29 Agosto 2018
“Creio que o comunicado de Viganò fala por si mesmo, e vocês têm a maturidade profissional para tirar as conclusões.” Com essas palavras, dirigidas aos jornalistas no voo de volta de Dublin, Francisco convidou a ler o dossiê de 11 páginas divulgado pelo ex-núncio nos Estados Unidos, Carlo Maria Viganò, que pede a renúncia do papa, acusando-o de ter acobertado o cardeal emérito de Washington, Theodore McCarrick, 83 anos, que mantivera relações homossexuais com seminaristas maiores de idade e sacerdotes.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada em Vatican Insider, 28-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Portanto, é preciso começar pela leitura atenta do texto, analisá-lo, separar os fatos relatados das opiniões e das interpretações. E, acima de tudo, das omissões.
A surpreendente decisão do diplomata vaticano de violar o juramento de fidelidade ao papa e o sigilo de ofício é mais um golpe contra Francisco desferido de modo organizado pelos mesmos ambientes que, há um ano, tinham tentado chegar a uma espécie de “impeachment doutrinal”, após a publicação da exortação Amoris laetitia. Tentativa fracassada.
Viganò é um dos signatários da “Profissão”, na qual se afirma que o magistério do Papa Bergoglio divulga o divórcio, e está bem conectado com os ambientes mais conservadores dos Estados Unidos e do Vaticano.
O fato de não se tratar simplesmente do desafogo de um homem da Igreja cansado da podridão que viu ao seu redor, mas sim de uma operação organizada há tempos e com cuidado, na tentativa de fazer com que o papa renuncie, é demonstrado pelo timing e pelo envolvimento da mesma rede midiática internacional que propaga há anos – muitas vezes servindo-se de anônimos – as reivindicações daqueles que gostariam de derrubar o resultado do conclave de 2013.
E é atestado pelos mesmos testemunhos escritos nos vários blogs pelos jornalistas que publicaram o dossiê Viganò: sempre na vanguarda na defesa da família tradicional, mas que não se importam em jogar a “bomba” justamente no dia em que Francisco concluía o encontro internacional das famílias com uma grande missa.
Comecemos pelos fatos, presumindo que o que foi afirmado por Viganò seja verdade. Em 22 de novembro de 2000, o frei dominicano Boniface Ramsey escreveu ao núncio apostólico nos Estados Unidos, Gabriel Montalvo, e o informou que tinha ouvido rumores de que McCarrick tinha “compartilhado a cama com seminaristas”.
Um dia antes, 21 de novembro, João Paulo II nomeara McCarrick como arcebispo de Washington. Viganò observa que essa sinalização transmitida pelo núncio à Secretaria de Estado, liderada então pelo cardeal Angelo Sodano, não teve qualquer desdobramento.
Deve-se notar: a primeira denúncia que chegou à nunciatura e, daí, ao Vaticano foi imediatamente posterior à nomeação a Washington. No entanto, pode-se perguntar por que, se esses rumores sobre McCarrick eram tão generalizados e insistentes, essa nomeação não lhe foi impedida: a nomeação como auxiliar de Nova York (em 1977, no fim do pontificado de Paulo VI), depois a nomeação como bispo de Metuchen (em 1981, no início do pontificado de João Paulo II), em seguida a transferência para a Arquidiocese de Newark (em 1986, novamente com o Papa Wojtyla) e, enfim, a promoção a Washington (2000) e a criação cardinalícia (2001).
No ano seguinte à promoção a Washington, portanto, Wojtyla incluiu McCarrick no Colégio Cardinalício. No seu dossiê, Viganò descarrega a “culpa” – sem qualquer indício – da nomeação sobre Sodano, explicando que o papa na época já estava doente e quase incapaz de entender e de governar a Igreja.
Qualquer pessoa que tenha conhecimento das coisas vaticanas sabe que isso não é verdade, pelo menos, que não era verdade no ano 2000: João Paulo II viveria ainda por mais cinco anos. E sabe-se também que, na época, na restrita comitiva wojtyliana que controlava as nomeações, estavam o secretário particular do papa, Stanislaw Dziwisz (um nome que Viganò omite), e o substituto da Secretaria de Estado, depois prefeito dos bispos, Giovanni Battista Re (que Viganò nomeia, mas livrando-o).
Essa primeira sinalização, sem denunciantes que assumissem a responsabilidade em primeira pessoa, talvez não era considerada confiável? Ou o poder – inclusive financeiro – de McCarrick foi capaz de abrir portas vaticanas que deviam permanecer fechadas? Uma dúvida pode ser levantada sobre a nomeação a Washington, mas por que ninguém pensa em investigar o período anterior à elevação cardinalícia do ano seguinte? Sodano não transmitiu a denúncia ao papa? Por que o núncio, se estava tão certo dos abusos cometidos contra seminaristas e padres (sempre maiores de idade), não insistiu pedindo uma audiência a João Paulo II?
Novas denúncias chegaram em 2006, quando o papa era Bento XVI, e o secretário de Estado era Tarcisio Bertone. Desta vez, entra em cena um ex-padre e abusador de crianças, Gregory Littleton, que entregou ao núncio nos Estados Unidos (naquele momento, Dom Pietro Sambi) uma memória na qual conta que ele também havia sido assediado sexualmente por McCarrick (também quando era maior de idade).
Viganò preparou uma nota para os superiores, que não responderam. Vale a pena recordar que, naquele momento, McCarrick, no entanto, já estava aposentado: o novo papa, Bento XVI, em 16 de maio de 2006, aceitou a renúncia devidamente apresentada no ano anterior, em 7 de julho de 2005, ao chegar aos 75 anos canônicos.
Se os rumores e as denúncias eram tão difundidos e conhecidos, por que McCarrick não foi imediatamente demitido quando completou 75 anos? Em 2008, circulavam novas acusações de comportamentos impróprios de McCarrick, e novamente Viganò escreveu que havia enviado mais uma nota aos superiores. Desta vez, algo parece ter se movido, embora com os tempos não muito rápidos da burocracia vaticana. De fato, uma ordem sancionatória de Bento XVI teria sido emitida contra o cardeal já emérito e aposentado.
Sobre a data dessa sanção, Viganò não é específico: naquele momento, ele abandonou o posto na Secretaria de Estado, onde coordenava o trabalho da equipe das nunciaturas e foi nomeado como secretário do Governatorato.
Então, se Viganò diz a verdade – e devemos presumir que sim – “em 2009 ou em 2010”, Bento XVI interveio e presumivelmente ordenou que McCarrick levasse uma vida retirada, de oração, e não morasse mais no Seminário Neocatecumenal Redemptoris Mater aberto por ele em Washington.
Essa ordem de Bento não se tornou pública e foi transmitida oralmente pela Santa Sé ao núncio em Washington (Sambi) para que a comunicasse ao interessado. Indulgência para um cardeal já velho e aposentado ao qual se quer poupar a vergonha da sanção pública? Ou as provas não haviam sido consideradas suficientes por Bento XVI, que, se estiver na origem da sanção, obviamente devia ter sido adequadamente advertido sobre o que McCarrick havia cometido?
O Papa Ratzinger, portanto, sabia, mas achou suficiente recomendar ao cardeal já aposentado que permanecesse tranquilo, à margem. Vale a pena recordar: ninguém nunca falou, muito menos denunciou, abusos contra menores. Estamos falando de assédio de pessoas maiores de idade, mas que se apresentam como verdadeiros abusos, já que foi o bispo que convidou seus seminaristas ou seus próprios padres para a cama: não existe uma situação de paridade; antes que sexual, é um abuso de poder clerical. Embora ninguém tenha dito que, para convidar os seminaristas já próximos do sacerdócio e jovens padres para irem dormir com ele, o “tio Ted” (como McCarrick pedia para ser chamado) usou formas de violência ou ameaças.
Podemos nos perguntar: se esses fatos graves eram tão claros e evidentes, por que não se impôs ao cardeal uma sanção exemplar e pública, pedindo-lhe que vivesse retirado em penitência?
Alguma dúvida sobre o conteúdo real das sanções é mais do que lícita, especialmente à luz do que aconteceu depois. O dossiê de Viganò dá a entender que, nos últimos três ou quatro anos do pontificado ratzingeriano, McCarrick viveu como um eremita ou como um monge de clausura e que, somente após a eleição de Francisco, a gaiola foi aberta para ele.
Mais uma vez é preciso nos atermos aos fatos documentados, e vemos que isso não é totalmente verdade. A realidade é diferente, documentada e documentável. Está ao alcance de todos, basta clicar na web.
Durante os últimos anos do pontificado de Ratzinger, McCarrick não mudou o seu modo de vida: é verdade que ele deixou o seminário onde residia, mas celebrou ordenações diaconais e sacerdotais ao lado de importantes purpurados da Cúria Romana e estreitos colaboradores do Papa Ratzinger, e proferiu conferências.
Em 16 de janeiro de 2012, ele participou, junto com outros bispos estadunidenses, de uma audiência com Bento XVI no Vaticano, e o seu nome entre os participantes foi relatado no Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé. Em 16 de abril de 2012, ele se encontrou novamente com Bento na audiência da Papal Foundation e festejou o aniversário do pontífice junto com todos os presentes. Viajou e voltou para Roma em fevereiro de 2013 para se despedir do papa renunciante que apertou a sua mão sorridente (tudo imortalizado pelas câmeras da TV vaticana).
É evidente que a sua posição não era considerada tão grave, que os indícios de culpabilidade não eram julgados tão evidentes, e que as sanções não deviam ser tão restritivas.
E até mesmo o próprio Viganò, enquanto havia sido afastado pelo Vaticano por decisão de Bento XVI que o “promoveu” como núncio em Washington, não parecia preocupado com a situação. Estão documentadas as suas participações em eventos públicos com o purpurado molestador, como concelebrações nos Estados Unidos ou como a atribuição de um prêmio a McCarrick (2 de maio de 2012, no Pierre Hotel, em Manhattan), cerimônia durante a qual Viganò não parecia estar nada indignado ou envergonhado de se deixar fotografar ao lado do velho cardeal molestador. Por que, então, quando ele tinha o poder de chegar diretamente a Bento XVI, na qualidade de seu representante em uma das sedes diplomáticas mais importantes do mundo, o núncio Viganò não se rebelou, não agiu, não pediu uma audiência, não fez com que se respeitassem as disposições restritivas?
O papa atual, verdadeiro e único alvo de toda a operação, entrou em cena em junho de 2013, poucos meses depois da sua eleição. Lembremos: McCarrick, com mais de 80 anos, não participou do conclave, era um cardeal aposentado, mas hiperativo. Continuava viajando pelo mundo, fazendo conferências, presidindo celebrações.
Viganò foi a uma audiência com Francisco. Foi o papa que lhe fez uma pergunta sobre McCarrick, e Viganò lhe ressaltou que o cardeal “corrompeu gerações de seminaristas e de sacerdotes” e que há um dossiê no Vaticano que atesta isso.
Atenção: não é Viganò que fala de modo preocupado sobre o cardeal. É o papa que pede uma opinião. O núncio não diz ter entregue a Bergoglio uma nota sobre o caso nem que lhe pediu para intervir. Hoje, indignado, Viganò escreve sobre as sanções de Bento XVI que ninguém conhece, mas – sempre se admitindo que elas existem – ele, como núncio, parece não ter agido para que fossem respeitadas. Essa resposta é tudo o que ele diz ao papa.
Viganò escreve ainda que o velho cardeal teria se tornado, nos primeiros anos do pontificado de Francisco, um de seus conselheiros, particularmente para as nomeações estadunidenses. Ele não apresentou, pelo menos até agora, nenhuma prova. Em vez disso, ele defende – e aqui também não há nenhuma razão para não acreditar nele – que, naquele primeiro encontro de junho de 2013, o novo papa teria recomendado a ele: “Os bispos nos Estados Unidos não devem ser ideológicos, devem ser pastores”.
Como nos meses posteriores McCarrick também faria uma afirmação semelhante ao falar com um monsenhor da nunciatura (que referiu isso depois a Viganò), o ex-núncio que pede a renúncia do pontífice deduz disso que é precisamente McCarrick quem está por trás da atitude de Bergoglio em relação à Igreja dos Estados Unidos. Uma dedução muito fraca.
De fato, é muito mais simples e plausível supor que, por sua própria iniciativa, Francisco – que conhecia a Igreja estadunidense – repetiu a várias pessoas com as quais ele se encontrava essa frase sobre os bispos que “não devem ser ideológicos”, mas devem ser “pastores”. Além disso, para compreender que justamente esse é um dos pontos insistentes do seu magistério sobre o episcopado, basta ler os discursos do papa, que pensava isso muito antes do conclave de 2013.
Uma interessante refutação da teoria de Viganò surgiu nessa segunda-feira, 27, do ex-embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé, Miguel Diaz, nomeado em maio de 2009, que se disse surpreso ao ler as declarações de Viganò sobre as palavras de Francisco sobre os bispos estadunidenses, “porque logo me fizeram vir à mente que, durante o meu primeiro encontro com o núncio Sambi na sua residência em Washington [ainda estamos no pontificado de Bento XVI]”, ele disse que “precisamos de bispos estadunidenses que sejam menos políticos e mais pastorais, não guerreiros culturais”.
Portanto, já com o Papa Ratzinger, a indicação que chegava ao núncio apostólico nos Estados Unidos era a de nomear bispos pastores e não “guerreiros culturais”. Evidentemente, a questão do excessivo conluio do episcopado estadunidense com certas posições políticas e um certo interesse unilateral apenas por algumas questões éticas já era sentida como problemática no fim do pontificado ratzingeriano.
Passaram-se quatro anos e meio, e, em 2018, chegou ao Vaticano, pela primeira vez, a notícia de um abuso contra um menor cometido 50 anos antes por McCarrick, ainda jovem padre. A denúncia nunca havia sido apresentada antes, e ninguém – de acordo com o relatório de Viganò – havia falado sobre possíveis abusos contra menores que envolvessem McCarrick.
Um procedimento canônico regular por parte da Diocese de Nova York foi aberto rapidamente, com a transmissão dos atos à Congregação para a Doutrina da Fé. Também surgiram novas notícias, divulgadas pela Diocese de Newark, sobre dois acordos com indenizações que McCarrick pagou, ligadas a denúncias de assédio apresentadas por seminaristas maiores de idade na época dos fatos.
Com uma decisão que não tem precedentes na história recente da Igreja, Francisco não só impôs o silêncio e uma vida retirada a McCarrick (esse silêncio e essa vida retirada que antes não lhe tinham sido impostos ou, se lhe haviam sido impostos, ninguém tinha feito com que ele se ativesse às ordens), mas também lhe tirou o barrete cardinalício. O cardeal emérito de Washington não é mais cardeal, foi “despurpurado”.
Portanto, não basta se perguntar se aquilo que Viganò diz é verdade (como as mídias que clamam pela renúncia de Francisco repetem, quase como um mantra). É preciso se perguntar se a sequência descrita por Viganò, as suas considerações, as suas omissões, as suas interpretações são razoáveis e realmente levam a atribuir qualquer responsabilidade ao pontífice hoje reinante.
Em todo o caso, para permanecer nos fatos puros e crus, e pressupondo que cada detalhe contado pelo ex-núncio seja verdadeiro, eis o que aconteceu. Há um papa santo cuja comitiva (muito menos santa) promoveu e criou cardeal um bispo homossexual que abusava do seu poder, levando os seminaristas para a cama, embora não seja claro quantas informações diretas sobre isso haviam chegado ao ouvido de João Paulo II, então perfeitamente capaz de entender e de querer, ao qual certamente não podia passar despercebida a importância da nomeação do arcebispo de Washington.
Há outro papa, hoje emérito, Bento XVI, que (talvez) teria ordenado a esse cardeal que vivesse retirado, mas sem ser capaz, depois, de fazer com que as suas ordens fossem respeitadas, vendo-o chegar ao Vaticano sem pestanejar em várias ocasiões, e sem que o seu núncio nos Estados Unidos (Viganò) tivesse qualquer problema em ser fotografado com ele, concelebrando com ele, jantando com ele, fazendo discursos na sua presença.
E, finalmente, há um papa, Francisco, que, em relação a esse cardeal, embora idoso e aposentado há muito tempo, tirou magistralmente a púrpura depois de tê-lo reduzido ao silêncio, proibindo-o de celebrar em público.
Porém, é deste último que o ex-núncio hoje indignado pede a cabeça, provavelmente apenas porque Francisco “ousou” nomear nos Estados Unidos algum bispo menos conservador em relação aos nomeados anteriormente, quando quem aconselhava as nomeações estadunidenses eram cardeais como Bernard Law.
A instrumentalidade da operação é evidente para qualquer pessoa que reflita sobre a sucessão dos fatos, sem a necessidade de desenterrar informações que tendem a desacreditar a figura de Viganò.
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Fatos e omissões do dossiê Viganò contra o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU