11 Setembro 2019
Como o ambicioso e intrigante núncio apostólico de Washington, Dom Carlo Maria Viganò, desenvolve a sua afronta ao Papa Francisco.
Leia os primeiros capítulos do livro de Nicolas Senèze, enviado especial permanente em Roma do jornal La Croix, publicado pela Bayard Éditions em setembro de 2019.
A tradução do capítulo 2, intitulado “O acusador”, é de Isaque Gomes Correa a partir da versão inglesa disponível aqui, publicada por La Croix International, 14-08-2019.
Para ler o primeiro capítulo, "‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 1: O homem do escândalo", clique aqui.
O homem que acusa o papa não é famoso. Os que acompanham de perto o Vaticano lembrarão que o seu nome aparece bem no começo do caso VatiLeaks, aqueles vazamentos de documentos de Bento XVI publicados na imprensa.
O escândalo começou em 25-01-2012 quando uma carta de Viganò a Bento XVI apareceu no set do programa Gli Intoccabili (“Os Intocáveis”), do canal italiano La7, apresentado pelo jornalista Gianluigi Nuzzi.
O arcebispo, então secretário-geral da Governadoria do Estado da Cidade do Vaticano, exortou Bento XVI a não nomeá-lo ao prestigioso posto de núncio em Washington.
“Em outras circunstâncias, esta nomeação seria motivo de alegria e um sinal de grande estima e confiança para mim, mas, no contexto atual, ela será vista por todos como um veredito condenando o meu trabalho e, portanto, como uma punição”, escreveu ele (1).
Aos 70 anos, o arcebispo já tinha uma carreira de destaque como diplomata a serviço da Santa Sé.
Natural da cidade de Varese, na região norte de Lombardia, na Itália, este filho de proeminente família de industriais do ramo metalúrgico trabalhou no Iraque, no Reino Unido e na Secretaria de Estado do Vaticano, antes de ser nomeado observador permanente da Santa Sé para o Conselho da Europa em 1989, em Estrasburgo, e então núncio apostólico na Nigéria, em 1992. Foi ordenado bispo pelo próprio João Paulo II.
Em 1998, recebeu nova promoção como delegado para as pontifícias representações da Secretaria de Estado, posto que lhe deu controle sobre a rede diplomática vaticana ao redor do mundo.
Todas as correspondências entre os núncios e o Vaticano, portanto, passam por ele. Por fim, em 2009 é nomeado secretário-geral do Estado da Cidade do Vaticano.
Nesta função administrativa, e sob a responsabilidade do Cardeal Giovanni Lajolo, presidente da Governadoria do Estado da Cidade do Vaticano, Dom Viganò trabalha com zelo para obter o controle das finanças do pequeno estado. Como proponente da boa gestão, limpa as contas, exige transparência e pressiona por uma economia drástica.
Os documentos usados por Nuzzi no seu livro Sua Santità mostram que Viganò reduz o orçamento da manutenção dos jardins vaticanos em 850 mil euros e aumenta o orçamento para o presépio natalino na Praça de São Pedro, de 300 mil em 2009 para 550 mil euros em 2010. Viganò pode considerar-se um prelado que contribuiu para a recuperação das contas vaticanas, de um déficit de aproximadamente 8 milhões de euros em 2009 para um saldo positivo de 21 milhões, em 2010.
Segundo Nuzzi, Viganò enfrenta as ações de Marco Simeon, empresário de forte presença no Vaticano e um protegido do Cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Papa Bento XVI.
Após a transmissão do programa Gli Intoccabili, o Pe. Federico Lombardi, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, aplaudiria as ações de Viganò.
O seu trabalho na Governadoria do Estado da Cidade do Vaticano “com certeza teve aspectos muito positivos, contribuindo para uma gerência caracterizada pela busca por um rigor administrativo, economia e recuperação de uma situação econômica geralmente difícil”, reconhece. “Estes resultados, obtidos durante a presidência do Cardeal Lajolo, são claros e ninguém os nega”.
Mas o porta-voz de Bento XVI também nos convida a avaliar estas cifras de “uma maneira mais apropriada”, considerando em particular “a evolução dos mercados e os critérios segundo os quais os investimentos foram feitos nos últimos anos”, assim como “outros fatores importantes, como os resultados muito notáveis da atividade dos Museus do Vaticano, com um número maior de visitantes e uma ampliação do horário de funcionamento”.
Em suma, Viganò fez certamente um bom trabalho, mas não pode levar sozinho todo o crédito pelos resultados.
O que não se disse na época foi que Viganò era tido pelos seus subordinados como um líder que queria controlar tudo, além de uma figura melancólica. Na carta escrita a Bento XVI, o ex-núncio mostrou-se indignado por acusarem-no de “ter criado um clima negativo dentro da Governadoria, tornando cada vez mais difíceis as relações entre a Secretaria-Geral e os presidentes dos departamentos, a ponto de tornar a minha transferência necessária”.
“Sua fúria é memorável”, escreve o jornalista chileno Luis Badilla, administrador do sítio eletrônico Il Sismografo, para o qual “os seus colaboradores ainda lembram dos gritos de Viganò nos corredores” (2).
“Ele não era claro”, resume um padre que se reunia com ele na Secretaria de Estado.
Ambicioso e intrigante, Viganò não resistiria à tentação de promover um de seus sobrinhos dentro da Cúria também, e teria até mesmo tentado, de acordo com Il Giornale, pôr as mãos sobre os serviços de segurança vaticanos (3).
Os documentos do VatiLeaks também realçam o seu crescente desacordo com o Cardeal Bertone. Como pontua Nicolas Diat em seu livro de referência sobre este caso, o poderoso secretário de Estado de Bento XVI é o verdadeiro alvo dos vazamentos, enquanto Viganò, por muito tempo suspeito de ser o instigador, parece, pelo contrário, uma vítima colateral (4).
“Desde o começo de 2011, as relações entre o Cardeal Bertone e Dom Viganò ficaram extremamente difíceis”, diz Diat.
O secretário de Estado não necessariamente discorda das análises de Viganò, mas este último é obscuro e não gosta de ser responsabilizado, enquanto o Cardeal Bertone é um tanto autoritário. Além disso, o secretário de Estado preocupa-se mais com as tentativas de Viganò por independência e planos de reforma, pois a Governadoria já está saindo de seu domínio em decorrência da proximidade entre o seu presidente, o Cardeal Lajolo, e o Cardeal Angelo Sodano.
Decano do Colégio Cardinalício, Sodano, que antecedeu Bertone como o “número dois” da Igreja Católica e que fizera todo o possível para dificultar tal sucessão, permanece muito presente no aparato curial, onde tem muitos relés.
Em uma verdadeira guerra clandestina, Bertone tenta, por sua vez, substituir a própria equipe, às vezes desajeitadamente.
É neste contexto que ele organiza a sucessão de Lajolo como chefe da Governadoria. De fato, em 03-01-2010, Bertone celebra 75 anos, a idade de aposentadoria para os prelados, e Viganò deseja substituí-lo no cargo, cuja incumbência é normalmente destinada à púrpura cardinalícia. Mas o seu mau caráter o levou a rejeitar a candidatura.
Na época, segundo Marco Tosatti, que depois o ajudou a moldar o seu “testemunho” contra o Papa Francisco, propuseram-lhe abandonar a ideia da Governadoria e ser o responsável pela Prefeitura dos Assuntos Econômicos, órgão gerenciador das finanças da Santa Sé e cujo presidente geralmente era promovido a cardeal (5).
Ele sucederá o Cardeal Velasio de Paolis, a quem Bento pedira recentemente para supervisionar a reforma dos Legionários de Cristo. Mas Viganò se recusou. “Uma recusa clara: ou a Governadoria ou nada”, afirma Marco Tosatti. Finalmente, ofereceram-lhe a nunciatura de Washington e, mesmo assim, ele resistiu, acreditando que esta saída da Governadoria correria o risco de apagar os esforços feitos em vista de uma melhor gestão.
Na carta enviada a Bento XVI em 07-07-2011, Viganò também justifica o desejo de permanecer em Roma devido à saúde debilitada de seu irmão mais velho, de quem quer continuar cuidando.
“Estou também angustiado pelo fato de que, quando infelizmente tenho de cuidar pessoalmente de um dos meus irmãos, padre e mais velho que eu, que foi severamente afetado por um acidente vascular, o que aos poucos o enfraquece, incluindo do ponto de vista mental, devo sair precisamente no momento em que previ a possibilidade de resolver este problema familiar que tanto me preocupa”, diz ele ao papa.
“O que ele escreve ao papa é falso”, diz O Pe. Lorenzo Viganò ao Corriere della Sera em 2013, reconhecendo que o religioso sofrera um derrame em 1996 (6). “Quando Carlo Mario escreveu uma carta ao papa em julho de 2011, não só ele não estava ‘pessoalmente’ cuidando de mim, mas as nossas relações tinham se interrompido há muito tempo, no começo de 2009, após tensões entre nós por causa de herança, que inclusive levou a uma ação civil perpetrada por mim contra ele em 2010 diante de um tribunal de Milão”, continua.
Jesuíta e biblista morando em Chicago na época, o irmão do arcebispo revela uma disputa sombria relativa à herança, em um cenário de exílio fiscal. Depois da morte do pai em 1961, os oito filhos da família Viganò decidiram gerir em conjunto a herança, várias dezenas de milhões de euros, como confirmado por Emiliano Fittipaldi no livro Avarizia (7).
“Depois da morte do meu irmão Giorgio, que apropriadamente administrava o patrimônio de Viganò, descobri que Carlo Maria havia vendido as nossas propriedades comuns e me deixara apenas algumas migalhas”, contou Viganò ao Il Giornale. “O meu irmão furtou de mim vários milhões de euros. Explorando uma antiga procuração, ele fez de tudo” (8).
Uma das irmãs, Rosanna, também acusa o arcebispo de tê-la traído. No final de 2012, Rosanna chegou a ir aos tribunais no cantão suíço de Graubünden.
Segundo disse, ela lhe havia dado 900 milhões de liras (quase 500 mil euros) para comprar um apartamento por 430 mil francos suíços. A propriedade foi registrada em nome de Dom Viganò, o qual, em decorrência da cidadania vaticana, tinha isenção de impostos. Em 2012, no entanto, ele decidiria vender o apartamento sem notificar a irmã nem pagar a ela qualquer quantia.
Em reportagem citada por Emiliano Fittipaldi no livro Avarizia, Rosanna Viganò explica o que aconteceu na audiência judicial suíça em 2013.
“Carlo Maria Viganò se tornou o secretário da Nunciatura em Bagdá por volta de 1973. Desde então, ele tem passaporte diplomático. Na Itália, era a época das Brigadas Vermelhas. Desse momento em diante, ele decide transferir os nossos ativos para a Suíça. Na presença de minha mãe, deu o meu dinheiro para Carlo Maria. Ele depositou o dinheiro em uma conta no Credit Suisse, em Lugano.
“Dei a ele aproximadamente 500 milhões de liras, depois mais duas parcelas de 200 milhões de liras cada. No total, quase 900 milhões de liras. Carlo Maria disse que o meu dinheiro seria colocado numa conta chamada Cioppi, apelido que foi dado por ele à minha filha. Os recibos permaneceriam com o banco, como combinado com os nossos irmãos. Sei que Carlo Maria também colocou dinheiro em uma conta do UBS. Era o [mesmo] dinheiro, ou parte dele, [que foi] transferido pelos nossos irmãos do Banco Ambrosiano para o Banco Gotthard”.
De acordo com a advogada de Rosanna, Viganò fez amplo uso de seu status diplomático para transferir “somas consideráveis” para contas do UBS e do Crédit Suisse.
Finalmente, em 2014, o conflito entre o irmão e a irmã resultou num acordo em que ele lhe pagou 180 mil francos suíços (160 mil euros); Rosanna alega que doou o valor a um hospital da Tanzânia, onde sua filha trabalhava como voluntária.
Enquanto isso, o Pe. Lorenzo Viganò também processava o irmão. Se os demais irmãos, com exceção de Rosanna, acreditavam que o jesuíta acabara “manipulado” pelo seu meio, o caso termina em outubro de 2018, quando Dom Viganò é obrigado por um tribunal a pagar ao irmão a quantia de 1,8 milhão de euros.
Segundo o tribunal, citado pela Agenzia Nazionale Stampa Associata – ANSA, a gestão solitária feita pelo arcebispo sobre a herança comum das propriedades de valor na casa de 20,5 milhões de euros e 7 milhões em dinheiro vivo deu a Viganò “um lucro líquido de 3,649 milhões de euros”, enquanto “4,8 milhões de euros” lhe foram pagos também. Por sua vez, o irmão recebeu “apenas” 1,7 milhão de euros (9).
Viganò era, pois, um homem rico na época. Muito rico, especialmente para um prelado vaticano em que os salários raramente excedem os 2 mil euros mensais. Emiliano Fittipaldi informa ainda que o nome do religioso fora mencionado em um outro caso financeiro que envergonhou o Vaticano.
Em 2010, depois de um relatório da Unidade de Informação Financeira do Banco da Itália, o escritório do procurador público de Roma bloqueou 23 milhões de euros que o Instituto para as Obras de Religião – IOR havia depositado em uma conta do Credito Valtellinese.
Em particular, a investigação possibilitou acabar com as más práticas de dois altos funcionários do IOR, condenado por tribunais vaticanos no início de 2018 por fundos de reciclagem. Em novembro de 2014, tribunais italianos finalmente liberaram o dinheiro, depois que o IOR comunicou os nomes dos clientes que se beneficiavam da conta.
Pareceu então evidente que quase 3,8 milhões de euros foram alocados para Viganò, quantia destinada à caridade, incluindo um mosteiro em Burundi, como explicou ele a Emiliano Fittipaldi.
Na época, Dom Viganò já era núncio apostólico nos EUA havia bastante tempo. Cansado dos confrontos na Itália, finalmente aceita o cargo, que o manda para longe do Vaticano, centro do poder. A nunciatura em Washington é um dos cargos mais prestigiados da diplomacia pontifícia, visto que o incumbente é geralmente criado cardeal, como aconteceu com os cardeais Pio Laghi e Agostino Cacciavillan; sem dúvida, este seria o caso de Dom Pietro Sambi se não viesse a morrer prematuramente.
Além disso, nos EUA, Viganò não corta totalmente os laços com as questões financeiras com que lidava na Governadoria.
Os Estados Unidos são, com efeito, um dos principais provedores de fundos para o Vaticano: um terço das contribuições para a Praça de São Pedro, o principal recurso de caridade do papa, vem dos EUA, enquanto as dioceses e congregações religiosas americanas contribuem com 28% do pagamento voluntário que cada instituição religiosa faz anualmente à Santa Sé.
Isso empresta ao catolicismo americano um peso considerável no Vaticano, explicando a forte presença dos EUA no conclave de 2013, com 11 cardeais eleitores, o segundo maior colégio depois da Itália.
Durante o período em que ficou na nunciatura americana, Dom Viganò também se destacou pela proximidade junto aos círculos conservadores, cujas figuras ele promoveu aos assentos cardinalícios, tais como Charles Chaput, da Filadélfia, e Salvatore Cordileone, de San Francisco. Incentivado pelos cardeais Justin Rigali e Raymond Burke, que conta com a estima de Bento XVI, estes bispos encamparam a luta contra as políticas do governo Obama, com um foco especial na questão do aborto – excluindo, como veremos, quaisquer outras considerações.
Mas com a eleição de Francisco, as coisas mudam. O novo papa apoia perfis mais sociais, mesmo que não sejam necessariamente menos pró-vida. “A falha imperdoável deles, aos olhos de Viganò e de seus apoiadores na Igreja americana e na Cúria Romana, é uma só: são um pouco menos conservadores e um pouco menos guerreiros culturais do que os antecessores”, resumem os jornalistas Tornielli e Valente. “Eles defendem a vida nascente e combatem a eutanásia, mas não reduzem a defesa da vida a batalhas somente nas fases embrionárias e terminais, lembrando também que há outros 70 ou 80 anos entre as duas. E assim lutam contra o racismo, pelos direitos dos imigrantes e suas famílias, pelos pobres, sem-teto e desempregados, pelas vítimas da crise econômica provocada pela idolatria do dinheiro” (10).
O exemplo mais óbvio da fenda que se abriu entre Francisco e seu enviado aos EUA é dado durante a viagem do papa a esse país em setembro de 2015, que buscou, entre outros objetivos, acalmar as tensões entre a Igreja e o governo Obama.
Certa noite, no final de um jantar na nunciatura, Viganò reuniu-se em privado com o papa para perguntar se este concordaria em se encontrar “de maneira completamente confidencial e sem a presença da imprensa” com Kim Davis, escrivã de Kentucky que ficou conhecida poucas semanas antes por se recusar a emitir licenças de casamento a cônjuges do mesmo sexo. Um gesto pelo qual ela chegou a passar cinco dias na prisão no começo do mês, transformando-se na musa dos círculos conservadores evangélicos, apesar dos seus três divórcios e quatro casamentos católicos.
“O papa imediatamente se mostrou favorável à iniciativa, mas acrescentou que o encontro poderia ter implicações políticas, dizendo: ‘Eu não entendendo dessas coisas; seria bom ouvir a opinião do Cardeal Parolin’”, disse Viganò.
No entanto, quando ele chega ao hotel onde o secretário de Estado está hospedado, o político já havia se retirado para o quarto. O núncio explica, portanto, o seu pedido a Dom Angelo Becciu, substituto da Secretaria de Estado, que era favorável, e a Dom Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, que pede para verificar se há ainda algum processo contra Davis.
Viganò chama o consultor jurídico da nunciatura, que lhe garante não haver mais nenhum obstáculo processual: “Gallagher mostrou-se incondicionalmente favorável para que o papa se encontrasse com Davis”, continua o núncio, pontuando que no dia seguinte havia informado o papa da opinião positiva de seus dois principais colaboradores que, entretanto, haviam conversado com Parolin sobre o encontro: “O papa então aceitou”.
O núncio organiza a visita de Kim Davis à nunciatura, explica ele, visto que já se encontravam em Washington. Ela promete não falar com a imprensa sobre o encontro antes do retorno do papa a Roma. Na tarde de 24 de setembro, pouco antes de partir de Washington para Nova York, o papa se encontrou com ela e seu marido no salão da nunciatura. “Ele a beijou com carinho, lhe agradeceu pela coragem e a convidou a perseverar”, diz Viganò. “Davis ficou muito emocionada e começou a chorar”.
O anúncio deste encontro, uma vez que o papa está a caminho de volta a Roma, colocará novamente em primeiro plano as polarizações políticas que Francisco havia exatamente conseguido evitar durante a viagem aos EUA, cancelando parte do benefício de viagem a Cuba e aos EUA considerada, até então, amplamente bem-sucedida.
“Eu não sabia quem era essa mulher. [O núncio] a trouxe a mim para que a cumprimentasse e, claro, fizeram uma grande publicidade a respeito. Fiquei horrorizado e mandei de volta este núncio”, teria dito o papa a Juan Carlos Cruz, vítima de abuso sexual que discutiu o caso com ele em 2018. “O papa se sentiu traído e achou que não tinha sido suficientemente bem informado pelo núncio”, confirmam Tornielli e Valente (11).
No começo de outubro, Viganò é convocado ao Vaticano. “Você deve vir imediatamente a Roma, porque o papa está furioso com você”, conta-lhe o Cardeal Parolin em entrevista por telefone. De acordo com Viganò, no entanto, durante uma entrevista de quase uma hora que Francisco lhe concedeu na noite de 9 de outubro, o pontífice estava “muito carinhoso e paterno”.
“Imediatamente ele se desculpou pelo inconveniente de me chamar a Roma e me agradeceu pela forma como organizei a visita aos Estados Unidos, além da incrível hospitalidade recebida no país”, diz ele. “Para minha grande surpresa, durante esta longa reunião, o papa não mencionou uma única vez a audiência com Davis”.
Após a audiência, Viganò chegou a se dar ao luxo de telefonar para Parolin: “O papa tem sido tão bom comigo”, disse ele. “Nenhuma palavra de censura, apenas parabéns pelo sucesso de sua visita aos Estados Unidos”. O secretário de Estado respondeu: “Isso é impossível, ele estava furioso com você”.
A versão de Viganò é fortemente contradita pelo Pe. Federico Lombardi, então diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, que frequentemente o assessora em se tratando de língua inglesa. Eles se reuniram com o núncio no dia seguinte à audiência papal, em seu apartamento no Vaticano.
De acordo com as notas escritas do Pe. Rosica depois do encontro, Viganò teria dito que “o Santo Padre, em sua benevolência paterna, agradeceu-me pela visita aos Estados Unidos, mas disse que eu o havia enganado ao lhe apresentar esta senhora na nunciatura”.
Alguns meses depois, em 12-04-2016, o papa aceitou a renúncia de Viganò. Já que ele havia, três meses antes, chegado à idade de 75 anos, quando os prelados se aposentam, o fato não se configura como uma punição estritamente falando. No entanto, visto que a sua renúncia foi aceita no mesmo dia em que fora substituído pelo francês Christophe Pierre, cujo trabalho no México impressionara o papa, devemos dizer que o candidato para esse posto sensível da diplomacia vaticana foi achado em tempo recorde.
Além disso, quando volta a Roma, o ex-núncio tem uma desagradável surpresa ao saber que deveria devolver o espaçoso apartamento de 250 m2 que ocupava, livre de aluguel, na antiga Casa Santa Marta, quando era secretário-geral do Vaticano, e que havia conseguido manter apesar de sua ida para Washington (12).
Para além dessas críticas, há uma investigação interna sobre a forma como o religioso lidou com as acusações de abuso sexual contra Dom John Nienstedt, da Arquidiocese de St. Paul e Minneapolis, e um amigo. Segundo a imprensa americana, o núncio teria pedido aos bispos auxiliares que retirassem as acusações de abuso contra Nienstedt das investigações.
Mesmo nunca interrogado, Nienstedt renunciou em 2015 após outras acusações, desta vez pela má conduta diante das acusações de abuso clerical em sua diocese. Quanto a Viganò, embora a investigação vaticana não questione a sua responsabilidade, todos esses aborrecimentos o magoaram profundamente e o amarguraram.
Agora sem ocupação e aposentado em Milão, Viganò aproxima-se dos círculos mais conservadores da Igreja e daqueles que mais se opõem ao Papa Francisco, especialmente os que contestam o ensino moral papal desenvolvido na esteira dos dois sínodos sobre a família em 2014 e 2015. No centro do debate está a possibilidade evocada da exortação apostólica Amoris Laetitia, publicada em 2016, de permitir “em alguns casos” o acesso aos sacramentos a pessoas divorciadas e que voltaram a se casar, o que alguns episcopados têm permitido desde então.
Em novembro de 2016, quatro cardeais – os alemães Walter Brandmüller e Joachim Meisner, o americano Raymond Burke e o italiano Carlo Caffarra – até escreveram ao papa pedindo que tirasse suas “dúvidas” (dubia, em latim) sobre o assunto. Desde então eles continuam criticando o papa e declararam que este, apesar de suas muitas intervenções públicas sobre o tema, não iria responder formalmente à solicitação.
Em 31-12-2017, Viganò assinou um texto elaborado pelos bispos do Cazaquistão, que desafiava Amoris Laetitia e afirmava que “não é lícito (non licet) justificar, aprovar ou legitimar, seja direta ou indiretamente, o divórcio e uma relação sexual estável não conjugal” ao admitir os ‘divorciados e recasados’ à sagrada comunhão; neste caso, uma disciplina alheia a toda a tradição da fé católica e apostólica”.
Em 07-04-2018, ele também participou de um simpósio da Associação dos Amigos do Cardeal Caffarra, um dos signatários das dubia que havia falecido nesse meio tempo, evento no qual alguns não hesitaram em evocar as possíveis “heresias” do ensinamento de Francisco.
De fato, Viganò é um representante emblemático deste bloco opositor que enfrenta o papa, no Vaticano e em outros lugares, em seu desejo de reformar. No discurso à Cúria em 22-12-2014, o papa trouxe 15 “doenças” (13), entre elas a rivalidade, a vaidade, a fofoca e a calúnia. Longe de constituir uma maioria na Cúria, essas pessoas são numerosas o suficiente para pôr obstáculos no caminho das reformas (14).
As relutâncias delas são, contudo, compreensíveis: durante anos, no final do pontificado de João Paulo II e sob o de Bento XVI, elas literalmente administravam a Igreja a partir do Vaticano, ditando, às vezes nos menores detalhes, o que consideram a conduta correta para os bispos, sem hesitar em instruí-los e puni-los.
No entanto, o desejo do papa por uma Igreja mais sinodal e uma melhor consideração das diversidades locais, juntamente com as advertências que profere contra o perigo de “se reduzir o povo de Deus às pequenas elites”, atinge os que se dedicaram a vida inteira a uma carreira na Igreja, em que uns poucos lugares disponíveis devem ser também compartilhados com leigos e mulheres.
Certamente “o Vaticano não é monolítico”, observa Marco Politi do jornal La Repubblica. “Há um núcleo de bispos satisfeitos com a nova orientação e que agradece o conclave pela escolha” (15). No entanto, se Francisco teve tempo de montar a sua equipe, uma minoria ainda é capaz de apertar o freio o suficiente para impedir as reformas.
“Rezo pelo papa porque um dia, quando a lua de mel terminar e chegar a hora de tomar decisões, eles o aguardarão aos pés do muro”, disse a Marco Politi, em 2014, o cardeal francês Roger Etchegaray, que trabalhou na Cúria sob o comando de João Paulo II (16). Este dia chegou em uma manhã chuvosa de verão.
Mesmo assim, nesta tentativa de golpe de Estado que o papa precisou enfrentar, Dom Viganò foi apenas um instrumento. Visto que ele somente desempenhou o papel de “oficial faccioso”, é em outro lugar que devemos procurar os seus patrocinadores, especialmente nos Estados Unidos, onde representou a Santa Sé por cinco anos, mas onde, nos últimos anos, a oposição ao Papa Francisco também se cristalizou.
1) Gianluigi Nuzzi, Sua Santità, Milão, Chiarelettere, 2012.
2) Éric Sénanque, “Carlo Maria Viganò, the controversial prelate who accuses Pope François”, Le Point, 29 ago. 2018.
3) “L’intelligence vaticana e quel prelato al lavoro”, Il Giornale, 5 fev. 2011.
4) Nicolas Diat, op. cit., p. 255.
5) Marco Tosatti, “Viganò Nunzio negli Usa”, La Stampa, 25 ago. 2011.
6) Maria Antonietta Calabrò, “Mio fratello mentì a Ratzinger”, Corriere della Sera, 16 març. 2013.
7) Emiliano Fittipaldi, Avarizia, Milão, Feltrinelli, 2015.
8) Stefano Zurlo, “Altro che moralizzatore, mio fratello mi ha derubato”, Il Giornale, 18 març. 2013.
9) “Mons. Viganò dovrà risarcire il fratello”, ANSA, 15 nov. 2018.
10) Andrea Tornielli and Gianni Valente, op. cit.
11) Jason Horowitz, “The Man Who Took On Pope Francis. The Story Behind the Viganò Letter”, The New York Times, 28 ago. 2018.
12) Fabio Marchese Ragona, “Il mega attico del nunzio Viganò ora crea malumori”, Il Giornale, 27 març. 2013.
13) Discurso do Papa Francisco à Cúria Romana na apresentação de votos natalícios, 22 dez. 2014.
14) Não se consegue expressar o quanto muitos homens e mulheres que trabalham na Cúria são discretamente dedicados – talvez até demais às vezes – às suas missões a serviço do papa.
15) Marco Politi, François parmi les loups, Samuel Sfez (traduzido), Paris, Philippe Rey, 2015, p. 189.
16) Ibid, p. 199.
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