26 Abril 2018
Na primeira vez que entrevistei Juan Carlos Cruz, há oito anos, ele continuava tão envergonhado pelo que lhe tinha acontecido que não sabia se devia compartilhar publicamente seu nome. Quando era jovem no Chile, foi abusado sexualmente por Fernando Karadima, um dos padres mais proeminentes do país. O Vaticano condenou-o por pedofilia e o afastou do cargo.
A entrevista é de Laurie Goodstein, publicada por The New York Times, 24-04-2018. A tradução é de André Langer.
Agora, Cruz e outras duas vítimas de Karadima passarão uma semana no Vaticano para se encontrar com o Papa Francisco, que reconheceu de maneira extraordinária ter cometido “graves erros” na maneira como lidou, até então, com os casos de abusos sexuais perpetrados por sacerdotes no Chile. Durante muito tempo, Francisco defendeu o bispo Juan Barros, a quem as vítimas de Karadima acusam de ter testemunhado e acobertado os crimes do padre.
Os comentários do Pontífice acerca de que essas pessoas estavam cometendo “calúnias” provocaram a fúria internacional e levaram o Papa a ordenar uma investigação sobre as denúncias. Ao receber os resultados, pediu perdão publicamente junto às três vítimas: Juan Carlos Cruz, James Hamilton e José Andrés Murillo.
Antes da viagem para o Vaticano, conversei com Cruz, que agora mora na Filadélfia. As respostas foram ligeiramente editadas e abreviadas.
Você aceita as desculpas do Papa Francisco?
Eu não penso que seja uma atividade de relações públicas. Espero ansiosamente falar com ele com sinceridade e ouvir o que ele tem a dizer. Foi me dito que ele quer que eu seja completamente honesto com ele.
O que você quer acentuar?
Principalmente a dor e o sofrimento de tantas pessoas, e algumas delas sofreram muito mais do que eu. Eu sofri muito, mas tive amigos que cometeram suicídio. Eu tenho que me assegurar de que o nosso caso não seja tratado como algo isolado. Parece que a mochila está mais pesada do que nunca.
Durante anos você era visto como um adversário da Igreja Católica, especialmente no Chile, onde você e seus amigos acusaram os bispos de acobertamento. Entretanto, você não ingressou na comunidade católica do padre Karadima em Santiago porque queria ser padre?
Quando eu entrei, eu tinha 15, 16 anos. Meu pai acabara de morrer e eu estava muito fragilizado. E eu era um bom menino. Eu queria mudar o mundo. Desde criança eu queria ser padre. Eu queria morrer como mártir na África se isso significasse que eu aproximaria as pessoas de Deus. Eu tive todos esses sonhos.
Por que você os abandonou?
Houve um abuso em massa. Este homem, o padre Karadima, estava abusando de crianças e jovens de 1958 a 2010 ou 2011. Eu estive aí por oito anos, nesse ambiente, sob o seu feitiço.
Seu feitiço! Eu sei que ele era muito poderoso na Igreja Chilena e que alguns de seus discípulos se tornaram bispos. Mas você faz parecer que ele era mais do que um simples padre.
Eles o chamavam de “santito”, santo. Provavelmente ele teria sido feito santo se as pessoas não tivessem quebrado o silêncio sobre os abusos. As pessoas guardavam as coisas que ele lhes dava porque todos esperam que ele fosse canonizado. Se ele lhe desse um livro e o assinasse, você o guardava como uma relíquia.
Você insistiu em que o bispo Juan Barros Madrid e outros no Chile que foram orientados pelo padre Karadima estavam cientes dos abusos sexuais. Mas, como você sabe que eles sabiam?
Eles testemunharam quando Karadima beijava alguém nos lábios ou colocava a língua na boca de alguém. Ou quando estávamos no quarto de Karadima e ele dizia: “Agora todo mundo para fora”. Todos sabiam o que acontecia depois disso. Mas ninguém nunca disse nada sobre isso.
O quanto foi difícil para vocês, Jimmy e José Andrés tomar a decisão de entrar com um processo civil e tornar o caso público?
Lembro-me da primeira vez que nos encontramos com o advogado, Juan Pablo Hermosilla. Eu só sabia que ele era um advogado famoso que tinha lutado contra o ditador Augusto Pinochet. Ele me disse: “Eu quero que você tenha muita certeza do que está fazendo, porque você é homossexual e eles vão cair em cima de você de um jeito que não é capaz de imaginar”. E foi exatamente isso que aconteceu. Chegou ao ponto que [o cardeal chileno Francisco Javier] Errázuriz disse, certa vez, que talvez eu tivesse gostado de ser molestado, razão pela qual ele não tinha certeza se eu era realmente uma vítima. Acontece que ser homossexual era o menor dos meus sofrimentos, porque a maneira como eles tratavam a todos nós era horrível.
E o cardeal Errázuriz é um dos nove que o Papa Francisco escolheu para fazer parte do seu conselho de nove assessores?
Certo. É isso que eu quero perguntar ao Papa: como pode ter George Pell [cardeal australiano acusado de abuso sexual] e Francisco Errázuriz em seu conselho? Tenho certeza de que existem outros cardeais por aí que são pessoas boas; existem cerca de 120 para escolher.
Parece que você está com raiva do Papa. É isso mesmo?
Houve momentos em que eu estava com raiva dele. Eu não quero ficar com raiva dele e entendo que as pessoas cometem erros. Mas este é o homem mais bem informado do mundo. E isso é um ponto de interrogação para mim: por que não agiu mais rápido ou entendeu a situação mais rapidamente, em vez de fazer com que todos sofressem tanto?
É verdade que o Papa Francisco convidou os três para ficarem com ele na Residência Santa Marta?
Eu vou estar lá por uma semana. Provavelmente dormindo a três portas dele. Ele quer se encontrar individualmente com cada um de nós e ele reservou sua agenda no domingo [29 de abril] para se encontrar comigo. Mas esse encontro, por mais que eu fique honrado com ele, não servirá para nada se não resultar em ações concretas. E remover alguns bispos também não será suficiente.
Parece que você está esperando que o Papa Francisco remova o bispo Barros por não ter denunciado os abusos de Karadima.
Bem, suponho que sim.
E se ele não o fizer?
Vai ser uma coisa muito ruim. Vai ser muito decepcionante; a maior decepção que já tive.
Você não acha que ainda há uma parte de você que quer que o Papa seja um pastor para você? O pastor que o padre Karadima não foi?
Provavelmente. Porque eu tenho uma imagem do Papa que, por mais fragmentada que seja, é o Papa. Espero que todos nós tenhamos algum tipo de cura disso, para o nosso bem.
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Chile. “Todos sabiam o que acontecia”. Entrevista com Juan Carlos Cruz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU