiares há 14 dias e não sabe se estão vivos ou não. Ver as pessoas sofrendo é uma angústia, mas quando vejo imagens de pessoas que são salvas porque são evacuadas, caio em um choro libertador e meu coração se pergunta: por que toda essa dor? Quem pôde causar tudo? Não dá para entender porque os objetivos de alguém podem ser superiores à vida de crianças, mães grávidas, doentes, idosos.
A princípio pareciam uma ilusão, depois as negociações, ainda que com grande dificuldade, prosseguiram. Agora parece que estamos em um novo impasse. Você está confiante?
Se esta guerra começou, parece-me ilógico que termine assim. É mais lógico, por outro lado, que uma das partes, tendo constatado que não consegue atingir os seus objetivos e teve graves problemas no campo, possa acelerar as negociações devido a essas dificuldades. Para isso, o aspecto espiritual é muito importante.
O Papa Francisco definiu a guerra como “desumana e sacrílega” e nos convida continuamente a rezar pela paz.
O seu convite é muito importante porque um dos propósitos da oração é a conversão do coração de cada um de nós. Sem essa mudança interna, os políticos envolvidos no conflito permanecem nas mesmas posições que levaram à guerra e não há como sair dessa espiral de violência e morte. A oração é uma arma espiritual fundamental. Quando celebro a Missa na Nunciatura, faço-a também pelos que estão escondidos nos bunkers, pelos que estão sob bombas, pelas crianças que morreram de sede. A guerra causa sofrimento, morte e destruição. Os cristãos ucranianos estão unidos para denunciar este horror.
Causaram muita polêmica as palavras do Patriarca de Moscou, Kirill, que evocou uma guerra "metafísica" para combater os pecados do Ocidente, a começar pela organização das paradas de Orgulho Gay.
Não quero comentar essas declarações, mas lembro que o Conselho Ucraniano de Igrejas e Organizações Religiosas, que reúne todas as denominações cristãs junto com muçulmanos e judeus, é muito unido. Não posso dizer que todos os bispos e sacerdotes ucranianos estejam perfeitamente e totalmente unidos na condenação desta guerra, mas os mais altos representantes de todas as religiões fizeram ouvir claramente suas vozes contra o conflito.
O Papa, ao acolher o pedido da Virgem em Fátima, decidiu consagrar a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, convidando todos os bispos do mundo a fazerem o mesmo. Qual é o significado desse gesto?
É uma arma espiritual muito forte e sou grato ao Pontífice. Recebi pedidos de todo o mundo para que o Papa fizesse esta consagração especial. A Conferência Episcopal Ucraniana também o pediu. Sei que muitas outras mensagens semelhantes chegaram diretamente ao Vaticano. Olhando para as crianças em sofrimento, não se entende porque uma guerra assim possa acontecer no século XXI. O Senhor permitiu que o diabo agisse porque a própria guerra é uma invenção diabólica. E a única arma contra Satanás, o grande divisor, é aquela espiritual e a mais forte defensora é a Virgem Maria que é a mãe de todos e em particular das crianças mortas e mutiladas e das mães em fuga. Entregar-se com o coração confiante e contrito a Maria é a escolha acertada, porque é ela quem esmaga a cabeça da serpente.
No início do conflito, não se conseguia criar corredores humanitários. Depois algo se desbloqueou.
A Santa Sé os pediu desde o início e já interveio em algumas questões particulares, como a de transmitir à Rússia alguns pedidos específicos relativos especialmente às crianças, desde a proteção dos orfanatos até a possibilidade de evacuá-los. Nestes casos, são utilizados os canais diplomáticos.
Que resposta vocês obtiveram?
Foi dada atenção aos nossos pedidos e por isso já sou muito grato.
O que a igreja ucraniana está fazendo para ajudar os refugiados?
Há uma grande mobilização. Em Kiev, na igreja de São Nicolau, ainda não devolvida pelo governo à comunidade católica, a paróquia recebeu permissão para criar um centro de coleta e triagem das ajudas humanitárias onde muitos sacerdotes colaboram com os leigos. As duas Cáritas do país estão fazendo um grande trabalho. Mesmo que as pessoas não possam se movimentar livremente durante o dia, há muitos voluntários que estão fazendo o máximo para coletar as ajudas e distribuí-las. Infelizmente, há muitas pessoas empenhadas na evacuação de civis, especialmente crianças, que não conseguem chegar ao seu destino e morrem sob as bombas.
O prefeito de Kiev, Vitaliy Klitschko, convidou o Papa Francisco para visitar a cidade. Uma viagem é possível?
Transmiti o convite do prefeito para a Secretaria de Estado alguns dias atrás. Seria belíssimo e de grande significado ter o Pontífice entre nós, mas refleti longamente com os bispos e, infelizmente, não é nada fácil organizar uma visita nesta situação. Uma coisa é chegar a Kiev com precauções e meios seguros, como fizeram alguns líderes europeus para ter encontros reservados e tentar manter as negociações em andamento. Outra é imaginar uma visita do Papa quase secreta, clandestina. Não é possível. Um mínimo de trégua seria indispensável tanto para o Papa como para as pessoas que deveriam participar da oração com ele. Sem estas condições mínimas, atualmente difíceis de conseguir, a segurança de todos estaria em risco.
Desde o início do conflito, você permaneceu em Kiev. Está com medo?
Procuro junto com os meus colaboradores usar todas as precauções. Desde o início da guerra, não usamos mais os andares superiores da Nunciatura, que fica em um bairro central de Kiev, nem as salas que têm janelas para o exterior, porque são as áreas de maior risco em caso de ataque. Dormimos e celebramos missa todos os dias no térreo. Em alguns momentos, quando ouvimos o som de explosões muito perto do nosso bairro e o alerta dispara, refugiamo-nos nos abrigos subterrâneos mesmo que não seja possível viver ali noite e dia. A guerra desafia a todos, crentes e não crentes. Alguns dias atrás as religiosas que colaboram na Nunciatura me contaram sobre o sonho tido por um ateu, um sonho muito importante.
Por que motivo?
Esse homem se viu andando pelas ruas meio destruídas à noite em busca de seus familiares. A certa altura, ele encontra Jesus Crucificado em quem os soldados russos estão atirando. Em seu coração, condena aqueles soldados e pede a Jesus que o proteja e ajude a encontrar os familiares. Jesus lhe diz: ‘Decida se você também quer atirar em mim ou se quer que eu o proteja’. Ele acorda e entende o sentido daquele estranho pedido. Em seu coração, pensava que era melhor que os russos, mas o Senhor o faz entender que não é assim, mas que ele deve escolher se quer ser como todos os outros ou se converter e mudar seu coração. Essa pessoa disse que o sonho o mudou.
Considero este testemunho exemplar porque é assim que estou percebendo o aspecto espiritual desta guerra que desafia a todos, crentes e não crentes, e nos leva a nos perguntar: ‘o que eu estou fazendo, com quem estou?’. Jesus nos diz que temos um só pai no céu e, consequentemente, somos todos irmãos. Se é assim, não só o conflito, mas também a difamação e o juízo contra os outros devem ser evitados. Não só aqueles que causam a guerra têm que fazer um longo caminho de conversão, mas também nós, que às vezes somos tentados a nos considerarmos melhores e mais justos do que os outros. O Evangelho, através do que está acontecendo, nos coloca diante de uma encruzilhada e nos pergunta: "Você acredita ser um irmão dos outros? Você acredita que Deus é o pai de todos?".
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“Agora é impossível uma visita do Papa a Kiev. Pedimos à Rússia que proteja as crianças” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU