28 Março 2014
Embora à primeira vista as duas coisas possam parecer totalmente sem relação, há algo estranhamente apropriado no fato de o Papa Francisco ter aceitado a renúncia do controverso bispo de Limburg, Alemanha, apenas 24 horas antes do seu primeiro e tão esperado encontro com o presidente Barack Obama, dos Estados Unidos.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no jornal The Boston Globe, 26-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dom Franz-Peter Tebartz-van Elst se tornou famoso no ano passado como o "bispo esbanjador" que gastou mais de 40 milhões de dólares na remodelação da sua própria residência. Quando Francisco o depôs em outubro, foi um tiro ouvido em todo o mundo católico, no sentido de que o chamado do novo papa a uma "Igreja pobre pelos pobres" era mais do que mera retórica. O desenlace formal de hoje para a saga de Limburg cimenta essa impressão.
A impressão de uma grande aliança em nome dos pobres do mundo, é claro, está muito no coração daquilo que Obama gostaria de obter a partir da sessão dessa quinta-feira – tanto como parte do seu eventual legado, quanto com um olho voltado para as eleições do fim do ano.
É tentador augurar que Obama e Francisco consigam fazer negócios, já que ambos são identificados com aquilo que os cristãos chamam de "evangelho social", ou seja, a preocupação com os pobres e com a paz. Obama, que começou sua carreira como organizador comunitário com um grupo fundado com o apoio de algumas paróquias católicas de Chicago, é um grande admirador do falecido cardeal Joseph Bernardin, de Chicago, que tinha uma paixão pelo tipo de ensino social católico que desfruta um renascimento com Francisco.
Do lado vaticano, muitas autoridades em Roma sempre foram mais acolhedoras para com Obama do que algumas lideranças católicas norte-americanas. O editor do jornal vaticano, por exemplo, declarou em 2009 que Obama não é um "presidente pró-aborto".
Há também um problema concreto em que o papa e o presidente compartilham um interesse político: a reforma da imigração. Obama prometeu que quer algo significativo feito pelos milhões de imigrantes ilegais dos EUA antes do fim da sua presidência, de preferência dentro de um ano. Francisco dedicou a sua estreia política a uma viagem para a ilha de Lampedusa, no sul do Mediterrâneo, um importante ponto de chegada dos imigrantes pobres da África e do Oriente Médio, para condenar a "globalização da indiferença" em relação aos imigrantes.
No fim deste mês, uma delegação de bispos norte-americanos, incluindo o cardeal Sean P. O'Malley, de Boston, irá realizar uma série de eventos na fronteira dos EUA e do México para imitar o gesto do papa em Lampedusa e para aumentar a consciência sobre o custo humano do sistema imigratório. Essa é uma preocupação tanto humanitária quanto prática para uma Igreja nos Estados Unidos cuja adesão é agora composta por um terço de hispânicos.
No entanto, há pelo menos duas áreas-chave em que Obama e Francisco não estão na mesma página, o que sugere que uma profunda parceria entre os dois líderes – semelhante à "Santa Aliança" anticomunista entre o falecido Papa João Paulo II e o presidente dos EUA Ronald Reagan nos anos 1980 – pode não estar entre as cartas.
Questões de vida
Para além do amplo confronto entre o apoio de Obama aos direitos ao aborto e a oposição da Igreja Católica, há também a específica questão dos mandatos de contracepção impostos pela Casa Branca como parte da reforma dos planos de saúde. Diferenças acentuadas a esse respeito ainda pairam sobre a relação do governo com a Igreja.
A Suprema Corte dos EUA ouviu os argumentos na última quarta-feira sobre dois casos decorrentes da exigência de os empregadores privados fornecerem a contracepção como parte de um pacote de saúde básico, e as consequências legais e políticos não parecem destinadas a terminar tão cedo.
Embora Francisco tenha indicado que quer diminuir a retórica sobre as questões de vida, não há nenhuma indicação de uma mudança substantiva. Dois dias atrás, em uma mensagem aos membros de um departamento vaticano que lida com questões de saúde, Francisco novamente afirmou a importância de defender a vida humana "desde a concepção até a morte natural".
Em um discurso no dia 13 de janeiro a diplomatas, Francisco chamou o aborto de crime "terrível" e ele rotineiramente lista o nascituro entre as vítimas daquela que ele chama de cultura do "descarte".
Além disso, Francisco está comprometido com o que os católicos chamam de colegialidade, ou seja, a descentralização do poder em relação a Roma, e uma parte disso é o respeito pelas decisões dos bispos locais. Como resultado, Francisco provavelmente vai relutar a fazer qualquer coisa que possa ser percebida como um ataque aos ressentimentos dos bispos dos EUA em relação ao que muitos deles veem como uma erosão da liberdade religiosa com Obama.
Oriente Médio
Grosso modo, tanto o governo Obama quanto o Vaticano com Francisco são a favor de melhores relações com o mundo islâmico, ambos olham com bons olhos para a Primavera Árabe e ambos apoiam uma retomada das negociações de paz entre Israel e os palestinos.
No entanto, no nível do detalhe, também existem diferenças.
No Egito, Obama teve uma postura duplamente crítica no ano passado em relação à Irmandade Muçulmana e ao Exército, depois que um conselho militar declarou o controverso presidente Mohamed Morsi deposto. O Vaticano foi mais favorável à intervenção militar, inclinado a vê-la menos como um golpe de Estado e mais como um reflexo da vontade popular.
Na Síria, o governo Obama fez da remoção do presidente Bashar al-Assad uma condição prévia para qualquer solução negociada para a guerra civil do país, enquanto o Vaticano está mais cético acerca da mudança de regime, em parte por causa da preocupação de que qualquer coisa que se seguir a Assad, na realidade, pode ser pior.
Subjacente a esses contrastes, está o fato de que a leitura do Oriente Médio por parte do Vaticano é fortemente condicionada pelas percepções das minorias cristãs desses países, que geralmente veem tanto um Exército poderoso quanto governantes prepotentes como uma defesa entre elas mesmas e o radicalismo islâmico. Elas muitas vezes apontam para o Iraque, onde uma comunidade cristã outrora próspera foi devastada no caos que se seguiu ao colapso de Saddam Hussein.
Poucos no lado católico estão inclinados a ver o governo Obama como um grande defensor dos cristãos em risco, embora o fato de se posicionar contra a perseguição anticristã violenta esteja emergindo como um dos pilares da agenda social e política de Francisco.
Com o fim do encontro entre Obama e Francisco dessa quinta-feira, é provável que as declarações emitidas por ambas as partes serão amigáveis. Como disse o embaixador dos EUA no Vaticano, Ken Hackett, em uma entrevista recente, "nesse tipo de reunião de alto nível, não se trata de fazer alguém se sentir mal".
Dito isso, também não está claro se um dramático "reset" nas relações Igreja-Estado é provável. É mais plausível que o relacionamento vai continuar sendo um balé complicado, com cada lado buscando obter o que puder, influenciado mais por interesses estratégicos do que por qualquer espírito mais profundo em torno de uma causa comum.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Obama e Francisco: um ''reset'' nas relações Igreja-Estado? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU