10 Setembro 2019
O livro conta como três papas foram informados dos abusos sexuais cometidos por um prelado americano e como o caso desencadeou um ataque contra o Papa Francisco.
Autor: Nicolas Senèze
Título original: Comment l’Amérique veut changer de pape
Editora: Bayard Éditions, 276 p.
Ano: 2019
Nicolas Senèze é o enviado permanente em Roma do jornal católico francês La Croix.
A tradução do capítulo 1, intitulado “O homem do escândalo”, é de Isaque Gomes Correa a partir da versão inglesa disponível aqui, publicada em La Croix International, 13-08-2019.
Antes de mais nada, devemos primeiro olhar o rosto do homem que provocou o escândalo: o ex-cardeal Theodore McCarrick. A acusação feita por Dom Carlo Maria Viganò se baseia sobretudo no fato de que o ex-cardeal há tempos teria se beneficiado da leniência, ou lentidão, do Vaticano – o que está longe de ser falso –, mas também que o próprio Papa Francisco teria acobertado, o que é muito menos certo.
Hoje com 88 anos, McCarrick era uma das principais figuras da Igreja americana. Filho de um capitão de navio mercante falecido de tuberculose quando tinha recém 3 anos, este nova-iorquino completou estudos com notas brilhantes que o levaram à prestigiada Universidade Fordham, em Nova York, antes de entrar para o seminário.
Poliglota e dotado de grandes faculdades intelectuais, doutorou-se em sociologia em Washington, DC, depois viveu por 11 anos em Porto Rico, onde foi reitor da Universidade Católica. De volta à Grande Maçã, como é conhecida a cidade de Nova York, trabalhou de secretário particular para o cardeal-arcebispo Terence Cook, antes de se tornar um de seus bispos auxiliares em 1977.
Na época, ele já teria abusado de pelo menos um menino, aparentemente sem ninguém saber, o que permitiu a sua nomeação. Quatro anos mais tarde, foi nomeado bispo da recém-criada Diocese de Metuchen, Nova Jersey, antes de ser promovido a arcebispo em 1986 em Newark, próximo de sua cidade natal.
Foi aí que McCarrick recebeu João Paulo II, em outubro de 1995, durante a sexta viagem do papa aos Estados Unidos. A sua arquidiocese inclusive realizou uma reunião entre o papa e o presidente Clinton poucas semanas antes do Acordo de Dayton, durante o qual os dois líderes falaram em particular sobre a paz que estava surgindo na Bósnia.
Bastante familiarizado com questões internacionais, comprometido com temas sociais, firme na doutrina e com um conhecimento básico de polonês, aprendido nos encontros com imigrantes, McCarrick causou uma forte impressão no papa.
À época, no entanto, mesmo se não havia nenhuma acusação de abuso de menores, alguns prelados já questionavam a moralidade do arcebispo de Newark, em particular o Cardeal John O’Connor, o poderoso arcebispo de Nova York.
No livro que escreveram sobre o caso Viganò, os jornalistas italianos Andrea Tornielli e Gianni Valente citam um ex-presidente da organização da viagem papal de 1995, que diz lembrar que o cardeal de Nova York e outros clérigos do leste americano advertiram o Vaticano sobre os riscos que o papa enfrentava ao vir a Newark: “Disseram isso porque sabiam de alguma coisa – eles tinham ouvido sobre os problemas com os seminaristas” (1).
Em 1994, um padre escreveu ao sucessor de McCarrick em Metuchen, Dom Edward Thomas Hughes, para contar sobre o abuso sexual e psicológico que o seu então bispo infligira a ele. O padre alega que o trauma deixado por este bispo foi a causa dos abusos que ele próprio cometeu contra dois jovens de 15 anos.
As preocupações do Cardeal John Joseph O’Connor surgiram em 1999, quando foi anunciado que McCarrick sucederia o Cardeal James Hickey na prestigiosa sede de Washington, a capital federal.
Um arcebispo, na época envolvido no processo de nomeação, contou aos jornalistas Tornielli e Valente que Roma tinha então lançado uma investigação especificamente focada em McCarrick: “Roma queria saber mais sobre ele; havia um interesse específico, levantaram-se informações sobre ele”, explica. O religioso acrescenta que o Cardeal O’Connor mandou “uma carta de desculpas a Roma, em que mencionava um problema de assédio de natureza homoafetiva”.
“Ele falou que McCarrick era querido e bastante eficiente em angariar fundos. O’Connor reconheceu que o havia recomendado no passado, mas que agora, em consciência, achava que McCarrick não deveria ser escolhido. A carta sugeria ainda que se o papa fizesse esta nomeação, o clero americano iria ficar dividido, a reputação da hierarquia iria se destruir e que a Igreja ficaria salpicada de lama. Palavras que ressoam hoje como uma premonição”.
O Cardeal O’Connor endereçou a carta ao núncio apostólico, Dom Gabriel Montalvo, que a encaminhou a Roma, onde chegou em outubro de 1999. “Após esta primeira investigação sobre McCarrick, e considerando as opiniões do arcebispo de Nova York e outros, a Santa Sé conduziu uma segunda rodada de consultas, novamente entre os bispos”, diz a fonte citada pelos jornalistas. O’Connor depois faleceu de tumor cerebral em 03-05-2000 e não foi mais um opositor influente à promoção de McCarrick.
Segundo Dom Carlo Maria Viganò, Dom Giovanni Battista Re, que assumiu a dianteira da Congregação para os Bispos em 16-09-2000, também se opôs, em vão, à promoção de McCarrick, muito embora essa oposição deva ter sido bem difícil para ele.
“Devemos lembrar duas coisas, a saber, a oposição de Re e a mesma confiança de Re naqueles que lhe solicitaram a nomeação de McCarrick: foi um pedido pelo ‘apartamento’”, explica a mesma testemunha, dando a entender que a nomeação do arcebispo de Washington teria sido considerada na sessão plenária da Congregação para os Bispos, mas solicitada “muito diretamente” pelo seu famoso “apartamento”, expressão empregada para designar João Paulo II e seu ambiente imediato.
Contrariamente ao que afirma Viganò, não foi o Cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado de João Paulo II, quem teria arranjado a nomeação de McCarrick em Washington. “Não tenho absolutamente nenhuma lembrança de alguma intervenção de Sodano a favor de McCarrick”, declara a fonte que, citando “várias fontes”, afirma que “o secretário de Estado não foi a favor de sua nomeação, como também não foram todos os que tiveram acesso à documentação”.
Pelo contrário, os dois jornalistas implicam diretamente o secretário pessoal de João Paulo II, Dom Stanisław Dziwisz. “Não é segredo que Dziwisz aumentou a sua influência nos últimos anos do pontificado”, dizem.
“Além disso, com a chegada de Giovanni Battista Re à Congregação para os Bispos (...) o eixo definitivamente se fortaleceu entre o ‘apartamento’ (...) e o dicastério, que colabora com o papa na escolha dos bispos. Re tinha sido assessor da Secretaria de Estado, depois o sucedâneo, tornando-se alguém em quem João Paulo II tinha absoluta confiança e que mantinha contato com o seu secretário pessoal”.
Curiosamente, no entanto, o nome de Dziwisz é o único de todas as grandes autoridades vaticanas desde 2000 não mencionado no processo de Viganò.
Segundo uma testemunha já mencionada, o próprio McCarrick foi a Roma “nas semanas decisivas que precederam a sua nomeação a Washington”. Outras fontes alegam que, durante as suas reuniões no “apartamento”, ele “escreveu uma refutação às acusações concernentes a ele, descrevendo-as como absolutamente falsas e difamatórias”.
“Esta negação e todos os elementos que acompanharam essa autodefesa (...) claramente tiveram o efeito desejado sobre quem quer que veio tomar a decisão final”, observam os dois jornalistas, reconhecendo que “McCarrick sabe como ser bem convincente”.
Como escreveu o Cardeal O’Connor em sua carta a Roma, McCarrick é também “muito eficiente em angariar fundos”.
Um aspecto que ele bem poderia ter explorado, como fez com o Pe. Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo. Embora líder de uma congregação rica em vocações e um modelo perfeito daquilo que João Paulo II desejava em termos de doutrina e evangelização, Maciel mostrou ser um terrível predador sexual, levando várias vidas ocultas e mesmo afirmando, no final da vida, que tinha “um comércio regular com o diabo” (2).
Distribuindo generosas recompensas a cardeais romanos, mas também a parentes de João Paulo II (3), ele também se beneficiou da indulgência culpável do “apartamento”, que não hesitou em congelar a investigação solicitada a João Paulo II pelo Cardeal Joseph Ratzinger. Foi somente quando o segundo se tornou Bento XVI que ela foi reaberta e o Pe. Maciel foi finalmente punido.
Em seguida, no dia 21-11-2000, McCarrick foi nomeado arcebispo de Washington. No dia seguinte, o dominicano Boniface Ramsey escreveu ao núncio apostólico para informá-lo de novas acusações, desta vez sobre relações homoafetivas com seminaristas em Newark. Era uma outra forma de abuso, dado que, embora os sujeitos eram maiores de idade, o arcebispo tinha poder hierárquico real sobre eles.
Ramsey afirma em particular que McCarrick “dividia a cama com seminaristas” e regularmente os convidava para passar o final de semana com ele numa casa diocesana na praia.
Sabemos que a carta do Pe. Ramsey chegou a Roma porque, segundo o Catholic News Service – CNS, agência noticiosa oficial do episcopado americano, Dom Leonardo Sandri, então vice-secretário de Estado, escreveu, em 2006, para o religioso dominicano para perguntar sobre um ex-seminarista em Newark que concorria a um posto no Vaticano, expressamente referindo-se em sua carta: “Faço-lhe este pedido em particular com referência a graves questões concernentes a certos estudantes do seminário da Imaculada Conceição as quais, em novembro de 2000, você trouxe, de maneira confidencial, à atenção do então núncio apostólico, o falecido Gabriel Montalvo” (4).
Embora recebida em Roma, a carta de Ramsey não teve efeito imediato. Em 21-02-2001, João Paulo II inclusive cria o recém-nomeado arcebispo de Washington, juntamente com 41 outros bispos e arcebispos, entre eles Giovanni Battista Re, que aparece, em destaque, no topo da lista, e Jorge Mario Bergoglio, o futuro Papa Francisco.
Em Washington, McCarrick não cessa com os casos de abuso. Embora nenhuma das acusações, pelo menos até agora, digam respeito aos anos que passou na capital americana, a primeira queixa relacionada aos seus crimes do passado é registrada em 2004 em sua antiga Diocese de Metuchen; duas outras se seguirão no mesmo ano, todas relativas a abusos cometidos contra adultos.
“Um padre ordenado para a Diocese de Metuchen, que mais tarde fora liberado do estado clerical, acusa McCarrick de contato físico impróprio com ele. Um ex-seminarista da Diocese de Metuchen, que ouvira das reuniões na casa de praia de McCarrick, em Nova Jersey, mas que nunca delas participou nem nelas acreditava. Um padre ordenado para a Diocese de Metuchen, desligado do ofício na década de 1990 por abuso de menor, acusa McCarrick de ter contato impróprio com ele, incluindo relações sexuais, enquanto era seminarista”, detalhou em agosto de 2018 Dom Paul Bootkoski, garantindo que todas as informações acima foram, na época, transmitidas ao Vaticano.
Enquanto isso, em abril de 2005 morre João Paulo II e Bento XVI se elege num conclave em que McCarrick participa. Em 7 de julho, em seu 75º aniversário, idade de aposentadoria dos bispos, ele também escreve ao novo papa submetendo a sua renúncia como Arcebispo de Washington, DC.
Em poucos meses, o papa alemão lhe informa que estava prorrogando-o por dois anos, como é de costume para os cardeais das grandes cidades do mundo, mas que, não obstante, aceitaria a renúncia em 18-05-2006.
Enquanto isso também, a informação do bispo de Metuchen sobre as três queixas chega a Roma: sem dúvida, é isso o que permite ao Cardeal Re escrever ao Cardeal McCarrick que “infelizmente” o papa deve desistir de mantê-lo à frente da Diocese de Washington. Somente uns poucos analistas ficam surpresos com o fato de ele não ter 76 anos na época, enquanto o seu antecessor, o Cardeal Hickey, havia saído aos 80 anos.
Em julho, McCarrick definitivamente deixa a sua residência na Arquidiocese de Washington para dar espaço ao então Donald Wuerl, bispo que chegara de Pittsburgh.
Ele então se instala no seminário Redemptoris Mater, um vasto complexo, propriedade da diocese, mas confiada ao Caminho Neocatecumenal, cujo trabalho havia sido recém-concluído e onde toda uma ala lhe fora reservada, totalmente separada do restante. “McCarrick não participava da vida do seminário nem teve contato com os seminaristas”, dizem Tornielli e Valente.
No fim de dezembro de 2006, informado das novas denúncias contra McCarrick, o novo núncio aos EUA, Dom Pietro Sambi, transmite a seus superiores uma nota de um ex-padre da Diocese de Charlotte (Carolina do Norte), desligado do estado clerical por violar menores, revelando que, na época, trabalhava na Diocese de Metuchen, tendo ele próprio sido vítima de McCarrick.
São estes os fatos pelos quais a diocese lhe pagou 100 mil dólares de indenização. Em seu relatório, o núncio também explica que o padre transmitiu a sua história – em que também conta de outras ações de McCarrick com os seminaristas – a cerca de 20 pessoas, incluindo autoridades judiciais civis e eclesiásticas, polícia e advogados. Ciente de que em breve as informações se tornariam públicas, ele solicita uma intervenção imediata da Santa Sé.
Em Roma, foi Viganò, então delegado para as representações pontifícias da Secretaria de Estado (isto é, encarregado de todas as relações do Vaticano com a sua rede de embaixadas pelo mundo), quem recebeu a notificação, horrorizado pelos crimes descritos. Ele imediatamente escreveu ao seu superior, o Cardeal Leonardo Sandri, vice-secretário de Estado, propondo “que uma medida exemplar seja tomada contra o cardeal para impedir abusos futuros contra vítimas inocentes e mitigar um escândalo bastante grave entre os fiéis, que, não obstante, continuam a amar e acreditar na Igreja”.
Embora Viganò afirme que a sua nota “nunca foi retornada com uma decisão por parte de seus superiores”, alguém próximo do caso afirma, contrariamente, que a reação romana foi bastante rápida. “Entre dezembro de 2006 e os primeiros dois meses de 2007”, Sambi enviou a McCarrick instruções de Bento XVI solicitando-lhe deixar o seminário e manter-se discreto.
O pedido vem realmente do Cardeal Re, mas, sendo cardeal, Bento XVI não pôde aprovar expressamente a sanção, já que só os cardeais podem ser sancionados pelo papa. Sancionados? Fortemente “exortado”, melhor dito, para empregar o termo usado pelo Cardeal Marc Ouellet na carta aberta que enviou a Viganò em 07-10-2018. Texto muito preciso, em que o sucessor do Cardeal Giovanni Battista Re na presidência da Congregação para os Bispos desde 2010 explica por que Bento XVI não quis, na época, tomar verdadeiras sanções:
“É errado apresentar as medidas tomadas a seu respeito como ‘sanções’ decretadas pelo Papa Bento XVI e anuladas pelo Papa Francisco. Após revisão dos arquivos, constato que não há documentos sobre este assunto assinado por nenhum dos papas, nem uma nota de audiência por parte de meu antecessor, o Cardeal Re, que daria o mandado de obrigar McCarrick ao silêncio e à vida privada com o rigor de punição canônica”.
“A razão para isso foi que, diferentemente de hoje, não havia provas suficientes desta suposta culpa. Daí que a postura da Congregação, inspirada pela prudência e pelas cartas de meu antecessor e minhas exortando, através dos núncios apostólicos Pietro Sambi e você, a um estilo de vida discreto, de oração e penitência para o próprio bem e para o bem da Igreja”.
“O seu caso teria sido objeto de ação disciplinar se a nunciatura em Washington ou outra fonte qualquer tivesse nos fornecido informações recentes e decisivas sobre o seu comportamento” (5).
O objetivo do Vaticano é evitar o escândalo público. Como um amigo próximo de Bento XVI disse ao jornalista Edward Pentin, do National Catholic Register: “Às vezes é mais sábio deixar dormir aquele que dorme” (6).
O Cardeal McCarrick aproveitou-se da leniência de Bento XVI para resistir às exigências romanas. Tanto que, após novas revelações publicadas desta vez na internet em abril de 2008, o Cardeal Re escreveu-lhe diretamente e em inglês para ter certeza de que seria entendido corretamente, ordenando que “deixe o seminário Redemptoris Mater retirando-se para um mosteiro ou lar de idosos administrado por freiras das quais se tornaria o capelão”.
Queixando-se de “perseguição”, McCarrick respondeu ao cardeal que se recusava a ir para um mosteiro ou casa de repouso, sugerindo uma paróquia na cidade. Roma aceita e, no verão de 2008, o ex-arcebispo se muda para um alojamento na Paróquia São Tomé o Apóstolo, em Woodley Park, bairro rico de Washington.
Quanto aos compromissos públicos e viagens, McCarrick explica, num fino exercício de manipulação, que cancelá-las correria o risco de chamar atenção demasiada para ele. Ele consente, no entanto, não aceitar mais nada sem o acordo do Núncio Apostólico.
Se diminuem as suas intervenções na imprensa – o que o Washington Post observou, em 24-06-2010, surpreendido com a “atitude incomum por parte de um homem sempre acessível aos jornalistas” (7) –, McCarrick não deixa de viajar. Na revista jesuíta America, Michael O’Loughlin listou 40 viagens pelos EUA e para o exterior, o que levaria muito tempo para ser retomado aqui (8). É de um tal nível que o núncio Sambi deve ter se enfurecido várias vezes.
Esta grande figura da diplomacia pontifícia é ainda conhecida por outras histórias. Núncio na Indonésia, ele, em 1998, geriu a crise no Timor Leste, depois, em 2002, enviado à Terra Santa, a segunda Intifada e o cerco da Basílica da Natividade, em Belém, pelo exército israelense durante 39 dias. Este romagnol, nascido às margens do Rubicão, não “não se deixa vencer”, um sanguinário que não hesita em erguer a voz, nem mesmo a um cardeal.
Em seu “depoimento”, Viganò relata que um de seus colaboradores na nunciatura em Washington surpreendeu “conversa tempestuosa” entre Sambi e McCarrick. “Podíamos ouvir a voz do núncio em todo o corredor”, diz ele.
Em julho de 2011, a morte repentina de Sambi em Baltimore, após operação pulmonar, parecerá como uma libertação para o cardeal. Em breve ele deixa a Paróquia de São Tomé para uma casa adjacente ao seminário do Instituto do Verbo Encarnado, em Maryland, perto de Washington, que lhe proporcionou jovens padres e seminaristas como secretários.
Esta jovem congregação religiosa foi fundada em 1984 pelo argentino Carlos Buela, que a orientou numa direção ultraconservadora. Ele inclusive seria acusado de abuso sexual e condenado, em 2016, pelo Vaticano. Segundo o Catholic News Agency – CNA, que cita fontes internas, McCarrick parecia ser uma espécie de “chefe informal” da congregação (9), frequentemente ordenando os seus padres e defendendo-a contra as críticas de bispos sul-americanos que a criticam por não ser muito criteriosa no recrutamento de jovens. Entre estes está o presidente da Conferência Episcopal Argentina e arcebispo de Buenos Aires, o Cardeal Jorge Mario Bergoglio.
O sucessor de Sambi na Nunciatura em Washington será Viganò, nomeado em outubro de 2011. Se ele explica que, pouco antes de sua partida, havia recebido formalmente instruções firmes pela Congregação para os Bispos relativas a McCarrick, o Cardeal Ouellet claramente corrige esta declaração:
“As instruções escritas da Congregação dadas a você no início de sua missão em Washington, em novembro de 2011, nada diziam sobre McCarrick, exceto que, oralmente, eu o informei de sua situação como Bispo Emérito que tinha de obedecer certas condições e restrições por causa dos rumores sobre o seu comportamento no passado”, escreveu na carta de outubro de 2018.
Em todo caso, Viganò alega ter repetido estas instruções a McCarrick durante uma primeira reunião na nunciatura. “O cardeal, resmungando de uma maneira pouco incompreensível, admitiu que pode ter cometido o erro de dormir na mesma cama que seminaristas em sua casa de praia, mas falou isso como se não importasse”, relata.
Externamente, no entanto, McCarrick continua se comportando como se nada tivesse acontecido. O que parece não incomodar o novo núncio, que agora acusa o papa de inação: “Os compromissos públicos do cardeal aumentaram consideravelmente em 2011, quando Dom Viganò assumiu o posto em Washington”, observa O’Loughlin.
Assim, em 02-05-2012, num hotel em Manhattan, ele recebeu o título honorário de “Pontifício Embaixador para as Missões” de parte das Pontifícias Obras Missionárias dos EUA, durante uma cerimônia em que Dom Viganò, muito sorridente, proferiu um discurso cumprimentando um homem “a quem todos nós queremos muito bem”.
Além do fato de que poderia ter encontrado uma desculpa “diplomática” para não participar da cerimônia, o núncio não buscou impedir que o cardeal fosse homenageado. Andrew Small, diretor das Pontifícias Obras Missionárias nos Estados Unidos, disse que nem o núncio nem ninguém da nunciatura tentou dissuadi-los de conceder a honraria (10).
“É certo que eu jamais poderia ter adivinhado a existência de sanções contra o Cardeal McCarrick, dadas todas as vezes que o encontrei nas recepções ou em eventos que Dom Viganò organizava na nunciatura”, acrescentou o Cardeal Donald Wuerl, sucessor de McCarrick em Washington, em entrevista à revista America, na qual critica o núncio, que o acusava de não ter aplicado estas sanções, de nunca lhes ter comunicado, “quando era um dever seu” (11).
Durante todo o período de Viganò em Washington, McCarrick também continuou com suas viagens ao exterior, como à Síria (onde se encontrou com o presidente Bashar al-Assad) ou ao Iraque, mantendo a Secretaria de Estado plenamente informada, enviando relatórios detalhados por escrito, pelos quais lhes agradecem. Ele também vai a Roma várias vezes, reunindo-se com Bento XVI em duas ocasiões, embora não sendo audiências privadas, mas sempre como parte de um grupo maior.
Uma pessoa próxima do Papa Emérito contou ao National Catholic Register que McCarrick fez “numerosos pedidos” de audiência a Bento XVI, todos sendo recusados. No entanto, o Vaticano não pode impedir McCarrick de participar das reuniões de Bento XVI com grupos de cardeais.
Em especial, a última delas, em 28-02-2013, dia em que renunciou ao papado efetivamente. Poucas horas antes de voar para Castel Gandolfo, o papa recebeu todos os cardeais presentes, incluindo McCarrick, a quem, segundo as imagens feitas na época, não pareceu mostrar particular relutância.
Segundo Viganò, a eleição do Papa Francisco marcaria uma ruptura para McCarrick, o qual, “agora livre de qualquer restrição, se sentia livre para viajar continuamente para palestrar e dar entrevistas”. O ex-núncio, que nunca recebeu instrução alguma de clemência por parte de McCarrick, também evoca a “longa amizade” entre os dois e fez do cardeal americano “um grande eleitor” de Francisco, depois um assessor de bastidores e mesmo um “fazedor de rei para as nomeações à Cúria e aos EUA, além do conselheiro mais ouvido no Vaticano para a relações com o governo Obama”.
Na verdade, McCarrick e Bergoglio se conhecem muito pouco.
As poucas histórias que eles podem ter tido no passado eram exatamente sobre o Instituto do Verbo Encarnado, em cujo seminário o cardeal americano ficou abrigado, sobre o arcebispo de Buenos Aires culpando McCarrick pela falta de discernimento com que aceitava ordenar jovens sobre os quais os bispos argentinos tinham reservas. Muito pouco para uma “longa amizade”.
Em palestra dada em 11-10-2013, na Universidade Villanova, na Filadélfia, McCarrick diz que só bem tarde ouviu de Bergoglio como um possível papa.
E, mesmo tendo uma boa intervenção nos debates do pré-conclave ao aconselhar a eleição de um papa latino-americano, isso não basta para fazê-lo um “grande eleitor”, principalmente porque não participou da votação na Capela Sistina, já estando acima dos 80 anos.
Quanto a descrever McCarrick como o “fazedor de rei para as nomeações à Cúria e aos EUA”, aqui novamente Dom Viganò exagera, com base na interpretação das palavras que o novo papa reserva para ele nas margens de seu encontro com todos os núncios apostólicos em 21-06-2013.
“Os bispos dos Estados Unidos não devem ser ideologizados! Devem ser pastores!”, diz ele quando Viganò se apresentou como núncio para os EUA.
As críticas que o papa teria feito “de uma maneira agressiva” não têm fundamento, diz Viganò, embora a transmissão televisiva do Vaticano mostre, pelo contrário, um Francisco bastante atencioso, que inclusive começa agradecendo-o muito calorosamente. “Obrigado pelo seu trabalho”, continua ele, em tom que, de forma alguma, é agressivo: “Nos Estados Unidos…”. Com é de costume no Vaticano quando uma conversa entre o papa e um de seus interlocutores torna-se um pouco séria, a transmissão é cortada, mas em momento algum o papa mostra hostilidade para com o seu representante nos Estados Unidos.
Dois dias depois, em um encontro privado de 40 minutos que solicitou, Viganò teve até mesmo a oportunidade de ouvir o papa esclarecer as suas palavras, como ele mesmo recorda: “Os bispos dos Estados Unidos não devem ser ideologizados, eles não devem ser de direita como o arcebispo da Filadélfia [ele não deu o nome do arcebispo]; eles devem ser pastores. Também não devem ser de esquerda [e acrescentou erguendo os dois braços], e, quando digo de esquerda, quero dizer homossexuais”.
Estas palavras do papa, que ele entende como uma censura às escolhas episcopais nos Estados Unidos, Viganò diz que serão esclarecidas poucos dias depois:
“De volta a Washington, tudo ficou claro para mim, graças também a um novo evento que ocorreu poucos dias depois do meu encontro com o Papa Francisco. Quando o novo bispo, Dom Mark Seitz, foi empossado na Diocese de El Paso em 09-07-2013, enviei o primeiro conselheiro, Jean-François Lantheaume, enquanto eu fazia uma viagem a Dallas no mesmo dia para um encontro internacional de bioética. Em seu retorno, Lantheaume me disse que em El Paso ele se encontrara com McCarrick que, à parte, lhe falou quase as mesmas palavras que o papa me dissera em Roma: ‘Os bispos dos Estados Unidos não devem ser ideologizados, não devem ser de direita, eles devem ser pastores’. Fiquei maravilhado! Estava, portanto, claro que as palavras de repreensão que o Papa Francisco endereçara a mim em 21-06-2013 tinham sido colocadas em sua boca por McCarrick”.
Como embaixador americano na Santa Sé sob o governo Obama, Miguel Diaz lembra que, durante o primeiro encontro com o seu homólogo, o núncio apostólico, Sambi já havia lhe dito que “precisamos que os bispos americanos sejam menos políticos e mais pastorais, não empreenderem uma guerra cultural”.
Como podemos ver, as palavras supostamente inspiradas por McCarrick ao Papa Francisco vêm de longe e estavam já na mente do representante de Bento XVI nos EUA em 2009!
Para Viganò, entretanto, o episódio não bastou para tornar McCarrick a grande inspiração para as nomeações episcopais nos EUA. Ele então atribuiu a si a transferência de Dom Blase Cupich e Dom Joseph Tobin para Chicago e Newark, respectivamente, antes de se tornarem cardeais poucos meses depois.
“Para a nomeação do novo arcebispo de Chicago, o núncio havia arranjado tudo com o bispo que estava saindo, o Cardeal Francis George, já gravemente adoecido com um tumor”, dizem os jornalistas Tornielli e Valente, este último um ex-colaborador de Viganò, segundo o qual “o candidato que George queria, e que Viganò havia posto no topo da lista, era Robert Emmet Barron”.
De fato, ele foi nomeado bispo auxiliar de Los Angeles poucos meses depois. Para o ex-colaborador de Viganò, a tese do ex-núncio apostólico que faz de McCarrick a inspiração por trás desta nomeação – assim como para muitas outras – “não corresponde à verdade”.
“No caso de Chicago, por exemplo, Cupich havia sido apresentado por outros bispos, do mesmo modo como os outros três candidatos para a terna proposta em Roma”, explica.
Na época da nomeação, Cupich e Tobin tinham longas carreiras episcopais, iniciadas bem antes do pontificado de Francisco: o primeiro se tornou bispo pela primeira vez com João Paulo II, enquanto que o segundo, ex-superior geral dos Redentoristas, foi secretário da Congregação para a Vida Consagrada sob Bento XVI.
Nenhum deles precisava de McCarrick. “Nunca ouvi [o Papa Francisco] se referir a este assim-chamado grande assessor de seu pontificado para as nomeações nos Estados Unidos, embora o papa não esconde a confiança que deposita em certos prelados”, confirmava o Cardeal Ouellet na carta a Viganò, que se reúne com o papa semanalmente para trabalhar nas nomeações episcopais ao redor do mundo.
Na verdade, se um cardeal americano conta com a confiança do papa, este é o Cardeal O’Malley, nomeado pelo pontífice para o Conselho dos Cardeais.
Além disso, e Viganò sublinha em seu “depoimento”, Francisco também tem dúvidas sobre McCarrick. “Quem é ele?”, perguntou ao seu representante nos EUA em um encontro em 23 de junho. “Ele claramente queria saber se eu era um aliado ou não de McCarrick”, imagina Viganò, que alega ter respondido com toda franqueza:
“Santo Padre, não sei se o senhor conhece McCarrick, mas se interrogar a Congregação para os Bispos, há um arquivo espesso assim sobre ele. McCarrick corrompeu gerações de seminaristas e padres, e o Papa Bento lhe ordenou que se retirasse para uma vida de oração e penitência”. De acordo com Viganò, Francisco não fez “o menor comentário sobre estas muito graves palavras e o seu rosto não mostrou surpresa nenhuma, como se já soubesse do que se tratava há algum tempo e mudou de assunto”.
Isso é suficiente para o ex-núncio concluir que o novo papa havia decidido encobrir o antigo cardeal... Deve-se lembrar, porém, que em momento algum o Papa Francisco instrui a Nunciatura Apostólica a pedir qualquer suspensão das restrições impostas pelo antecessor contra McCarrick, o qual, ademais, não foi ainda acusado de nenhum fato novo. Foi só em maio de 2017 que um homem contatou a comissão encarregada de lidar com os casos de abuso sexual na diocese de Nova York, e as coisas mudaram radicalmente para McCarrick.
O homem que se apresentou em maio de 2017 na Arquidiocese de Nova York acusava McCarrick de tê-lo abusado na década de 1970. Ele tinha 17 anos, e McCarrick era apenas um padre da diocese. Depois de analisar o depoimento, o cardeal-arcebispo de Nova York, Dom Timothy Dolan, notifica o Vaticano em setembro de 2017, solicitando autorização, dado que o acusado era cardeal, para abrir uma investigação oficial.
Enquanto isso, McCarrick deixa discretamente o seminário do Instituto do Verbo Encarnado, oficialmente por motivos de saúde, mudando-se para uma residência de idosos dirigida por freiras.
Isto não o impede de continuar viajando, inclusive a Roma em abril de 2015, antes que o Cardeal Dolan revelasse, em 20 de junho, que os resultados da investigação “foram fornecidos à Comissão de Controle Arquidiocesana, grupo de profissionais que inclui advogados, especialistas em segurança, pais, psicólogos, um padre e uma freira” e que considerava “confiáveis e bem fundadas” as declarações da vítima.
Dolan igualmente anuncia que o Papa Francisco ordenou a suspensão de McCarrick de todo ministério público, decisão comunicada diretamente e ele pelo Cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado.
Esta primeira revelação leva a outras. Em 19 de julho, o New York Times publicou o depoimento de um outro homem: amigo de família, McCarrick teria começado a violentá-lo quando tinha 11 anos de idade (13). Uma terceira acusação iria se seguir em breve.
Informado, Francisco então decide aumentar as sanções impostas ao cardeal e, em 28 de julho, o Vaticano anuncia que havia apresentado ao papa a “sua renúncia como membro do Colégio Cardinalício” e que Francisco havia aceitado. Na verdade, o cardeal foi fortemente pressionado a renunciar: foi o primeiro caso da história desde que Pio XI havia exigido que o Cardeal Louis Billot, apoiador da Ação Francesa que o pontífice acabara de condenar, devolvesse as suas insígnias cardinalícias.
Na mesma época, a Congregação para a Doutrina da Fé acelera a sua investigação: em Nova York, no mês de dezembro, testemunhas são ouvidas. Finalmente, embora já estivesse relegado a uma vida de “oração e penitência” em um convento religioso capuchinho nos confins da cidade de Kansas, o ex-cardeal foi removido em definitivo do estado clerical em fevereiro de 2019. McCarrick não é mais considerado um padre pela Igreja.
No final desta longa história, vemos que o Papa Francisco, que – devemos lembrar – jamais teve responsabilidade pelas várias promoções de McCarrick desde 1977, foi, na verdade, aquele que tomou realmente as primeiras sanções contra o cardeal abusador.
Mais que isso: foram sanções especialmente severas, visto que havia fatos envolvendo menores de idade, dos quais, devemos salientar também, o antigo cardeal nunca havia sido acusado até então. Isso pode explicar por que Bento XVI formulou apenas simples injunções contra ele, que foram aplicadas sem muita força por Viganò.
Pelo contrário, assim que foi informado dos novos elementos, o Papa Francisco voltou-se a eles de maneira particularmente forte, pois nenhum papa havia sancionado um cardeal ainda. Por conseguinte, é difícil entender a violenta diatribe de Viganò contra o papa. É sobre o bispo agora que devemos nos focar.
1) Andrea Tornielli e Gianni Valente, Il giorno del giudizio, Milão, Piemme, 2018. Para o presente capítulo, fizemos um extenso uso desta profunda e rigorosa pesquisa.
2) Nicolas Diat, L’homme qui ne voulait pas être pope, Paris, Albin Michel, 2014, p. 249.
3) O dinheiro do Pe. Maciel teria sido usado para financiar discretamente as atividades da Solidarność na Polônia. Ver: Alma Guillermoprieto, “The Mission of Father Maciel”, The New York Review of Books, 24 jun. 2010).
4) Robert Duncan e Junno Arocho Esteves, “Letter Confirms Vatican Officials Knew of McCarrick Allegations in 2000”, CNS, 7 set. 2018.
5) Carta aberta sobre as recentes acusações contra a Santa Sé, 7 out. 2018.
6) Edward Pentin, “Further Questions Emerge About Benedict XVI’s Sanctions on McCarrick”, National Catholic Register, 31 ago. 2018.
7) Michelle Boorstein, “Washington Celebrates Its Globe-trotting Cardinal, ‘Uncle Ted’”, The Washington Post, 24 jun. 2010.
8) Michael O’Loughlin, “McCarrick Kept a Robust Public Presence During Years He Was Allegedly Sanctioned”, America, 29 ago. 2018.
9) Ed Condon, “Seminarians were McCarrick Aides Amid Abuse Investigation”, NAC, 30 ago. 2018.
10) Cindy Wooden, “Is There Truth in Archbishop Viganò’s Text and How Are Catholics to Know?”, CNS, 29 ago. 2018.
11) Gerard O’Connell, “Cardinal Wuerl on His Resignation, Pope Francis’ Letter and More”, America, 29 out. 2018.
12) Edward Pentin, op. cit.
13) Sharon Otterman, “Man Says Cardinal McCarrick, His ‘Uncle Ted’, Sexually Abused Him for Years”, The New York Times, 19 jul. 2018.
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‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 1: O homem do escândalo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU