27 Setembro 2018
"Não acho que o legado terrível de João Paulo II sobre abuso sexual apague as grandes coisas que ele fez, mas requer que repensemos todo o culto sobre "João Paulo II, o Grande", escreve Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 26-09-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
O cardeal Stanislaw Dziwisz, de Cracóvia, Polônia, segurando uma fotografia de São João Paulo II em sua residência em Cracóvia em 4 de março de 2016. Dziwisz era a secretário pessoal do falecido Papa. (Foto: CNS/Marcin Mazur, Conferência Episcopal da Inglaterra e País de Gales)
Depois que a Guerra do Vietnã terminou, os líderes militares dos EUA reconheceram que não podiam entender o que deu errado e começar a consertar o problema a menos que todos pudessem falar com franqueza absoluta. Toda crise exige o mesmo, incluindo a crise dos abusos sexuais. Portanto, embora seja sempre um erro tentar descobrir o que os loucos do Church Militant farão ou dirão, é importante que monitoremos o que está sendo dito por pessoas aparentemente responsáveis para garantir que todos estejamos nos mantendo honestos.
Em um ensaio recente no Weekly Standard, Mary Eberstadt escreveu "The Elephant in the Sacristy, Revisited" ("O Elefante na Sacristia, Revisitado", em tradução livre), uma espécie de reprise de um artigo que ela escreveu pela primeira vez em 2002. "Naquela época, assim como hoje, os simples fatos dos escândalos foram submersos no que hoje chamamos de whataboutism [falácia com o fim de desacreditar o oponente, ndt]", escreve ela. "De acordo com essas manobras evasivas, a transgressão foi supostamente explicada por referência ao clericalismo, ao celibato, à imaturidade sexual e a outros atributos invocados para evitar o óbvio". E, para ela, tanto antes como agora, a chave para entender o escândalo era:
Um aglomerado de fatos enorme demais para ser ignorado, embora muitos se esforcem vigorosamente para desviar os olhos. Chamem de o elefante na sacristia. Um fato é que o próprio agressor foi molestado quando criança ou adolescente. Outro é que alguns seminários parecem ter tido mais futuros molestadores entre seus alunos do que outros. Um terceiro fato é que essa crise envolvendo menores - esse horror institucionalizado em andamento - é quase inteiramente sobre sexo entre homens e meninos.
Eu acho que isso deixa escapar que o que realmente escandalizou os fiéis não foi que alguns padres eram pervertidos, mas que quase todos os bispos do país nunca pensaram em chamar a polícia quando confrontados com a perversão. Esse foi o verdadeiro escândalo.
Eberstadt continua, admitindo que, em 2002, algumas de suas amigas da direita demoraram a aceitar o horror, e até elogia o National Catholic Reporter, por suas reportagens sobre abuso sexual clerical. Agora, ela afirma que são aqueles de nós que são da esquerda que estão fechando os olhos, ou pior. Ela primeiro ataca o padre jesuíta Antonio Spadaro, que teve a imprudência de rotular como “haters” as pessoas que exibem ódio irracional contra o Papa e os bispos que o apoiam. Então ela escreveu:
'"Muitos católicos agoniados, que desejam apenas saber se as alegações são verdadeiras, agora são acusados de participar de traição religiosa - de planejar um "putsch" dentro da Igreja, como Michael Sean Winters colocou no National Catholic Reporter. Ou considere algumas caracterizações do testemunho do arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio dos Estados Unidos e autor de uma carta de 11 páginas, historicamente inédita e detalhada, divulgada no mês passado, acusando o Papa e outros de encobrir o abuso. O teólogo Massimo Faggioli chamou a obra de "operação de golpe". O padre James Martin tuitou similarmente sobre um "ataque coordenado" destinado a "deslegitimar" o Papa."
Em primeiro lugar, é sempre uma honra ser mencionado ao lado dos padres Spadaro e Martin, assim como do professor Faggioli. Mas, embora eu não possa ousar falar por eles, posso garantir à Sra. Eberstadt que a razão pela qual chamei as mentiras imundas de Viganò de tentativa de "putsch" foi porque ele não apenas misturou o suficiente de verdade em meio a suas mentiras para atormentar muitos jornalistas por uma semana, mas também pediu que o Papa renunciasse. Em face do fato de que Francisco é o único Papa que realmente tomou medidas contra McCarrick, esse pedido por sua renúncia foi evidentemente uma tentativa de desencadear um "putsch", o equivalente eclesial moderno do tiro disparado pelo cruzador Aurora para desencadear a Revolução de Outubro em 1917. É isso que Viganò e sua multidão de admiradores querem, que Francisco vá embora.
"Os leigos católicos estão longe de ser inocentes nesta hora. Os escândalos poderiam ter sido reduzidos há muito tempo se a rejeição dos leigos ao ensinamento da Igreja sobre o controle da natalidade não tivesse levado ao conluio do abuso mútuo", escreve Eberstadt. "Muitos padres fizeram vista grossa para os leigos que violaram a lei contra a contracepção e muitos leigos tacitamente retribuíram o favor não se preocupando demais com o seu padre e com alguns de seus amigos".
Ela realmente percebeu algo importante aqui. É verdade que uma sensação de irrealidade e engano envolve o tema da ética sexual dentro da Igreja Católica, mas isso é consequência de um problema mais profundo, a saber, que o ensinamento da Igreja sobre sexo tem sido por muito tempo apresentado na linguagem da neoescolástica e sem conexão aparente com o Evangelho. E, pelo menos no mundo anglo-saxão, e precisamente entre escritores como Eberstadt, a ética sexual tem sido o foco principal da identidade católica, dando ao assunto uma importância desproporcional dentro da Igreja.
Eberstadt não está sozinha. Em uma coluna no First Things, e publicado também em outros portais, George Weigel insulta o cardeal Blase Cupich, embora sem nomeá-lo. Weigel compara erroneamente uma entrevista de Cupich com uma entrevista coletiva dada pelo cardeal Dario Castrillon Hoyos, então prefeito da Congregação para o Clero, em 2002. Cupich não disse, como fez Castrillon Hoyos, que o Papa tinha coisas mais importantes para se preocupar do que o abuso sexual. O cardeal de Chicago disse que o Papa tem coisas mais importantes para se preocupar do que o "testemunho" egoísta e revanchista apresentado pelo arcebispo Carlo Maria Viganò, um homem que Weigel já havia alcunhado como o melhor núncio dos EUA da história. Weigel, em seguida, passa a citar extensamente e com aprovação uma carta emitida pelo arcebispo de Hartford, Leonard Blair, aos seus padres e seminaristas. Blair Cupich escreveu:
A raiva e a desilusão de nosso povo católico só são iguais às minhas próprias e, sem dúvida, também às suas. Depois de todo o esforço maciço que vem sendo feito desde 2002 para livrar a Igreja desse mal e tentar trazer cura às vítimas sobreviventes, como é possível que nos encontremos confrontando a mesma percepção da Igreja, e para conosco como padres e bispos, como se nada tivesse mudado?
Mas por que, então, se ele está tão zangado, desiludido e decidido a fazer o que é necessário para erradicar esse mal, por que o arcebispo Blair não tomou o simples passo de publicar os nomes daqueles padres que foram credivelmente acusados de abuso sexual contra um menor? Por que Weigel leva em conta as suas palavras e não os seus atos? E por que alguém deveria pensar que Weigel - defensor do padre molestador em série Marcial Maciel, amigo do permissivo cardeal Stanislaw Dziwisz, biógrafo do Papa que estabeleceu o padrão de dispensar as vítimas e encobrir os crimes - é digno de crédito a esse respeito?
Você pode passar tempo checando para ver quais ensaístas citam quais bispos, e se esses bispos realmente fizeram alguma coisa para deixar o escândalo dos abusos sexuais no passado. Você pode examinar seus argumentos e decidir se eles fazem sentido para você ou não. Mas aqui está um atalho, uma maneira rápida de saber se eles são sérios: eles mencionam o Papa João Paulo II? Foi ele quem não apenas estabeleceu o padrão para ignorar as vítimas, mas também quem liderou o Vaticano nos anos 80 e 90, quando os bispos eram rotineiramente instruídos a reintegrar os padres, a não serem muito duros com o "pobre padre". Foi ele quem promoveu Theodore McCarrick não uma vez, nem duas vezes, nem três vezes, mas quatro vezes. Enfrentar essas verdades bem conhecidas, no entanto, significaria perturbar parte da mitologia que os conservadores mais têm apreço.
Hoje, em Washington, há uma conferência patrocinada por várias organizações sobre como Ronald Reagan e João Paulo II mudaram o mundo. Como era de se esperar, os Gingrich estarão presentes, ele o defensor do casamento tradicional que foi três vezes casado e ela a assessora que virou amante que virou esposa, ambos os diretores da indústria da mitologia de João Paulo II. Até que esses conservadores estejam dispostos a assumir seu legado, eles não estarão sendo honestos.
Agora, podemos acrescentar outra pergunta para pessoas como Eberstadt e Weigel: à luz de sua preocupação em acabar com a predação sexual, vocês apoiam, ou não, uma investigação completa do FBI sobre as alegações feitas contra o juiz Brett Kavanaugh?
Eu gosto de conservadores. Alguns dos meus amigos são conservadores. E eu saúdo às fileiras daqueles preocupados com o abuso sexual clerical todos aqueles que alguma vez o ignoraram, mas agora o consideram importante.
Mas detesto hipócritas. Não acho que o legado terrível de João Paulo II sobre abuso sexual apague as grandes coisas que ele fez, mas requer que repensemos todo o culto sobre "João Paulo II, o Grande". Não acredito que todo o trabalho diplomático em nome da Igreja que McCarrick empreendeu esteja viciado porque sabemos, agora, que ele estava vivendo uma vida dupla por muitos anos e o que ele mantinha escondido era predatório e nojento. Ainda assim, dar crédito às alegações não comprovadas e evidentemente visando um ajuste de contas, divulgadas através de meios de comunicação convenientemente alinhados contra o Papa, e não suspeitar que havia algo errado? Você tem que ser voluntariamente obtuso. Eberstadt pode não ver isso. Weigel pode não ver isso. Ainda assim, a ideologia deles os cega. O resto de nós insistirá que a consideração moral que o momento exige deve lutar com o verdadeiro elefante na discussão: João Paulo II, mais do que qualquer outra pessoa, estabeleceu o modelo de ofuscação e encobrimento que se transformou no escândalo dos abusos sexuais. Dizer isso não me faz um partidário. É a simples verdade.
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Conservadores devem enfrentar o legado de João Paulo II na crise dos abusos sexuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU