Maria, a glorificada, e a crise pós-moderna

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20 Agosto 2016

"O homem contemporâneo parece se bastar quando entra nas estivas apertadas de um 'navio' que sulca um mar sem horizontes longos. Ao cristianismo, isso não é suficiente: a assunção de Maria é o que ele pensa sobre o destino último do homem: este é chamado a se realizar em plenitude e para sempre. É o sentido do 'Glória', palavra que Hans Urs von Balthasar genialmente escolheu para dizer todo o cristianismo na sua monumental teologia."

A opinião é do teólogo e padre italiano Michele Giulio Masciarelli, professor da Pontifícia Faculdade Marianum, em Roma, e do Istituto Teologico Abruzzese-Molisano, em Chieti, na Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 13-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Falar de Maria é falar do cristianismo

Foi escrito que se interrogar sobre Maria é se interrogar sobre o cristianismo, não no sentido de que ela seja o seu centro, mas no sentido de que ela é central nele. Olhando para a Virgem de Nazaré, apontamos o olhar para o ícone feminino do cristianismo. Uma pergunta: olhando para essa Mulher, desvia-se dos interesses extremos do homem? E se fosse o ícone de um cristianismo fraco e ingênuo?

Essa é uma dúvida que, acima de tudo, os cristãos devem remover. Para dissipá-la, é de ajuda um pensamento de Joseph Ratzinger, teólogo, que, à atual crise da cristandade, à qual, como papa, ele dedicaria análises refinadíssimas e apaixonadas, chegou a dizer: "Poderia caber à devoção mariana o fato de operar o redespertar do coração e a sua purificação na fé" (Maria Chiesa nascente, Cinisello B., 1998, p. 27).

A Glorificada lembra que a história não nos basta

Com a sua assunção, acima de tudo, Maria nos apresenta o cristianismo como religião do futuro absoluto, mas também fala ao homem contemporâneo, que consome a sua existência no cotidiano e coloca as suas escolhas na breve terra de hoje, sem a pretensão de que elas devam surgir de longe (ausência da tradição) ou devam levar para longe (ausência da abertura ao futuro último).

Por outro lado, o presenteísmo não é o tempo bom para o homem do nosso "tempo fraco", nem a história, no seu conjunto, é a resposta adequada ao radicalismo da tensão ao futuro que está dentro do seu coração: "A intuição do próprio coração – afirma a Gaudium et spes – fá-lo julgar retamente, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa" (n. 18). Por isso, diz bem o filósofo Michele Federico Sciacca, quando afirma, com amável ironia: "Eu, com a história, acendo o meu cachimbo" (Come si vince a Waterloo, Milão, 1963, p. 12).

Infelizmente, o homem contemporâneo parece se bastar quando entra nas estivas apertadas de um "navio" que sulca um mar sem horizontes longos. Ao cristianismo, isso não é suficiente: a assunção de Maria é o que ele pensa sobre o destino último do homem: este é chamado a se realizar em plenitude e para sempre. É o sentido do "Glória", palavra que Hans Urs von Balthasar genialmente escolheu para dizer todo o cristianismo na sua monumental teologia.

A Glorificada convida à esperança

O fato é que muitas pessoas hoje – como denunciava Bento XVI – escorregaram para dentro do anel preto e sufocante do niilismo, que é filosofia fraca, mas que certamente tem a força de apertar o pescoço da "menina esperança", de que Péguy falava, e de sufocá-la. Diante do labirinto niilista que extravia o homem de hoje, destituindo-o das "grandes narrativas", prendendo-o somente ao presente, convencendo-o de que podem lhe bastar os futuros breves, alimentando-o sobretudo à ideia insana de uma vida sem "juízo final", o cristianismo, preocupado, se empenha para ajudar o homem da pós-modernidade a sair dela para evitar que ele caia nas garras do tigre cínico.

A Glorificada é imitável na fadiga dos dias

O cristianismo, também com a ostensão do ícone da Glorificada, diante de um homem que gosta de se contar como um ser sem raízes e sem promessas, convida a não ter medo do futuro, mas a ressumi-lo com confiança e seriedade, a interrogá-lo com radical rigor.

Desse modo, o cristianismo pensa que poderão ser desmascaradas:

- a pretensão de um futuro sem passado e sem presente, que não explicaria nem de onde nasce nem como se alimenta a força propulsora da sua esperança e, além disso, não explicaria o porquê da projeção da vida a um futuro que, sob essas condições, seria indeterminado e anônimo;

- a pretensão de um passado sem presente e sem futuro, que traz consigo o equívoco não resolvido de ter mitificado um trecho de tempo (o passado, justamente), enquanto não se dá conta de ter operado o esvaziamento de valores em relação ao presente, onde se desenvolve a nossa vida, e ao futuro, aonde a força da esperança nos leva;

- a pretensão de um futuro apenas utópico, cujo vetor de esperança muito fraco só pode se prender, com uma queda muito infeliz, no estreito recinto dos cemitérios dos homens;

- a pretensão de um presente sem passado e sem futuro, cuja condição de tempo incontaminado (por ser sem vínculos com o passado comprometido, e fracassado, e enredado apenas nos futuros breves) não justifica o seu valor e não dá a entender quanto pode durar.

Escolhas sapienciais

O cristianismo como religião do futuro absoluto convida o homem de hoje, doente de presenteísmo, a algumas escolhas sapienciais de grande urgência.

- libertar-se do fragmentarismo da história. A modernidade concebeu a história como um caminho regulado por um código necessário e inexorável. Segue-se a esse logicismo finalista, por reação, uma dolorosa fragmentação dele, que acaba se transformando em uma série puntiforme de flashes, desprovidos de qualquer verdadeiro fio condutor. O Magnificat, o canto da Filha de Sião, convida a reler a história nas entrelinhas dos desígnios da Providência.

- vencer o medo do futuro. Depois do entusiasmo utópico, insinua-se na psicologia da cultura ocidental a suspeita sobre o porte do princípio-esperança e sobre a credibilidade das suas promessas. O cristianismo confia ao ícone da Glorificada a exemplificação mais forte da sua confiança justificada em relação ao futuro.

- não confiar o tema do futuro humano ao "computador". Hoje, surge o problema de uma nova memória, a do computador, que pode ser transmitida ao futuro de uma forma muito rica e de um modo surpreendentemente amplo e preciso: ao futuro, próximo e remoto, podemos nos dispor com mais confiabilidade e prudência, mas permanece totalmente intacta a pergunta sobre o futuro último, que, a partir de um certo ponto de vista, é de natureza completamente diferente: na experiência dos "futuros breves", tudo consiste em ir para o futuro, enquanto, para a fé cristã, o futuro Deus é misteriosamente antecipado, e é possível vivê-lo na contemporaneidade com os nossos dias.

- abandonar o cinismo de uma vida sem "juízo final". O homem pós-moderno, que vive sem a esperança em um futuro último e no convencimento consequente de não ter que prestar contas a ninguém na noite da sua vida, cai nas garras do tigre cínico. Hoje, nas orientações culturais, nas escolhas políticas, nos estilos de vida das sociedades ocidentais, torna-se cada vez mais evidente a "crise" dos valores e das fés modernas por causa do ofuscamento do horizonte de sentido: é o nascimento de um cínico mundo sem esperanças, sem futuro, que parece trazer consigo os gérmens do seu próprio fim.

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