25 Setembro 2018
"A Igreja não é um clube do qual decidi participar. Nem é algo do qual possa decidir sair. De certa forma, sinto que nem mesmo a Igreja institucional pode decidir que devo sair ou que saí. Certamente, não deixo à Igreja institucional o poder de definir tudo o que a Igreja é", escreve Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 24-09-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Segundo ele,"o catolicismo mantém muitos elementos da minha vida sob controle. Equilibra as partes seculares e religiosas da minha identidade. Ele me ajuda a evitar a tentação de me tornar monodimensional e cair na armadilha de um certo tipo de secularismo, onde ninguém deve nada a ninguém e está amarrado apenas ao seu próprio passado pessoal", E continua: "a crise de abusos nos leva a repensar muitos aspectos da vida da Igreja e até mesmo de nossa teologia. É um momento difícil e muitas vezes terrível para ser um teólogo católico na praça pública".
Eu não poderia imaginar um sistema clerical que protegesse padres abusivos em vez de suas vítimas; um sistema que perpetuou o sofrimento dos abusados.
Antes de me mudar para os Estados Unidos em 2008, passei mais de 30 anos de vida paroquial em Ferrara, cidade de médio porte no norte da Itália. Minha experiência católica lá havia sido notavelmente saudável e feliz, apesar das tensões habituais com um ou outro padre ou bispo em particular.
Comecei a tomar conhecimento da epidemia de abusos sexuais cometidos pelo clero somente em 2002, graças à reportagem investigativa do Boston Globe.
Agora, como pai de crianças pequenas que frequentam uma escola católica na região de Filadélfia (um dos epicentros da crise dos abusos nos EUA), aprendi mais sobre o que aconteceu e sobre como evitar que aconteça novamente.
A crise de abusos sexuais é o maior escândalo da história moderna da Igreja, e ainda não sabemos que tipo de Igreja sobreviverá a esse prolongado momento de vergonha pública.
Essa crise compreensivelmente levou muitos a se questionarem quanto a conseguirem permanecer na Igreja Católica. Alguns católicos conhecidos por se engajarem em questões públicas escreveram artigos para explicar por que eles permanecem.
Sem dúvida, está se tornando mais difícil justificar os motivos. Mas apesar do choque e da repugnância sobre as revelações de casos históricos de abuso - e revelações que continuarão a surgir por um longo tempo - nunca pensei em deixar a Igreja e não consigo pensar em abandoná-la agora.
Não é porque sou teólogo, para quem a Igreja Católica não é apenas mais um fenômeno social a ser estudado como tantos outros ou cuja relevância muda de acordo com o zeitgeist.
Não é apenas o argumento sacramental - que o batismo fez de mim um membro da Igreja e que eu preciso dos sacramentos da Igreja em minha vida. Não é nem mesmo o argumento eclesiológico - a Igreja sempre foi composta tanto por santos quanto por pecadores.
Existe, por um lado, uma diferença fundamental entre a experiência histórica dos católicos vivendo em uma Igreja jovem, em um ambiente social e político que assumiu algum grau de liberdade e democracia (como nos Estados Unidos), e daqueles católicos que são os descendentes de uma Igreja que sobreviveu a outras crises.
Não houve apenas o comportamento escandaloso dos cardeais e papas da Renascença, que abalou crentes como Martin Lutero no século XVI.
Pense também na Igreja no século XX quando se aliou ao fascismo, ao nazismo e a outros regimes ditatoriais. E então teve a Igreja Católica cujos membros eram, em grande parte, indiferentes ou até instrumentais ao Holocausto e à perseguição dos judeus.
A longa história de confrontos e alianças entre a Igreja e o poder político (desde o Império Romano até os nacionalismos do século passado) desiludiu os católicos europeus de qualquer fantasia sobre a pureza da Igreja institucional.
Isso os tornou mais capazes de separar as falhas humanas da verdadeira natureza do que a Igreja é. Esse é um elemento de diferenciação entre as distintas percepções do escândalo de abuso em diferentes áreas do mundo.
O centro de gravidade do catolicismo se deslocou, nos últimos anos, da Europa para a América do Norte. Esse deslocamento coincidiu cronologicamente com a explosão da crise de abusos, cujo epicentro se encontra nos Estados Unidos.
Essa mudança georeligiosa, juntamente com o escândalo de abuso, reposicionou o centro do catolicismo em um sistema cultural no qual o pertencimento religioso é mais pluralista e mais sujeito a mudanças.
Em comparação com os cristãos na maioria dos outros países, os americanos tendem a ser mais inclinados a mudar de uma igreja para outra ou formalmente deixar a Igreja e renunciar totalmente à sua fé.
Em outros lugares, ser católico nem sempre é medido pela frequência à missa e pela participação na vida da Igreja.
E, no entanto, nesses lugares a identidade católica parece ser culturalmente mais resiliente, ainda que de maneira disfarçada e quase inconsciente. Esse é o tipo de catolicismo no qual cresci e isso é uma das razões pelas quais nunca pensei em deixar a Igreja.
Mas também há algo mais pessoal para explicar por que permaneço. Não tenho a intenção de desrespeitar aqueles que sentem que é impossível permanecer em uma Igreja devastada pelo escândalo de abusos ou aqueles que sentem a necessidade de justificar por que não saem. Mas essa não é minha experiência. Na verdade, o oposto aconteceu comigo em certo sentido.
Minha fé católica se fortaleceu desde que me mudei para os Estados Unidos. Enquanto algumas pessoas têm sentido o cosmopolitismo como uma grave ameaça às suas raízes e identidade religiosas, isso não tem sido verdade no meu caso.
Ainda tenho cidadania italiana, mas não moro mais na Itália; moro nos Estados Unidos, mas ainda não sou cidadão dos EUA.
Ser um "estrangeiro residente" com um green card é uma forma limitada de pertencimento que torna as outras identidades mais fortes. Comecei a ver meu catolicismo como uma forma de seguro contra outros aspectos desumanizantes do modo de vida americano e cosmopolita.
O catolicismo mantém muitos elementos da minha vida sob controle. Equilibra as partes seculares e religiosas da minha identidade. Ele me ajuda a evitar a tentação de me tornar monodimensional e cair na armadilha de um certo tipo de secularismo, onde ninguém deve nada a ninguém e está amarrado apenas ao seu próprio passado pessoal.
Trata-se de manter certos vínculos que são maiores e mais profundos, que Roberto Belarmino identificou há cinco séculos como essenciais para ser católico - profissão comum da fé, comunhão nos sacramentos e vínculo com a autoridade eclesiástica.
É o catolicismo que me ajuda a evitar a tentação de reduzir a fé cristã à política, à moralidade pessoal ou política, ou às questões sociais. Não se trata de juntar-se a uma causa ou tornar-se uma causa. A Igreja não é uma causa ou uma ideologia.
É o catolicismo que me ajuda a encontrar e criar espaço para a liberdade do controle social, incluindo o controle social que tem sido durante séculos (e em certo sentido ainda é) típico do catolicismo romano.
A Igreja não é um clube do qual decidi participar. Nem é algo do qual possa decidir sair. De certa forma, sinto que nem mesmo a Igreja institucional pode decidir que devo sair ou que saí. Certamente, não deixo à Igreja institucional o poder de definir tudo o que a Igreja é.
É uma Igreja da qual não consigo nem pensar em sair, porque me recuso a aceitar o risco de me tornar um consumidor do sagrado.
A Igreja faz de mim um cidadão numa cultura que está sendo moldada cada vez mais pelos turistas e viajantes da alma, em um mundo onde - nas palavras do escritor e ensaísta italiano Roberto Calasso - a religião é identificada entre a Cila dos turistas visitantes e a Caríbdis dos terroristas religiosos.
Eu definitivamente me sinto como um peregrino, mas não um turista do sagrado. Eu sinto que sou um nativo da Igreja, e não um turista que se sente seguro apenas enquanto visita complexos protegidos e resorts.
Eu sou um católico cosmopolita e globalizado que tenta não procurar refúgios livres dos paradoxos da fé religiosa.
A Igreja Católica inteira é minha terra e nenhuma extraterritorialidade é possível. Não me sinto como (e não quero ser) um tipo especial de católico. Sou simplesmente parte da Igreja enquanto um povo de povos.
Minha espiritualidade não é estritamente definida por um autor, um livro, um lugar ou um movimento da Igreja. Ela esforça-se arduamente para ser a própria espiritualidade da Igreja. Para citar a biografia do meu amigo David Gibson no Twitter, estou muito tentado a me chamar de "religioso, mas não espiritual".
Também vejo minha permanência na Igreja como um remédio da virtualização do mundo e das ilusões da “realidade aprimorada”, que muitas vezes molda nossos sonhos e expectativas sobre a Igreja Católica.
Preciso de mediação, e as falhas nas várias formas de mediação eclesial e eclesiástica me fazem lembrar de minhas próprias falhas - aquelas que conheço e aquelas que nem quero conhecer.
A crise de abusos nos leva a repensar muitos aspectos da vida da Igreja e até mesmo de nossa teologia. É um momento difícil e muitas vezes terrível para ser um teólogo católico na praça pública.
Isso me lembra das palavras do falecido primeiro-ministro italiano Alcide de Gasperi na Conferência de Paz de Paris em 1946. Como representante de um país que havia perdido a Segunda Guerra Mundial, que ele ajudou a aliar a Adolf Hitler, disse: "sinto que tudo, exceto sua gentileza pessoal, está contra mim”.
Na crise de abusos, descobrimos um câncer na Igreja. Cabe a nós encontrar uma cura para ele e fazer todo o possível pelas vítimas e sobreviventes. Não sabemos que tipo de Igreja haverá depois disso, mas devemos supor que ela provavelmente ficará pior antes de melhorar.
Ainda assim, não estou entre aqueles que estão divididos quanto a deixar ou permanecer na Igreja. Não permaneço por ter decidido permanecer na Igreja. É a Igreja que permanece em mim.
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Por que não consigo pensar em deixar a Igreja Católica. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU