11 Novembro 2016
"Então, talvez hoje teríamos de formular algumas novas questões a fim de ajustar o conceito para a atual conjuntura internacional, que implica em uma nova configuração de poder com eixo no Pacífico Norte. Particularmente, cabe perguntar-se: a China continua fazendo parte da "periferia"? A China está em igualdade de condições com o Chile, a Argentina e outros países latino-americanos?", escreve Mario Hernandez, apresentado na III Jornada de Estudos Sobre a América Latina e o Caribe, realizada em 28, 29 e 30 de Setembro de 2016 no Instituto de Estudos Sobre América Latina e Caribe, na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Rebelión, 10-11-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Eis o artigo.
A estratégia chinesa nutriu-se primeiramente de um regime de organização social de rígido controle estatal com um alto teor repressivo.
A contrarrevolução social que implicou na restauração capitalista, especialmente no período entre 1992 e 2014, fez com que ela desempenhasse um papel profundamente reacionário na arena mundial. A superexploração do proletariado chinês ajudou a diminuir os salários e a corroer as conquistas dos trabalhadores em todo o mundo. A política do governo chinês é profundamente conservadora e reacionária.
Em segundo lugar, o desenvolvimento dos investimentos na indústria e na infraestrutura, a exploração laboral capitalizada pelo Estado e a redistribuição dos recursos em prol das exportações provocam um superávit constante e crescente da sua conta corrente. O crescimento dos empregos em suas fábricas foi desencadeando um processo fenomenal de destruição de postos de trabalho industriais, principalmente nos EUA e na União Europeia. Desde o ingresso da China na OMC (em 2001), sua economia saltou de 220 milhões de dólares de reserva para mais de 4 bilhões, hoje.
A introdução de novas tecnologias e o desenvolvimento de sua infraestrutura aumentaram a produtividade de trabalho a um ritmo de 12% ao ano entre 2003 e 2007, e de 9% entre 2008 e 2012, enquanto os EUA cresceram a menos de 2% em ambos os períodos (Conference Board).
Na fase inicial do crescimento acelerado, apropriou-se da produção e exportação mundial, especialmente as de manufatura leve, ao custo de um menor desenvolvimento do seu mercado interno. Uma das indústrias mais emblemáticas foi a do calçado, uma das que mais necessita de mão-de-obra. Para outros países, vendeu-se o par de calçados a um valor médio de US$ 4,09, o que permitiu-lhe controlar mais de 70% das exportações mundiais de calçado. Desta forma, seus produtos conseguiram captar massivamente os segmentos de classe baixa e média dos mercados internacionais, deslocando parte do fornecimento de determinadas indústrias estrangeiras, também intensas em mão-de-obra, como a indústria têxtil, a metalúrgica, a eletrônica e a automotiva. Nesta última, sua participação na produção mundial dobrou a partir da eclosão da crise financeira, em 2008. Em 2014, produziu 23,7 milhões de veículos, representando 26,4% do mercado mundial.
Depois da última crise financeira mundial, a política chinesa tem avançado mediante o desenvolvimento de investimentos estrangeiros diretos, orientados pelo seu governo, tendo como principal destino a captação de recursos naturais, especialmente recursos energéticos e de mineração, que são o seu maior gargalo, e conseguindo que o Iene seja aos poucos introduzido como moeda de intercâmbio e reserva mundial. Até a data, 40 bancos centrais utilizam o Iene como uma das suas moedas de reserva. A China também se tornou uma das principais nações credoras, com recursos naturais vinculados às suas necessidades. Na América Latina, além dos empréstimos concedidos à Argentina, na sequência do desastre recente dos preços do petróleo, outorgou crédito de US$ 20 bilhões para a Venezuela, e US$ 5,3 bilhões para o Equador. O fluxo crescente de capital chinês para o exterior é a expressão de uma busca incessante para encontrar oportunidades de investimento para o capital excedente acumulado no país, assegurando o acesso às fontes de matérias-primas da maneira mais econômica possível, desenvolvendo novos projetos ou comprando empresas nestes setores, assim como investindo na infraestrutura necessária para facilitar estas transferências.
A principal área de investimento chinês na Argentina é o setor de gás e petróleo, assim como o de alimentos. A compra de 51% da Nidera, uma comerciante de grãos, pela estatal chinesa Cofco, é um bom exemplo. Ainda assim, o projeto mais importante para a República Popular da China (RPCH), na Argentina, está no financiamento da modernização da ferrovia Belgrano Cargas, que percorre 70% do território no qual se planta e se colhe soja. A China se interessa exclusivamente no intercâmbio comercial e não pretende interferir na política interna dos Estados.
Os financiamentos chineses na região surgem sem exigências relacionadas à política fiscal ou monetária; no entanto, existem imposições para que cada país reduza as suas relações com Taiwan e a obrigação de privilegiar a contratação de empresas chinesas às locais.
O baixo nível de desenvolvimento tecnológico na América do Sul facilitou a extração de baixo custo dos recursos naturais necessários para abastecer o acelerado crescimento chinês.
A China ostenta o segundo maior PIB do planeta, de acordo com relatórios do Banco Mundial e do FMI, medido a preços correntes, e teria terminado 2014 como a economia com o maior PIB medido pela comparação entre poderes aquisitivos, relegando os Estados Unidos para o segundo lugar. É o principal produtor de bens manufaturados, maior exportador mundial de mercadorias e segundo comprador global. Desde o início do século, é um importante produtor de artigos de consumo final e de bens duráveis de alto conteúdo tecnológico.
A China é o principal credor do Tesouro dos EUA, além do país no mundo que mais créditos do Tesouro deste país. Em 2013, 89 das 500 empresas de maior faturamento global do planeta eram de capitais chineses.
Apesar de não ter a possibilidade, a curto prazo, de desbancar os EUA em sua hegemonia mundial, já desafia a vigência do dólar como moeda global e possui grande influência entre as nações africanas, os países latino-americanos e outros países do G77.
A industrialização intensa lhe permitiu crescer a taxas anuais de 10% entre 1978 e 2012. A população urbana aumentou de 18,57% para 51,78% e a expectativa de vida de 66,5 para 73,5 anos, no mesmo período.
É o segundo maior consumidor de petróleo e o primeiro de energia elétrica e produtos como o cobre, o zinco, o carvão, a soja e o açúcar. Garantir minerais, alimentos e combustível trata-se de uma questão de Estado, que é o motivo da expansão das relações comerciais com a América Latina e de seus investimentos significativos na região. Sua demanda por esses produtos explica o aumento dos preços dos commodities. O esquema de exportações se concentra em poucos produtos primários ou manufaturas de origem agropecuária em troca de uma gama diversificada de bens de consumo com alto conteúdo tecnológico, bens duráveis de produção ou insumos industriais.
Em 1990, a China representava o 14º destino das exportações argentinas, que representavam 1,95% das mesmas, e a 22ª origem de importações, com 0,78%. Em 2013, é o segundo destino de exportações e importações, com 7,19% e 15,34%, respectivamente.
As exportações estão concentradas em poucos produtos de valor agregado reduzido. Entre 2003 e 2013, quase 85% concentrou-se em apenas três produtos: feijão de soja (55,46%), óleo de soja (19,27%) e petróleo bruto (10,04%). As importações se encontram diversificadas em várias manufaturas de baixo, médio e alto conteúdo tecnológico.
Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), os investimentos da China na região são destinados a atividades extrativas primárias e, em segundo lugar, para atividades de apoio, tais como obras de infraestrutura, no setor energético e financeiro, caracterizando-se pela pouca ou nenhuma transferência tecnológica e a coerção para contratação de empresas chinesas para realização de obras que poderiam impulsionar o desenvolvimento de empresas locais, além do fornecimento de suprimentos e materiais de origem chinesa, o "Made in China". Desta forma, contribui-se para reprimarizar as exportações na região, de acordo com um padrão de acumulação extrativista primário, restringindo o mercado para as manufaturas locais e aprofundando a inserção subordinada e dependente da América Latina na divisão internacional do trabalho.
Esta situação ocasionou fortes críticas por parte de economistas ligados à esquerda política. Ariel Slipak, por exemplo, argumenta que: "Em 2014, a implementação bem sucedida do swap de moedas apresenta-se como 'um êxito', o que não constitui mais do que um mecanismo pelo qual o país aumenta seu endividamento externo para continuar comprando bens manufaturados que poderiam ser produzidos dentro do MERCOSUL, mas evitando grandes saídas de dólares.
Nessas negociações, a Argentina "obtém" a possibilidade de exportar mais produtos para a China como a carne com osso, o sorgo, peras e outros produtos primários, conseguindo o que o especialista em Relações Internacionais Eduardo Oviedo denomina de "uma reprimarização diversificada". Por sua vez, a Argentina dá o controle de recursos estratégicos e infraestrutura, assim como fez Julio A. Roca (h), em 1933.".
Esteban Mercatante e Eduardo Molina declararam, na mesma publicação, que: "[A China] é uma potência emergente, mas ainda não é um imperialismo totalmente constituído. Ela ainda não tem relações de subordinação semicolonial sobre outros países e é carente de atributos de hegemonia cultural com os quais os imperialismos americano e europeu introduzem elementos consensualmente em sua dominação sobre outras regiões do mundo.
Não obstante, o impacto da ascensão da China na América Latina já é evidente. Desde os primeiros anos deste século, a demanda chinesa impulsionou o boom das matérias-primas, motor do crescimento latino-americano por quase uma década. Nos últimos anos, um fluxo de empréstimos e investimentos vem aumentando, juntamente a uma ampla atividade diplomática de alto nível e acordos de cooperação com vários países, como a Argentina e a Venezuela, apontando para uma ‘associação estratégica’".
O anúncio chinês de dispor de US$250.000 milhões para investir na região durante a próxima década, converte a China, provavelmente, em uma ameaça estratégica para os Estados Unidos, ainda que siga, juntamente com a União Europeia, nas primeiras posições em termos de investimento global na região. No ano passado, o estoque de capital chinês acumulado na América Latina ainda não era 10% do que possuem as empresas de capital europeu ou norte-americano.
No caso da Argentina, o financiamento chinês de curto prazo desempenhou um papel central para evitar que houvesse uma corrida contra o peso em 2015, ainda que por si só não seja suficiente para resolver o déficit de moeda estrangeira a médio prazo. Também permitiu negociar projetos de infraestrutura, sem concordar com as condições associadas aos acordos com o Banco Mundial.
A Venezuela, por sua vez, exporta petróleo tanto para a China quanto para os Estados Unidos. O país recebeu empréstimos de US$45 bilhões e há investimento chineses substanciais em hidrocarbonetos.
A construção de um novo canal interoceânico na Nicarágua com capital chinês não é algo menor. Um grande fluxo comercial e de produtos se estabeleceria, fora do controle norte-americano no coração do seu próprio "quintal”. Ao contrário do que acontece com os Estados Unidos, também um produtor de matérias-primas e alimentos, as economias latino-americanas são complementares à China. A nova potência se lançou a um processo agressivo de investimentos e expansão do intercâmbio comercial, especialmente com aqueles países nos quais Washington tenha deixado campo como o Equador, a Venezuela e a Argentina.
Propõe-se a Washington um problema estratégico, ainda que o peso chinês "orgânico" na região seja relativamente pequeno. O "fator chinês" será um ingrediente impossível de se ignorar no cenário latino-americano e das relações com o imperialismo.
Os compromissos estabelecidos nos acordos de cooperação com a China colocam-na em uma posição privilegiada, competindo com os capitais regionais, o que cria resistência em partes da indústria mexicana, brasileira ou argentina.
Não deixa de chamar a atenção a súbita consciência da problemática do "desenvolvimento dependente", exibida por muitos meios que sempre defenderam a hegemonia dos EUA. Inimigos tradicionais da industrialização e defensores de todas as demandas do "campo" subitamente se escandalizam com os riscos da reprimarização e o extrativismo ocultos na relação com a China.
A China não investe na região por altruísmo, mas como parte de uma estratégia global. Existem condicionalidades, mas elas dependem de cada projeto. Ignora-se o fato de que até mesmo os créditos do BNDES, o banco do desenvolvimento do Brasil, sempre estiveram atados à compra de insumos brasileiros praticamente em sua totalidade. A escolha de cada pacote de créditos corresponde ao país em função das suas necessidades e prioridades. O financiamento de obras da infraestrutura é um dado separado das decisões de comércio exterior. Os acordos com a China não determinam a escolha de um determinado tipo de desenvolvimento, que irá seguir subordinada aos governos vigentes.
A "parceria estratégica" com a China, para a qual as burguesias da região são direcionadas, oferece fortes benefícios de curto prazo para vastos setores do empresariado vinculados aos commodities ou à obra pública, enquanto promete impor custos onerosos sobre o endividamento e penetração de novos capitais, que se somarão àqueles que já são impostos pelo capital financeiro europeu e norte-americano.
A nova "aliança estratégica" entre a Argentina e a China explica-se em função de duas variáveis: a demanda local de financiamento e a oferta de recursos disponíveis no mundo. Antes de vincular-se com a nação asiática, o país percorreu todo o espectro de opções possíveis: aprofundar seus laços com o Brasil, depois com a Rússia e, finalmente, o caminho fracassado de regresso aos mercados financeiros tradicionais. Os acordos fechados na recente visita presidencial de Cristina Kirchner à China foram, acima de tudo, consequência das circunstâncias e das mudanças na geopolítica mundial.
A China ofereceu financiamento de mais de US$30 bilhões para infraestrutura: investimentos em obras hidrelétricas, nucleares e de meios de transporte, que, diga-se de passagem, permitirão avançar rumo à independência energética e aliviar a restrição externa.
O crescimento da primeira década de 2000 foi autofinanciado. Após o fim da conversibilidade, depois de mais de três anos de recessão, houve uma capacidade ociosa e bons preços internacionais dos commodities, o que garantiu um fluxo abundante de câmbio. Depois da crise, a restrição externa apareceu como um cenário distante.
Hoje a restrição externa não se limita a uma futura possibilidade teórica: chegou e deve de ser resolvida.
Dominados pela urgência de contar com financiamento externo, apelou-se a uma estratégia "pró-mercado" (ICSID-Clube de Paris-Arranjo com Repsol) que chocou-se com o fracasso do Juíz Gresia.
Embora sejam estas as alternativas, ou se transforma a estrutura produtiva e a inserção internacional, ou se consegue financiamento. A primeira via é uma tarefa de longo prazo, a segunda é instantânea. Daí a aliança com Chevron pela região de Vaca Muerta.
De acordo com esta ideia, chamada de doença holandesa na América Latina, a descoberta de grandes recursos naturais ou o aumento dos preços das matérias-primas exportáveis - petróleo, gás, metais, produtos agropecuários - inibe a industrialização e o desenvolvimento dos países produtores desses insumos. Aqui está a culpada pelos males da periferia: a sua riqueza.
Seus ganhos de crescimento e bem-estar, desde os anos 2000, responderiam principalmente ao aumento dos preços das matérias-primas, mas como o ciclo dos commodities havia terminado, chegou o momento de relaxar as pretensões de autonomia, a industrialização e redistribuição, e adotar políticas para ganhar a confiança do capital privado, a fim de aumentar a produtividade e melhorar a infraestrutura através de seus investimentos.
É verdade que os preços das matérias-primas pararam de subir em 2011, mesmo que permaneçam bem acima dos níveis das décadas anteriores. Os principais commodities de exportações na América Latina são o petróleo, o cobre, o ferro e a soja. O petróleo passou de US$10 por barril no início de 1999 para uma alta de 113 em julho de 2008 (Dated Brent, West Texas Intermediate e Dubai Fatch), e ao final de 2014, estava em US$60. O cobre, que ao final de 2001 era negociado a US$1.473 por tonelada, em fevereiro de 2011 chegou a US$9.880 e no final do ano estava em US$6.446. A mesma coisa aconteceu com o ferro, que passou de US$12 a tonelada para US$187 e em dezembro passado estava em US$69.
Considerando que a América Latina é um exportador líquido de matérias-primas, ou seja, vende mais do que compra estes produtos, os preços mais baixos das suas exportações podem reduzir suas receitas de câmbio, mas são compensados por maiores volumes de vendas destes bens ou outros.
As importações cresceram ligeiramente mais rápido do que as exportações (31% contra 25% entre 2010 e 2013). Assim, o saldo do comércio exterior tornou-se negativo para a região e isto acende um sinal de alerta, ao qual é necessário prestar atenção, porque se trata uma vez mais da restrição externa ao crescimento: a escassez de meios de pagamento internacionais para importar, remunerar o capital estrangeiro e cancelar dívidas em moeda estrangeira.
Ao recorrer ao conceito de "cooperação Sul-Sul", Pequim não apenas conseguiu esconder a assimetria de poder real, mas também o fato de que o atual tipo de intercâmbio comercial favorece a reprimarização das estruturas produtivas dos países da América Latina.
A relação comercial reproduz o velho esquema de diálogo centro-periferia, enquanto se acentua a assimetria de poder a favor do país asiático e conduz à reprimarização das estruturas produtivas, condicionando, portanto, o desenvolvimento dos países latino-americanos.
As definições que utilizam referências como a de que o intercâmbio "se dá entre os países do sul" não oferecem uma maior transparência. Não há dúvidas de que "sul" e "iguais" se vinculam com a ideia de países em desenvolvimento. Não obstante, "sul" já não parece ser um componente muito claro do conceito, mas, pelo contrário, torna-o mais difuso. Por exemplo, Chile, Austrália e Nova Zelândia são países que se encontram no hemisfério sul, mas estão associados com países desenvolvidos, e inclusive alguns deles pertencem à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
Ser, então, um país em desenvolvimento parece uma condição essencial para que se possa desenvolver a cooperação Sul-Sul, pois estes países enfrentam o obstáculo comum do subdesenvolvimento. Portanto, a lógica do sul perdeu a conexão com os critérios geográficos outrora mais marcados. "Norte" e "Sul" já não parecem ser categorias válidas para caracterizar o centro e a periferia da economia mundial ou do sistema internacional. Isso demanda uma adequação teórica, principalmente para o pensamento desenvolvimentista e dependentista, porque a cooperação Sul-Sul se nutriu precisamente nestes dois conceitos, com o propósito de que os países periféricos ou subdesenvolvidos melhorassem a sua capacidade de negociação com os países centrais, com a finalidade de lidar com os problemas vinculados com o comércio e o desenvolvimento.
Então, talvez hoje teríamos de formular algumas novas questões a fim de ajustar o conceito para a atual conjuntura internacional, que implica em uma nova configuração de poder com eixo no Pacífico Norte. Particularmente, cabe perguntar-se: a China continua fazendo parte da "periferia"? A China está em igualdade de condições com o Chile, a Argentina e outros países latino-americanos?
Em primeiro lugar, há de se salientar que a cooperação Sul-Sul não se esgota em um instrumento, mas centraliza uma vasta gama de ferramentas para seu desenvolvimento, embora, é claro, todos eles compartilhem um objetivo em comum: sair do subdesenvolvimento. Entre os instrumentos mais importantes estão o intercâmbio de conhecimentos técnicos e científicos; as negociações nas esferas política, social e cultural; a defesa ambiental; entre muitos outros assuntos. Em segundo lugar, o instrumento mais importante (presente tanto na definição do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe -SELA- como na de Agência de Cooperação Internacional do Japão - JICA) é o intercâmbio comercial, porque se o objetivo da cooperação Sul-Sul é resolver os problemas relacionados com o desenvolvimento, o comércio e a nova ordem econômica internacional, o "intercâmbio comercial" torna-se uma instância prioritária para o seu desenvolvimento operacional, cobrando uma relevância particular sobre os outros instrumentos recém mencionados.
No entanto, nenhuma das concepções analisadas explica que tipo de intercâmbio comercial é aquele que procura a cooperação Sul-Sul. Falha conceitual que leva a analisar duas outras definições operacionais.
O conceito de "comércio interindustrial", que se refere especificamente ao intercâmbio de manufaturas por alimentos e matérias-primas, é derivado da definição clássica de vantagem comparativa e tem sido o tipo de intercâmbio associado com o comércio entre países centrais e periféricos, ou seja, o que é comumente chamado de comércio norte-sul.
Em contraste, define-se como "comércio intraindustrial" aquele que opera pela troca de manufaturas por manufaturas, o que está longe de ser a consequência de uma vantagem comparativa, mas o resultado de uma maior similitude produtiva e tecnológica, de maior disponibilidade de capital e de trabalhadores qualificados.
Tradicionalmente, o comércio intra-industrial, também chamado de comércio de "duas vias", vinculou-se ao comércio entre países desenvolvidos. No entanto, graças aos processos de integração regional e à proximidade geográfica, este tipo de comércio também começou a ser visto entre os países em desenvolvimento. Assim, tanto a cooperação Norte-Norte quanto a Sul-Sul contemplam um possível intercâmbio de tipo intra-industrial, o que favorece o desenvolvimento e a industrialização dos países. Em contrapartida, a cooperação Norte-Sul exclui inexoravelmente a possibilidade de um intercâmbio desta natureza, dando prioridade, em consequência, ao comércio interindustrial.
Logicamente, os países em desenvolvimento podem manter intercâmbios comerciais de tipo intra-industrial, e isto demandou uma adaptação de suas estruturas de produção. A estrutura de produção de um país é substancialmente determinada por variáveis endógenas, tais como: o favorecimento de fatores produtivos; a proteção jurídica da propriedade privada; o regime político; a classe política que conduz o processo político; a oferta e a procura (interna e externa); entre as variáveis mais relevantes. Trata-se da estrutura que determina a produção de bens e serviços de uma sociedade e, ao mesmo tempo, garante a reprodução da sociedade aos quais eles se destinam. Agora, toda a estrutura produtiva supõe uma orientação comercial externa específica, assim como vão se demarcando certas condições para a inserção internacional do país: quem compra de nós? quem é que nos vende? quem investe em nossa estrutura de produção? o que buscamos obter no mundo? E quem pode contribuir para a busca de nosso objetivo? De modo que, a fim de conseguir implementar a cooperação Sul-Sul, os países em desenvolvimento devem passar por mudanças em sua estrutura produtiva e em sua orientação comercial externa.
Enquanto o México, o Brasil e a Argentina são os três países que concentram o maior comércio intra-industrial com a América Latina, a China apresenta limites para a cooperação Sul-Sul, pois o intercâmbio responde claramente ao tipo interindustrial. Em contraste, o intercâmbio da China com os países do Leste Asiático, sim, expõe uma elevada percentagem de comércio intra-industrial. Esta informação traz à tona a relação intrínseca entre os processos de integração regional e o aumento do comércio intra-industrial. Se triangularmos o tipo de comércio da Argentina com o Brasil e a China, vemos que o resultado é muito claro: as exportações para o Brasil se concentram em mais de 60% em manufaturas de origem industrial, enquanto que as exportações para a China respondem claramente aos produtos primários e manufaturas de origem agrícola. Com efeito, no caso do comércio argentino-brasileiro, o setor automotivo favorece a integração produtiva de ambos os países e tende a aumentar o valor agregado das exportações que expressam claramente uma cooperação Sul-Sul.
Em compensação, no caso do intercâmbio chinês-argentino, o setor oleaginoso diminui a possibilidade de gerar maior valor agregado e direciona o comportamento exterior para a volatilidade dos preços internacionais de commodities. Diante disso, este esquema de cooperação não responde à lógica Sul-Sul.
Em suma, este apanhado teórico/conceitual permitiu determinar duas questões. A primeira, que a categoria "cooperação Sul-Sul" é insuficiente para analisar os padrões de comércio entre os países em desenvolvimento e que, portanto, é oportuno começar a falar em termos de "cooperação para o desenvolvimento". A segunda questão é que o comércio intra-industrial é o tipo de intercâmbio que produz maiores benefícios em termos de desenvolvimento econômico e, portanto, favorece os processos de modernização das estruturas produtivas.
Por outro lado, o comércio interindustrial tende a reprimarizar as estruturas produtivas, para reproduzir a lógica do centro-periferia e, consequentemente, limitar e condicionar a viabilidade de um modelo de desenvolvimento econômico.
Como aconteceu antigamente com a sua vinculação com a Europa, os países da América Latina voltam a ficar enredados na lógica centro-periferia. Assim, as regras do jogo parecem ser as mesmas. Em todo caso, a única coisa que varia são os jogadores.
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China e América Latina: uma nova matriz para uma velha dependência? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU