Como Maria, a mãe judia de Jesus, se tornou a virgem que deu à luz a Deus. Entrevista com James D. Tabor

Virgem Maria, mãe de Jesus. | Foto: Youtube/Reprodução

20 Agosto 2020

Maria é uma das mulheres mais famosas da história, mas também a menos conhecida. O historiador James D. Tabor realizou um estudo para exumar a “verdadeira Maria”. Nascido em 1946, Tabor leciona Judaísmo Antigo e Origens do Cristianismo na Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos.

A entrevista é de Virginie Laroussein, publicada por Le Monde, 15-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

“Como Maria, a mãe de Jesus, pode despertar tanto fervor e tanta devoção, embora se saiba tão pouco sobre ela?”, pergunta o historiador, que acaba de publicar “Marie, de son enfance juive à la fondation du christianisme” [Maria, da sua infância judaica à fundação do cristianismo] (Ed. Flammarion).

Analisando fontes históricas de todos os tipos, a tradição, os evangelhos do Novo Testamento e os textos apócrifos (ou seja, não inseridos no cânone oficial da Igreja), arqueologia e ciência, o diretor do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte oferece um afresco apaixonante que dá vida não só à mãe de Jesus, mas também aos grandes personagens do seu tempo, de Herodes, o Grande, a João Batista, passando por Jesus e José.

Apesar do seu rigor, a metodologia do professor estadunidense esbarra necessariamente em limites, já que as fontes sobre Maria são muito escassas – o que leva o historiador a especular mais do que a apresentar fatos concretos e indubitáveis.

E essa tentativa de “restaurar Maria à sua condição plenamente humana e de mulher judia” poderá ferir alguns fiéis, apesar das precauções e da empatia do autor – já que a ciência não é chamada a sustentar o dogma.

Mesmo assim, James D. Tabor consegue tornar Maria incontestavelmente mais familiar para nós, reinserindo-a no seu contexto espaço-temporal: o de uma mulher judia da sua época.

“A verdade é que a sua vida foi intencionalmente apagada”, afirma o autor, que vê em Maria “uma mulher ativa e revolucionária que inspirou uma fé cristã emergente”.

James D. Tabor. (Foto: Youtube/Reprodução)

Eis a entrevista.

O que leva um historiador a se lançar em uma investigação sobre Maria, sabendo que as fontes históricas a respeito dela são quase inexistentes?

Eu já escrevi um livro sobre Jesus, “La Véritable histoire de Jésus” (Ed. Robert Laffont), que foi um best-seller do New York Times. No mundo universitário, tenta-se reconstituir quem era Jesus a partir de um ponto de vista histórico, e essa busca parece natural. Como historiador e arqueólogo, me deparei com um paradoxo sobre Maria: ela é a mulher mais famosa da história, mas não se sabe quase nada sobre ela. A imagem que temos dela, a de uma virgem devota que parece uma freira, não é fiel à mulher que ela foi historicamente. Então, perguntei-me se era possível “ressuscitar” Maria, encontrar quem é a verdadeira Maria.

A partir de onde esse trabalho começa? Que documentos você usou?

A primeira coisa a se fazer é certamente trabalhar sobre as fontes textuais mais antigas que podem ser relacionadas com Maria, aquelas que vão do século I a.C. ao século I d.C. As mais importantes são os Evangelhos do Novo Testamento. Embora pouco loquazes sobre Maria, eles contêm elementos interessantes, em particular a sua genealogia, relatada por Lucas (capítulo 3): segundo ele, Maria tem uma ascendência importante, seria de estirpe real e sacerdotal.

Depois, eu combino as fontes com aquilo que se sabe, historicamente, daquele período, particularmente graças a Tito Flávio Josefo, historiador do século I d.C. Quando Jesus nasceu, o clima político não era o de uma “doce noite”. A Palestina estava sob ocupação romana, o que foi a causa de várias revoltas aplacadas com o sangue: os romanos crucificaram, por exemplo, 2.000 pessoas em Séforis, perto de Nazaré, na época em que Maria devia ser uma jovem mãe. Por fim, eu recorro à arqueologia, tentando me limitar às escavações de que eu participei, para poder envolver ainda mais o leitor. Evidentemente, gostaria de ter mais fontes, mas já funciona bastante bem assim.

Como explicar que Maria, que é uma das mulheres mais famosas da história, aliás, a mais famosa, segundo você, é também a menos conhecida?

Perto do fim do século I, Jesus se tornou tão importante como Filho de Deus que a questão da sexualidade de Maria se tornou problemática. Tudo o que é humano a respeito dela começou a ser nuançado ou negado. Começando pelo fato de que Jesus teve irmãos e irmãs, algo claramente mencionado no Novo Testamento, particularmente no Evangelho de Marcos (6,3): “De onde vem tudo isso? Onde foi que arranjou tanta sabedoria? E esses milagres que são realizados pelas mãos dele? Esse homem não é o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? E suas irmãs não moram aqui conosco?”.

Por volta de 150 d.C., alguns teólogos começaram a afirmar que não se trata de irmãos e irmãs, mas sim de primos, filhos de um irmão de José – uma teoria que continua sendo a da Igreja Católica Romana. Tornou-se inconcebível que Maria pudesse ter sido uma mulher normal, uma esposa sexualmente ativa e uma mãe de família, enquanto, na época dos Evangelhos, vê-se muito bem que isso não representa problema algum. No Evangelho de Mateus (1,25), diz-se: “José a recebeu em sua casa sua esposa. E não a conheceu antes que ela desse à luz o seu filho” – e isso implica que ele o fez depois.

Digamo-lo francamente: os teólogos não gostam da ideia de que Maria pudesse ter tido uma vida sexual. No entanto, não haveria nada de pornográfico nisso! Na Igreja Ortodoxa, acredita-se que os irmãos e as irmãs são filhos nascidos do primeiro casamento de José, enquanto a tradição não diz absolutamente nada sobre isso. A divinização de Jesus é acompanhada, para Maria, por uma perda progressiva da sua consistência humana. Maria é vista apenas como receptáculo do Filho de Deus. Ela não poderia ter vida fora disso.

Maria e José, mãe e pai de Jesus. (Foto: Reprodução/Youtube)

Quando começou a marginalização de Maria?

Acho que começou com o apóstolo Paulo, que diz que Jesus “nasceu de mulher” (Gálatas 4), sem sequer mencionar o nome dela, embora provavelmente a tenha visto em Jerusalém. De fato, ele diz que se encontrou com Tiago, o irmão de Jesus, em Jerusalém [1]; portanto, é muito provável que ele também tenha visto Maria lá, pois se sabe que ela acompanhava Tiago. Paulo é quem também recomenda não se casar se isso puder ser evitado, afirmando que é melhor permanecer celibatário (1Coríntios 7).

Um dos motivos mais fortes a respeito de Maria é o da sua virgindade perpétua, erigida como dogma pelos católicos e pelos ortodoxos. Essa ênfase na pureza sexual era comum no contexto judaico dos inícios da nossa era?

Absolutamente não. Essa ideia é totalmente estranha ao judaísmo, que convida ao casamento, até mesmo para os rabinos. Pelo contrário, não era visto com bons olhos o fato de um rabino não ser casado. Nas sociedades tradicionais daquela época, casar-se e ter filhos era uma coisa óbvia. Por isso, a visão que Paulo desenvolve sobre o casamento é particularmente atípica. Mas é preciso compreender que Paulo é judeu, natural da diáspora da Ásia Menor e, portanto, muito marcado pelo pensamento grego, que desenvolveu um pensamento dualista: o corpo não é santo, é sujo e limitado, enquanto o espírito é nobre; por isso, é preciso libertá-lo dessa restrição que é o corpo. Seja como for, essa obsessão pela pureza de Maria se desenvolveu por volta dos anos 100-150. Na minha opinião, a intenção não era má: certamente se queria proteger a figura de Maria.

Quais são os elementos da vida de Maria que o historiador pode reconstituir de maneira confiável?

Embora as fontes sejam muito escassas, é possível situar Maria em uma época e em um lugar. Graças à arqueologia, posso dar vida novamente ao seu mundo. Por exemplo, poucos conhecem o nome da cidade de Séforis, que não é citada no Novo Testamento. Situada a alguns quilômetros ao norte de Nazaré, ela era a segunda maior cidade do país em grandeza. Segundo a tradição, era lá que viviam Joaquim e Ana, pais de Maria. Embora esta última seja percebido no imaginário coletivo como uma camponesa, na realidade ela provém de um ambiente bastante urbano. O rei Herodes, que reinou sobre a Judeia de 37 a 4 a.C., também vivia em Séforis. Depois do seu casamento com José, Maria provavelmente se mudou para Nazaré, onde Jesus cresceu.

Graças às escavações realizadas em Nazaré, pode-se imaginar o tipo de casa em que ela viveu, a fisionomia do vilarejo etc. Todas essas pequenas coisas que se sabem sobre Maria, começando pelas contidas no Novo Testamento, são como pequenos ganchos, um esqueleto no qual outros elementos podem ser pendurados. Também se sabe que ela não teve apenas um filho, mas que era mãe de uma grande família – como todas as mulheres judias da época – de pelo menos oito filhos. A partir do Evangelho de Marcos (6,3), conhecemos os nomes de quatro irmãos de Jesus (Tiago, Joset, Judas e Simão) e sabe-se que ele teve pelo menos três irmãs, duas das quais, Salomé e Miriam, são citadas nominalmente. Na época em que Maria criou seus filhos, Séforis, que havia sido destruída pelos romanos no ano 4 a.C., estava em plena reconstrução. Portanto, podemos imaginar que José e Jesus iam para Séforis para trabalhar lá – o ofício de “carpinteiro” atribuído a José se refere, na realidade, à arquitetura e à construção.

Você lembra que Maria não era uma mulher cristã, mas judia. Que elementos importantes essa afirmação aparentemente óbvia pode oferecer para entender melhor quem ela era?

É preciso compreender que a Igreja, assim como ela se desenvolveu, com a sua rede de padres, monges e religiosas, de igrejas e catedrais, de estátuas e obras de arte, não tem nada tem a conecta com a cultura judaica. Maria não teria entendido nada, pela simples razão de que ela era judia e frequentava a sinagoga. Transferindo-a para o contexto da Idade Média cristã, que é a época em que o culto mariano se desenvolveu, é impossível imaginar quem ela era na realidade, porque o clima daquela época não tem mais nada a ver com aquele em que Maria cresceu. Fazer de Maria uma mulher apolítica e assexuada, na minha opinião, é uma antinarrativa. É claro que eu respeito os fiéis que aderem a essa visão. Eu sei até que ponto Maria é venerada no catolicismo. No entanto, parece-me que não se trata da verdadeira Maria. Espero que, depois de ler o meu livro, as pessoas se deem conta de que a verdadeira Maria é tão admirável e inspiradora quanto a figura mítica que foi construída em torno dela.

Você diz que Maria foi particularmente marcada pelo contexto político no qual ela cresceu. Por que ele era tão particular?

Porque, na época, ele não podia ser ignorado. O reinado de Herodes, o Grande, foi particularmente sangrento. É preciso imaginar as pessoas conversando sobre esses acontecimentos, em um país ocupado pelo poder político-militar romano. Seus pais certamente discutiam sobre isso. Ainda mais que Herodes queria, mais do que qualquer outra coisa no mundo, aquilo que Maria tinha: uma genealogia de prestígio. Mas o seu pai era um judeu convertido, e a sua mãe, uma mulher árabe. Ele não é da estirpe de Davi, ao contrário de Maria, nem da dos Hasmoneus, a estirpe de sacerdotes à qual Maria estava ligada. Entre outras coisas, Herodes se casou com mulheres pertencentes a essas estirpes para tentar adquirir uma legitimidade.

O que se sabe sobre os irmãos e irmãs de Jesus? Eles desempenharam um papel particular no nascimento daquele que mais tarde será o cristianismo?

Dispomos de boas fontes antigas a respeito de Tiago, nos Atos dos Apóstolos, onde ele é apresentado como aquele que assumiu a função de guia após a morte de Jesus – e não Pedro ou Paulo. Quando Paulo vai a Jerusalém, ele vai imediatamente ao encontro de Tiago, a quem define como “coluna da Igreja”. É ele quem arbitra o conflito entre Pedro e Paulo sobre a questão da abertura do movimento aos gentios, isto é, aos não judeus. No entanto, Tiago não é conhecido do grande público.

Pouco se sabe sobre os outros irmãos de Jesus – Simão, Joset e Judas. No entanto, Joset – que, sem dúvida, é um apelido para José – é citado no Novo Testamento. Ele acompanhou a sua mãe na crucificação de Jesus e participou dos ritos de embalsamamento. Não se sabe o que aconteceu com ele. Simão, após a morte de Tiago, assumiu a liderança com idade muito avançada. Eu falo da “estirpe de Jesus”: os filhos de Maria tinham uma função na jovem Igreja. Mas, aqui também, por causa da insistência na virgindade perpétua de Maria, a sua família pouco a pouco foi apagada, assim como a sua origem judaica.

Um elemento bastante inesperado da sua investigação é a afirmação de que Maria “é a fundadora esquecida do cristianismo primitivo”. Explique.

Maria era judia. Conhece-se bem o papel das mães judias naquela época: é através delas que se transmitem a tradição religiosa e os valores. Sem dúvida, elas são influentes no âmbito familiar, como, aliás, também ocorre em muitas outras culturas. Não é porque as mulheres não exercem funções de poder que elas não têm nenhuma influência, pelo contrário. Tudo remonta a Maria. Eu acho que ela influenciou diretamente Jesus por meio da educação que lhe deu. Isso é muito plausível, pois os mesmos valores se encontram na carta de Tiago, que está inserida no Novo Testamento. Vejo Maria como uma sombra ao lado do trono, uma espécie de eminência parda.

Um ponto particularmente sensível do seu estudo é o capítulo em que você tenta identificar quem poderia ter sido o pai biológico de Jesus, por meio de um personagem chamado Pantera.

Sim, certamente é a parte mais suscetível de ferir alguns fiéis. Analisemos a situação objetivamente. Podem-se imaginar várias possibilidades: ou Jesus não tem pai biológico, como diz a Igreja: Deus é seu pai. Mas, se ele tem um pai biológico, restam duas opções: ou se trata de José ou de outro homem. Como historiador, não posso me pronunciar sobre o que diz respeito à fé e devo partir da ideia de que Jesus teve um pai biológico. A partir dos Evangelhos, sabemos que Maria está grávida, e que José disse que não é o pai; consequentemente, o pai biológico é outro homem.

Além disso, sabe-se que os relatos mitológicos gregos e romanos falam de “homens divinos” – heróis, semideuses ou sábios – cuja concepção era atribuída a um deus que fecundou uma mulher. É o caso, por exemplo, de Hércules, de Platão ou de Apolônio de Tiana, um sábio que fazia milagres. Tentava-se explicar desse modo o motivo pelo qual uma pessoa é tão particular. Seja como for, eu seria negligente se não informasse os leitores de que aparece um nome em certas fontes judaicas do século I, que apresentam Jesus como filho de um certo Pantera.

Originário de Sidon, na Palestina, Pantera está ligado, muito distantemente, à família de Maria e, mais tarde, tornou-se soldado do exército romano. Ela tinha se apaixonado por ele? Seus pais achavam que ele não era um “bom partido” para a sua filha? Seja como for, encontrou-se na Alemanha o túmulo de um soldado do exército romano chamado Pantera, originário da Palestina e que viveu na mesma época. Evidentemente, não há como provar que se trata exatamente dele, mas a cronologia e o lugar estão de acordo. Esse ponto pode me trazer problemas, mas não parecia correto deixar essa questão passar em silêncio.

Nesse âmbito sensível, como você lida com as sensibilidades e as convicções dos fiéis?

Eu explico aos leitores que, como historiador, procuro separar fé e história. Eu não trabalho para a Igreja, faço pesquisa histórica. A ideia do nascimento virginal de Jesus está ligada à fé cristã e faz parte do Credo que é rezado todos os domingos na missa. É verdade que seria difícil imaginar Jesus como Filho de Deus se ele tivesse sido gerado por um homem comum. No entanto, não posso tomar a mitologia ao pé da letra. Sou uma pessoa laica, mas sempre dou muita atenção às sensibilidades dos meus estudantes quando trabalhamos com textos históricos. Não pretendo julgar as intenções dos teólogos que apresentaram essa visão de Maria, mas apenas relembrar a sua dimensão histórica. E talvez esta última se demonstrará tão inspiradora quanto a imagem quase divina que foi construída sobre ela. Por exemplo, a minha editora estadunidense, que é católica, confidenciou-me que se sentia mais próxima de Maria agora, vendo a sua dimensão humana, em vez de considerá-la como uma espécie de deusa.

Esse trabalho sobre Maria é apaixonante, mas você quase sempre é obrigado a especular, a fazer conjecturas. O que você responde àqueles que, por esse motivo, poderiam minimizar o porte do seu estudo?

É preciso partir da definição da palavra “especulações”, conjecturas. Se eu defendesse a ideia de que Jesus foi para a Índia – como dizem alguns – porque ele ensina um pouco como Buda, isso seria, na minha opinião, pura especulação: nenhuma tradição, nenhum testemunho permite dar crédito a essa teoria. De fato, uma parte do meu trabalho consiste em levantar hipóteses, mas eu não gosto do termo “especulação”. Prefiro a ideia de preencher lacunas históricas baseando-me naquilo que se sabe por meio de textos, da história e da arqueologia. Certamente não posso provar tudo, mas levanto hipóteses fortes. Eu não especulo se não houver um mínimo de fatos concordantes. Em todo caso, acho que, depois de ler o livro, a maioria dos leitores terá a sensação de ter aprendido muitas coisas.

 

Nota:

[1] Cf. o livro “Jacques le Juste, frère de Jésus de Nazareth”  [Tiago, o Justo, irmão de Jesus de Nazaré], de Simon-Claude Mimouni (Ed. Bayard, 2015).

 

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