A retórica da soberania: “Brasil está entregando recursos naturais à exploração de empresas estrangeiras”. Entrevista especial com Denise Gentil

Segundo a economista, governo brasileiro não aproveita choque externo entre China e Estados Unidos para deslanchar projeto de desenvolvimento para o país

Foto: Juína mais

16 Setembro 2025

Enquanto o presidente Lula recebe aplausos pelo discurso em favor da soberania nacional frente ao tarifaço imposto pelos Estados Unidos, a economista Denise Gentil lembra que a temática não pode ser reduzida às questões monetárias e fiscais. Na atual conjuntura mundial, pontua, em que “quem controla a produção de terras raras, controla o poder geopolítico no planeta”, o governo brasileiro poderia estar mais empenhado em não permitir que o Brasil vire “um fornecedor de matéria-prima barata, um fornecedor de minério bruto”.

Na semana passada, Denise Gentil participou do debate “A conjuntura no Brasil 2025. Soberania, tarifaços e impasses socioambientais”, juntamente com David Maciel e Paulo Kliass, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na ocasião, ela criticou o Plano Brasil Soberano e a disparidade entre o discurso e a prática em defesa da soberania. “Nem no calor da situação (...) surge um projeto nacional de desenvolvimento para evitar a crise. Ao contrário, nós estamos entregando grande parte dos nossos recursos naturais, como petróleo, como terras raras que já estão sendo exploradas por empresas estrangeiras no Brasil. Não estamos aproveitando esse momento de choque entre duas grandes nações, Estados Unidos e China, para barganhar uma política de soberania, uma política de autonomia”.

No início do debate, Denise lembrou que “é impossível discutir a conjuntura brasileira sem se referir à rivalidade hegemônica crescente entre Estados Unidos e China”. Essa rivalidade, explica, “é centrada no controle da ordem monetária e, claro, da liderança na acumulação de capital. Vive-se, hoje, uma dinâmica de desdolarização, que ficou muito mais visível com a crise financeira de 2008 e se acelerou com a guerra na Ucrânia, com as sanções à Rússia e, obviamente, com as iniciativas do Brics e da Iniciativa Cinturão e Rota, da China”.

A seguir, reproduzimos a exposição de Denise Gentil no formato de entrevista.

Denise Gentil durante entrevista no IHU (Foto: Cristina Guerini | IHU)

Denise Gentil é doutora em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestra em Planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará (UFPR) e graduada em Economia pelo Centro de Estudos Superiores do Estado do Pará. Leciona no Instituto de Economia da UFRJ. É autora de diversos artigos acadêmicos e organizadora do livro Produto Potencial e Investimento (Ipea, 2009).

Confira a entrevista.

IHU – Por que Trump está impondo tarifas a vários países?

Denise Gentil – A política de tarifas do governo Trump é uma estratégia defensiva da hegemonia americana, que está em crise, e uma estratégia defensiva do dólar, como moeda universal. É uma tentativa de reconfigurar a ordem internacional pela força e prolongar uma transição hegemônica, que parece praticamente inevitável. A política de tarifas é um mecanismo de resistência de uma hegemonia que perdeu impulso tecnológico, produtivo, político e que está enfrentando a desdolarização. Como mecanismo de reação, os Estados Unidos tentam usar o seu poder comercial e militar para reconquistar sua supremacia. O poder comercial é usado como extensão do poder político e do poder militar para tentar prolongar uma transição, retardando a ascensão da China

Guerra tarifária 

Os Estados Unidos são incapazes de competir produtivamente, comercialmente e, portanto, recorrem a esses instrumentos políticos-militares e de protecionismo comercial. A guerra de tarifas coloca o país em posição oposta aos seus aliados estratégicos na Europa, na América Latina, na Ásia. Essa guerra é associada às chantagens bélicas em vários pontos do planeta e à guerra quente, digamos assim, como no caso da Ucrânia, no caso da guerra de Israel contra a Faixa de Gaza, na guerra contra o Iêmen. As chantagens expressam tentativas violentas de recuperar a autoridade moral do império. As tarifas são uma forma de pressão para submeter todos os países que discordam da hegemonia americana e resistem ao seu projeto expansionista e militarista de dominação. As chantagens servem para colocar esses países para negociar com os Estados Unidos dentro das regras dos Estados Unidos.

As tarifas têm sido explicadas até aqui por motivações endógenas e por motivações exógenas. Entre as motivações endógenas estaria a tentativa de recuperar a indústria dos Estados Unidos, que foi corroída pela financeirização e pelo deslocamento da produção para a Ásia. Do ponto de vista da política externa, o objetivo é frear a extensão da China e do Brics para inviabilizar a possibilidade de surgimento de novos centros de acumulação com capacidade de liderança e de formação de novas estruturas de poder.

A coordenação desses dois eixos, dessas motivações internas e externas, ficou a cargo de um Estado nacional altamente intervencionista, autoritário, reforçado por instrumentos fundamentais da disputa hegemônica, que rompem com o liberalismo que os próprios Estados Unidos haviam promovido desde o auge da sua hegemonia, em 1980. O poder estatal centralizado retoma políticas apoiadas no mercantilismo clássico e no nacionalismo econômico, uma vez que os Estados Unidos não conseguem mais competir pelas vias produtiva e tecnológica. Essas tarifas vieram dos Acordos de Mar-a-Lago, formulado em 2025 pelo governo Trump. Mas não se trata apenas de um acordo comercial; expressa uma mudança estratégica dos Estados Unidos, baseada numa nova doutrina nacionalista e protecionista de comércio internacional que procura recolocar o país no centro da ordem econômica, baseado na força.

Manutenção da hegemonia do dólar  

Para manter a hegemonia do dólar, os Estados Unidos têm que ter déficit comercial. No entanto, uma das pretensões dos Acordos de Mar-a-Lago e da política de Trump é repatriar cadeias produtivas, proteger a indústria e proteger os empregos nos Estados Unidos, reduzindo os déficits comerciais, restringindo a concorrência com a China e demais países – que é considerada injusta pelos americanos. Mas isso não faz muito sentido porque, nas últimas quatro décadas, os Estados Unidos têm acumulado déficits crônicos, déficits estruturais em transações correntes, puxados por resultados negativos na balança comercial. A busca pelo superávit e pela desvalorização do dólar para obter esses superávits é uma coisa extremamente contra a manutenção da hegemonia do dólar nos Estados Unidos.

IHU – Por quê?

Denise Gentil – Porque é importante que os Estados Unidos tenham déficit comercial com o restante do mundo. É o déficit comercial que assegura que a economia mundial tenha dólares. O déficit vai fornecer dólar como reserva de valor e é o meio pelo qual os Estados Unidos abastecem o mercado por onde esse dólar circula, na compra e venda de mercadorias, para que haja troca em dólar entre os demais países.

Estou falando sobre isso porque os dólares que os países obtêm com os superávits comerciais dos Estados Unidos, em grande parte, voltam para os Estados Unidos na forma de compra de ações, de títulos do Tesouro americano, de imóveis, e compõem as reservas internacionais dos países. Esses países, quando acumulam reservas internacionais para se protegerem das flutuações cambiais, dos ataques especulativos, reservam uma parte desses dólares para comprar títulos da dívida americana e ter rendimentos. Ou seja, esses dólares retornam para a economia americana em forma de títulos públicos e os Estados Unidos precisam desses títulos para se financiar.

É daí que vem uma quantidade enorme de recursos obtidos pela extração da riqueza financeira mundial – sobretudo na forma de captação de curto prazo – para dentro do sistema financeiro americano, a qual permite eles financiarem, de forma ilimitada, os seus déficits na balança de pagamentos, e o que é mais importante: financiar a máquina de guerra que eles têm. A capacidade de financiamento e de gasto dos Estados Unidos está ligada à montagem desse sistema dólar, que lhes vem permitindo alavancar ainda mais a sua presença militar em todos os continentes – o que se configura num privilégio exorbitante e ampliado. 

Esse endividamento excessivo, que para os demais países se apresenta como sinal de fraqueza e dependência americana, na verdade, para os Estados Unidos se assemelha a um sinal de força, baseado num sistema de extorsão global. É um sistema que impele, ou seja, que força os demais países a acumular ativos denominados em dólar, sobretudo moedas da dívida dos Estados Unidos. Isso é uma extorsão feita com o resto dos povos, com o resto das civilizações, porque fica nos Estados Unidos um fluxo contínuo de recursos materiais e humanos que vêm dos outros países.

Objetivos políticos do tarifaço norte-americano

O segundo objetivo político dessa política de tarifaços é desacoplar os Estados Unidos das cadeias produtivas globais controladas por rivais estratégicos, especialmente a China, e substituir isso por produção doméstica. Para isso foi introduzida a máxima de que a segurança econômica é a segurança nacional. A premissa por trás disso é que os Estados Unidos não podem ter dependência comercial – como Trump vive dizendo – porque isso enfraquece a segurança nacional. Portanto, eles vão aplicar tarifas, vão aplicar vetos a importações para preservar uma certa autonomia estratégica.

O terceiro grande motivo é fazer com que acordos bilaterais sejam feitos sob a pressão das tarifas e isso cause um constrangimento nos países que estão negociando, a fim de que se alinhem aos Estados Unidos se quiserem manter o acesso ao mercado americano, que é um mercado grande e rico.

É evidente que Trump faz isso por cima dos interesses dos próprios americanos. Essa decisão está causando muitos problemas nos Estados Unidos: inflação, queda nas cadeias produtivas e um processo de perda de competitividade da indústria, porque o custo dos insumos vai ficando cada vez mais alto. Portanto, os preços da indústria americana perdem competitividade. Há uma perda de participação dos Estados Unidos no PIB mundial – isso não começou com Trump – e um baixo dinamismo da economia americana.

Provavelmente, a economia americana vai crescer menos que 2% em 2025 – e já vem crescendo menos. Se fizermos um comparativo anual, veremos que cresceu, em novembro de 2024, nos últimos doze meses, 2%. 

IHU – Quais são os impactos das tarifas sobre o Brasil?

Denise Gentil – De tudo que o Brasil exporta, 12% se destinam aos Estados Unidos. As exportações dos Estados Unidos representam 2% do PIB brasileiro. Para o Brasil, a imposição de tarifas de 50% assumiu características particulares, diferentes das dos demais países. De início, já de partida, descartamos a motivação comercial porque os Estados Unidos mantêm superáveis na sua relação conosco Então, a motivação não pode ser essa. A motivação não é a busca do superávit com o Brasil, porque superávit já há.

Punição ao Brics

As tarifas estão muito mais ligadas ao posicionamento do Brasil no Brics, principalmente na cúpula do Brics ocorrida no Rio de Janeiro em julho de 2025. Esse grupo de países defendeu, abertamente, liderados pelo Brasil, mas também com amplo apoio da China e da Rússia, a desdolarização, o apoio ao uso de moedas nacionais nas transações bilaterais entre os países do bloco, via acordos comerciais, via swap cambial e se comprometeu com a criação de sistemas de pagamentos alternativos ao Swift, em uma clara demonstração de rejeição da ordem unipolar liderada pelos Estados Unidos. A esse ato de resistência ao uso do dólar se somaram as outras disputas interestatais nos campos tecnológico, financeiro, comercial e militar – mas tudo isso acaba culminando na luta central pela hegemonia da moeda americana, que é o dólar.

Então, as tarifas sobre o Brasil assumem um caráter punitivo pela insubmissão ao projeto de dominação do governo Trump. A particularidade da aplicação da tarifa de 50% também decorre do interesse dos Estados Unidos fazerem uma interferência sobre o Poder Judiciário brasileiro, com o objetivo de impedir que o ex-presidente Jair Bolsonaro fosse condenado pelo crime de tentativa de golpe de Estado. Além disso, as tarifas foram usadas para fazer retaliação às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) contra gigantes de tecnologia dos Estados Unidos. Trump, em defesa das corporações que o apoiaram nas eleições, interpretou as ações dos STF como ameaça à liberdade de expressão das empresas e cidadãos americanos. As big techs foram coibidas na sua liberdade de divulgar coisas consideradas inadequadas no Brasil. Trump retalia porque o Brasil retaliou de volta.

IHU – Concorda com a tese de que a ingerência americana tem como finalidade interferência na política brasileira?

Denise Gentil – Muitos analistas dizem que o que querem com essa estratégia de tarifas é uma mudança de regime no Brasil. Querem retirar um governo de esquerda, ou pelo menos de centro-esquerda, do poder. Não é só contra o Brasil que estão sendo feitas inúmeras chantagens. Chantagens militares estão sendo feitas à Venezuela, que está cercada por sete navios, submarino nuclear, aviões, espiões, helicópteros e quatro mil fuzileiros navais sob o pretexto do combate a um cartel de tráfico de drogas. Tudo isso visa mobilizar apoio interno nos Estados Unidos e galvanizar algum suporte político, porque o Trump está perdendo popularidade.

É uma estratégia contra o Brasil, a Nicarágua, a Venezuela, Cuba, Colômbia. Há uma clara intenção de provocar mudanças de regime internamente nesses país. Há um ataque contra governos anti-imperialistas. A agência geopolítica não pode ser desprezada na avaliação de uma estratégia comercial dos Estados Unidos. O Departamento de Estado é liderado por um conservador radical, Marco Rubio, descendente de cubanos. O plano não é deixar as coisas como estão na América Latina; o plano é de reconfigurar o continente.

IHU – Como o Brasil se posiciona diante desse quadro que descreve?

Denise Gentil – A política externa do governo Lula tem sido um tanto quanto omissa. Lula critica as sanções, critica o unilateralismo em fóruns globais, faz discurso dizendo que os Estados Unidos têm agido como imperador do planeta. Isso tem, evidentemente, rendido um apoio interno importante para o presidente. Mas a fala dele é muito mais retórica. Na prática, o Brasil está entregando recursos naturais à exploração de empresas estrangeiras e praticando privatizações em larga escala. Não corta as relações comerciais com Israel, principalmente de petróleo e armas, evita se posicionar em apoio à Venezuela. Não se une à Colômbia e ao México para construir uma frente de resistência às ameaças imperiais dos Estados Unidos, o que gera uma certa distância entre a intenção e o gesto.

Sem uma iniciativa firme, o Brasil fica fragilizado na região e perde peso no cenário global. Essa cautela reflete, em parte, a necessidade de manter vínculos com o ocidente e expõe uma certa falta de ímpeto de romper com a dependência externa das relações comerciais e de captação de investimentos que o Brasil ainda quer continuar a manter, o que pode significar, para nós, a perpetuação dessa subordinação à agenda de Washington.

Essa omissão estratégica enfraquece a capacidade brasileira de liderar a América do Sul, limita a construção de uma frente soberana contra as pressões externas e contradiz o legado diplomático dos governos anteriores. Nos governos Lula I e II houve mais soberania. Nesse terceiro governo, Lula está abrindo mão do papel de protagonista que poderia ter para lhe dar legitimidade na América do Sul e no Brics

IHU – Como o governo reagiu diante das tarifas, para além da retórica?

Denise Gentil – As tarifas foram anunciadas em 09-07-2025 e só entraram em vigor em 6 de agosto. Mas o plano que o Brasil colocou em marcha para se contrapor a esse ataque das tarifas foi um plano muito modesto, chamado Plano Brasil Soberano, que, entre outras muitas intenções, deixou claro que o governo não está muito aparelhado para enfrentar essa crise.

Ele estaria aparelhado se pudesse realizar todos os montantes de gastos necessários para se contrapor à perda de PIB que teremos na ausência das exportações para os Estados Unidos. Ele estaria aparelhado se pudesse se contrapor a uma desaceleração do PIB – que vai acontecer em função da redução das exportações – com uma política monetária soberana. Ou seja, uma política em que não apenas definisse a taxa de juros de uma forma viável, mais baixa e competitiva para os capitais brasileiros, mas que pudesse gastar de forma apropriada com a indústria nacional, para que ela se recupere e passe a desviar aquilo que antes era exportado para os Estados Unidos para o mercado interno brasileiro. Isto é, utilizar os produtos agrícolas que não vão poder ser absorvidos na diversificação das exportações para a China, para Ásia em geral, para África, para serem utilizados dentro do Brasil. Isso não ficou claro no Plano Brasil Soberano.

Falta de propostas para enfrentar o tarifaço 

Além de anunciar esse plano de forma tardia, o governo federal anunciou um plano modesto, que traz apenas como principal estratégia uma linha de crédito de 30 bilhões de dólares, com recurso do superávit do fundo garantidor de exportações. Esse financiamento está condicionado à manutenção de empregos nas empresas beneficiadas. Quem tomar o crédito vai estar controlado. E quem não tomar o crédito? Qual é a política de amparo ao trabalhador?

Ficou claro que o governo não tem políticas como aquelas feitas na época da Covid-19 para preservar os empregos. Ele não tem política de redução de jornada, como fez aquela redução de jornada e de salário em níveis de 25%, 50%, 70%, por acordo individual ou coletivo. Não há uma política de suspensão temporária de contratos por 60 dias, prorrogáveis por ato do Executivo, com possibilidade de estabilidade temporária. Não há benefício emergencial de preservação de emprego nesse programa, proporcional à redução dessa jornada e dessa suspensão contratual. Não há, então, uma possibilidade de ajuda compensatória, voluntária, paga pelo empregador, que possa isentá-lo de impostos, da previdência, do FGTS, que são garantias do emprego que foram dadas em momentos de crise anteriores e que poderiam ser restabelecidas agora.

É evidente que isso custa ao governo. Esses benefícios que o governo pode conceder na forma de benefícios emergenciais, de preservação de emprego, vão contra o arcabouço fiscal que já tem gastos extremamente limitados na área social.

Estas ações poderiam passar por fora do arcabouço fiscal, mas não foram propostas. Então, o que tem aí? Tem um só crédito, tem prorrogação de prazo de drawback, diferimento de impostos, crédito tributário para desonerar as vendas no exterior, compras públicas, que são muito bem-vindas para priorizar produtos atingidos pelo tarifaço, para programas como Merenda Escolar, alimentação hospitalar e talvez até para o sistema prisional.

Mas o governo só conseguiu colocar fora do arcabouço fiscal 9 bilhões de reais. Esse valor é um recurso muito ínfimo para enfrentar uma crise e não vai ser contado no déficit das contas públicas. Então tem aí um uma supremacia do arcabouço fiscal, que é sempre intocável para preservar o legado do Lula – o legado que o Lula quer deixar: um legado superior ao combate à fome, superior ao Bolsa Família, superior a tudo.

Parece que Haddad e Lula querem passar para a história como o governo que fez uma maior austeridade fiscal em todos os governos neoliberais.

Plano preso aos limites estreitos do arcabouço fiscal

Então, o Plano Brasil Soberano não toca em questões importantes; é um plano que tem uma estratégia que não aproveita o momento de choque externo para deslanchar um projeto de desenvolvimento para o país que assegure a soberania brasileira, que reduza a fragilidade externa, que elimine ou pelo menos procure eliminar a dependência tecnológica, comercial e financeira dos Estados Unidos. É um plano que ficou preso aos limites estreitos do arcabouço fiscal. Por isso, ele é apenas um plano de emergência.

Não se trata de uma resposta estrutural; é uma resposta provisória. Cuidou dos alimentos que podem estragar, das empresas que podem fechar, mas não cuidou dos empregos e dos trabalhadores de uma forma vigorosa. Deixou de fora fatores muito importantes que vão para a mesa de negociação: as terras raras, a indústria de medicamentos, os data centers, as big techs. Enfim, são problemas estruturais que poderiam ser revisitados e solucionados, mas vão continuar não resolvidos.

O governo vai ter que substituir a queda das exportações por um aumento de gasto público para evitar que a economia desacelere perigosamente, mas não vai conseguir isso por causa das limitações de um regime de metas de inflação e as limitações do arcabouço fiscal. Nem está proposto na mesa revisar os parâmetros desses modelos, como, por exemplo, revisar o teto superior do gasto primário. Nem está nos planos rever a meta de inflação. Nada disso está colocado como uma fórmula urgente a se ver. Nem no calor da situação, forçado pelas circunstâncias, surge um projeto nacional de desenvolvimento para evitar a crise.

Pelo contrário, nós estamos entregando grande parte dos nossos recursos naturais, como petróleo, como terras raras que já estão sendo exploradas por empresas estrangeiras no Brasil. Não estamos aproveitando esse momento de choque entre duas grandes nações, Estados Unidos e China, para barganhar uma política de soberania, uma política de autonomia.

IHU – Quais os impactos políticos desse quadro que descreve?

Denise Gentil – Essa omissão, essa falta de ímpeto de enfrentar o arcabouço fiscal e de enfrentar o regime de metas de inflação para buscar um projeto nacional de desenvolvimento, para ter uma estratégia de desenvolvimento, vai ser perdida. Se, no início, o presidente Lula ganha um inesperável presente do presidente Trump, de sair fortalecido para unir a população em torno de um sentimento de nacionalismo, isso pode ser perdido no momento seguinte, porque a economia brasileira já mostra uma desaceleração, já mostra estar passando por um momento de crescimento mais baixo.

O segundo trimestre foi um momento de crescimento de apenas 0,4%, principalmente prejudicado pela desaceleração da indústria. A indústria, sobretudo a de transformação, já se mostra numa desaceleração, assim como a agricultura brasileira, que tem sido o carro chefe do Brasil. Então, as tarifas de imediato provocaram um impacto muito grande no mercado de capitais, de perda do valor das ações, que já foram recuperadas, mas notamos que essa desaceleração da economia brasileira também vai significar uma perda de força no mercado de capitais, com repercussões: efeitos da taxa de juros muito elevados, uma trajetória de queda no consumo das famílias e de queda no consumo do governo; desacelerou demais a demanda e isso tem efeitos danosos sobre o investimento.

Queria chamar a atenção para os efeitos danosos sobre o investimento. O investimento caiu 2,2% depois de uma série de altas consecutivas na comparação com os trimestres anteriores. A economia vive um efeito desacelerador dos investimentos, o que é muito ruim, devido a esse efeito combinado de choque externo de tarifas com uma política doméstica de austeridade fiscal e monetária, que tem um objetivo muito claro: desacelerar deliberadamente a economia, ou seja, conter o crescimento.

Isso é uma meta do governo enquanto passamos por um choque externo. Então, o índice de confiança dos empresários já recuou 2,4 pontos. Os agentes do mercado estimam que o PIB do Brasil vai sofrer uma contração entre 0,3 e 0,4 pontos percentuais, só com o efeito das tarifas. Mas a esse efeito vai se somar a taxa de juros de 15%, que implica numa promoção, uma aceleração do rentismo no Brasil, porque a taxa de juros nos Estados Unidos está em queda.

As taxas de juros estão tendendo a cair, e se a nossa se mantiver em 15%, esse diferencial entre a taxa de juros interna e externa vai promover ainda mais o rentismo. Nós teremos um duplo movimento contrário aos investimentos: o diferencial de juros e a ausência de demanda agregada em função da queda do consumo das famílias e da queda de consumo do governo. Então, vai haver, evidentemente, uma queda na taxa de lucro do setor exportador, que arrastará os investimentos no setor exportador e no restante da economia por mecanismos deflagradores para os demais setores. Como consequência, teremos uma queda no PIB.

O PIB brasileiro não é apenas sensível às exportações; ele é extremamente sensível ao gasto do governo. Isso pode gerar um problema cambial em função da menor entrada de dólares no país. Se as importações não caem, pode haver uma desvalorização cambial. O dólar vai ficar mais caro, inclusive porque os investidores estrangeiros tenderão a retirar seus investimentos do país. Entrando menos dólares, pode haver um problema de inflação cambial pela desvalorização do real. O dólar mais caro vai provocar uma subida nos preços dos importados, nos componentes, peças de bens finais etc. E a inflação pode ficar maior até o fim do ano.

Uma inflação maior fará o Banco Central reagir com taxas de juros pelo menos mantidas em 15%. Internamente, vamos ter uma menor renda disponível na mão das pessoas, o que significa menor consumo, o que também desestimula os investimentos. O custo do crédito já está muito alto e vai subir ainda mais, o que se desenrolará no aumento do endividamento das famílias e das empresas, provocando de novo menos consumo e menos investimento, e o que é pior: queda nos empregos e queda de salários.

É esse final que quero salientar: nós precisamos de uma reação enérgica do governo. Mas essa reação enérgica, em primeiro lugar, precisa partir de uma decisão de abandono do neoliberalismo, de abandono dos cânones do neoliberalismo no Brasil e, em segundo lugar, da busca pelo apoio popular para respaldar o governo no enfrentamento da elite financista e rentista, que pratica uma verdadeira ditadura dos seus interesses dentro do país.

Soberania das terras raras

O presidente Lula, para enfrentar o governo Trump com uma política interna consistente, precisaria da mobilização popular, para tomar fôlego e impulso nessa direção e para desenvolver uma real soberania. A soberania não é só monetária e fiscal. É uma soberania que tem a ver com as terras raras. Elas vão ser um alvo de negociação. As nossas terras raras são insumos críticos para tecnologias estratégicas, como chips, baterias, armamentos, turbinas eólicas, carros elétricos. Quem controla a produção de terras raras, controla o poder geopolítico no planeta, de tão importantes que elas são hoje. 

O Brasil não pode virar um fornecedor de matéria-prima barata, um fornecedor de minério bruto. Ele precisa controlar desde o subsolo até o produto final gerado dessas terras raras. Para ter esse domínio, precisa, em primeiro lugar, ter um mapeamento e uma certificação de reservas, de forma a ter dados geológicos completos e auditados pelo próprio Estado para evitar a dependência de levantamentos feitos por empresas estrangeiras.

É preciso também que tenha o controle estatal sobre o licenciamento, sobre a produção dessas terras raras e desses minerais críticos. O Brasil precisa criar a capacidade de processamento químico e metalúrgico interno, evitando exportar minério bruto para reduzir a vulnerabilidade e aumentar o valor agregado. Sobretudo, o país precisa negociar em bloco, se articular com demais países do Brics para estabelecer preços mínimos para esses minerais críticos, para essas terras raras e condições de fornecimento para evitar a pressão de negociações bilaterais com os Estados Unidos.

Precisamos exigir cláusulas de reciprocidade tecnológica: condicionar a venda de terras raras à transferência de tecnologia para beneficiamento, para fabricação dos componentes, para reciclagem. Também precisamos diversificar os compradores. Vender para outros países e regiões, incluindo China, a União Europeia, a Índia, para não ficar refém apenas do mercado americano.

É preciso que construamos construamos um fundo soberano dos recursos minerais, também captar parte dessa receita das exportações para reinvestir em pesquisa, em infraestrutura, em defesa, em educação. Enfim, construir um fundo soberano a partir dessas receitas e fazer o que a China faz: ter o controle estratégico das exportações. 

O que significa isso? Significa licenças específicas para exportação, para podermos restringir as vendas em caso de uma ameaça de segurança nacional. É preciso estabelecer parcerias com países que já dominam o refino, como a China e a Austrália, e com universidades nacionais. Precisamos também capacitar a mão de obra para formar engenheiros e técnicos especializados para reduzir a dependência de consultores estrangeiros.

Resumindo, temos este encadeamento: uma guerra geopolítica extremamente importante entre Estados Unidos e China. Dessa guerra saiu uma luta pelo dólar e uma guerra comercial e tarifária em que o Brasil precisa ter soberania real para negociar. Uma soberania real, concreta, que não seja apenas parte do discurso e da retórica. Ou seja, uma soberania que defenda os trabalhadores do país.

Essa soberania real só vem quando conseguimos controlar a nossa própria moeda. Ou seja, ter soberania sobre o real e, portanto, gastar, quando for necessário gastar com a população. Ter soberania sobre o nosso subsolo, porque as terras raras vão ser alvo dessa disputa geopolítica. Temos que evitar nos mantermos na lógica de um país colonizado, fornecedor de matérias-primas baratas, sendo plataforma de valorização financeira dos Estados Unidos. A negociação com os Estados Unidos deve ser uma negociação em bloco, em que busquemos parceria com aqueles países que também se opõem ao unilateralismo e ao domínio americano.

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