Brasil serve como laboratório de retaliações e de intervenções jurídicas para os EUA. Entrevista especial com Paulo Niccoli Ramirez

“Países que não estiverem alinhados com os Estados Unidos deverão sofrer não só retaliações econômicas, mas também retaliações ao Judiciário, Executivo, Congresso, aos corpos políticos, e inclusive uma eventual intervenção militar”, diz o cientista político

Foto: Agência Brasil

01 Setembro 2025

“As sanções a Alexandre de Moraes e a outros membros do Supremo Tribunal Federal – STF é a indicação de que há uma tentativa explícita de intervenção norte-americana nos processos políticos brasileiros, o que demonstra também uma intervenção sobre a soberania nacional”, afirma Paulo Niccoli Ramirez, na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo ele, o Brasil não estava entre as nações que despertavam o interesse dos EUA, mas com a eleição de Trump e a possível prisão do ex-presidente Bolsonaro, começaram a surgir justificativas de intervenção no país, baseadas no argumento de que o ministro do STF está cerceando a liberdade de expressão nas redes sociais. Por trás dessa narrativa, diz o entrevistado, “o que existe, sim, é um interesse econômico das big techs em ganhar recursos financeiros através de notícias falsas. Esse é um ponto muito pouco debatido. Fake news dá dinheiro para as big techs e para os influenciadores. Essa fonte de renda, que é tão lucrativa e abastece a rede internacional da extrema-direita, tem como sua fonte as redes sociais”.

Na avaliação do sociólogo, as ingerências de Trump no Brasil também estão associadas à manutenção de um pacto internacional de aliança entre políticos de extrema-direita e ao interesse em promover algum bolsonarista nas próximas eleições presidenciais.

As intenções do presidente norte-americano, contudo, não são apenas políticas, mas geopolíticas, segundo Ramirez. “Existe o temor dos EUA de que o Brasil, por ser protagonista da América do Sul, influencie as demais nações a tomarem o mesmo rumo, ou seja, de terem uma aproximação maior com os chineses do que com os EUA. Há uma questão geopolítica aí porque Trump anunciou que os países pertencentes ao BRICS seriam sobretaxados, fora as ameaças em termos não só da rota comercial, mas de criar um sistema financeiro à margem do dólar, através da comercialização de moedas locais ou criação de uma moeda comum entre os países que pertencem ao BRICS. O processo de desdolarização afeta os interesses americanos e é uma demonstração de que a hegemonia americana não é mais a mesma como foi no passado”, resume.

A seguir, Ramirez sublinha as tentativas de Trump resgatar o protagonismo norte-americano, comenta as razões da ascensão da extrema-direita no Brasil e os possíveis desdobramentos políticos e sociais do julgamento do ex-presidente Bolsonaro no STF, que inicia na manhã da próxima terça-feira, 02-09-2025. “O julgamento final poderá se estender até o fim do próximo ano, o que é muito perigoso para o processo eleitoral, já que, coincidindo com as eleições, isso tende a gerar um sentimento de frustração e de rebeldia dos segmentos bolsonaristas”. Neste momento, avalia, “a intenção dos bolsonaristas é muito mais salvar Bolsonaro da prisão do que promover um candidato à presidência para o próximo ano. Tanto que não há nenhum nome de bom senso na direita, enquanto Lula é um nome de consenso entre setores progressistas e de centro-esquerda”.

Paulo Niccoli Ramirez (Foto: Divulgação)

Paulo Niccoli Ramirez é graduado em Ciências Sociais e em Filosofia, mestre e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Leciona na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). É autor de O golpe de 2019 na Bolívia: Imperialismo contra Evo Morales (Coragem, 2023) e Sérgio Buarque de Holanda e a dialética da cordialidade (EDUC,2011). 

Confira a entrevista.

IHU – Na semana passada, a foto de Trump com os líderes europeus circulou nas variadas mídias. Uns leram a imagem como a força do protagonismo dos EUA no mundo, outros, como a subordinação da Europa ao país. Há quem enxergue Trump como o presidente da paz e quem o vê como presidente da força no sentido de conquistar o que deseja via imposição de sanções a outras nações. Como você interpreta aquela imagem à luz da atual conjuntura internacional? O que ela indica sobre a figura de Trump, o governo norte-americano e a relação dos EUA com os demais países? 

Paulo Niccoli Ramirez – As imagens têm um poder simbólico. Enquanto tais, elas expressam, de um ponto de vista semiótico, o protagonismo norte-americano. Embora os EUA sejam uma nação que se encontra num processo de decadência econômica (com o endividamento da população e o aumento do déficit público e da dívida pública), o governo Trump tenta resgatar ou fortalecer, dependendo do ponto de vista, a imagem do país como o grande mediador internacional e potência econômica.

Embora os EUA sejam uma potência econômica pelo tamanho que têm e embora tenham o protagonismo militar, Trump tenta passar a imagem de que está tudo sob controle, até mesmo tomando atitudes polêmicas, como humilhar na Casa Branca chefes de Estado. Eu diria que esse é um sintoma de um país que está em decadência. Assim como Roma teve seu Nero, anunciando um processo de colapso que foi gradual, os EUA têm o seu Trump como a manifestação do sintoma de que o país já não é mais o mesmo em função de uma crise interna relativa ao endividamento das famílias

Já não se vive mais nos EUA como na época do fordismo, em que se tinha um consumo infinitamente maior e os salários eram suficientes. Hoje, a população americana basicamente vive de endividamento. Ao se colocar à frente nessas relações internacionais, Trump tenta mostrar que o país ainda têm esta força – e tem, de fato, mas há uma sensação nos EUA de que o mundo já não é mais o mesmo em termos de capacidade dos EUA produzirem bem-estar a partir das relações que estabelecem com outras nações.

As guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza mostram que os EUA ainda têm o botão da guerra, ou seja, a capacidade de estabelecer ameaças, assim como também de tecer relações econômicas com outras nações. Esse é o grande imperativo dos norte-americanos: conseguir fechar acordos a partir do tamanho que têm, mas ainda assim não são a mesma coisa do que foram no passado.

Presidente Trump com os líderes europeus (Foto: Divulgação)

IHU – Simbolicamente, a imagem da reunião mostra que a Europa também não é mais a mesma e está bastante fragmentada internamente e subordinada aos EUA?

Paulo Niccoli Ramirez – A grande moeda de troca dos EUA é o comércio, as importações que fazem de outros países para abastecer o mercado interno. A Europa sentiu o peso de que, caso a retaliação fosse adiante, teria muito a perder, piorando sua própria condição atual. Desde o início da guerra da Ucrânia, o preço do gás e o preço de manutenção da vida dos cidadãos aumentaram muito. Então, a Europa, prevendo uma piora das condições econômicas, resolveu se rebaixar aos EUA.

Vale dizer que este acordo com os países da União Europeia envolve, entre outras coisas, o adiamento de decisões jurídicas em termos de controle das big techs, que têm um peso muito grande para Trump em função do fato de que as big techs, hoje, ajudam a protagonizar a imagem do presidente. Basta ver que o próprio departamento de Estado norte-americano solicita aos estudantes e migrantes que mantenham as redes sociais abertas, ou seja, há uma tentativa de cercear, por mais contraditório que possa parecer, a própria liberdade de expressão – embora os norte-americanos retaliem o Brasil supostamente por isso.

Mas a Europa se sentiu refém. Hoje, ela não tem condições de partir para uma negociação em que as taxas possam ser elevadas. A pressão econômica não existe somente nos EUA, mas também na zona do euro. Não tendo alternativa, o que restou à Europa foi aceitar as imposições de Trump, aceitar novos negócios e parcerias que são mais vantajosos aos EUA, pelo menos num primeiro momento.

Trump coloca de ponta cabeça as relações internacionais. Ontem mesmo [26-08-2025], vimos algo que afeta o mundo inteiro: a demissão de uma componente do Banco Central (BC) norte-americano. Isso nunca aconteceu desde a Segunda Guerra Mundial e os EUA gozavam de um BC autônomo, que não regulava apenas o país internamente, mas toda a economia mundial. Então, existe este temor: é melhor estar ao lado de Trump do que ser prejudicado por ele.

É isso que simbolicamente representou aquela reunião, ainda mais para negociar o fim da guerra da Ucrânia. Raramente essas reuniões são expostas assim tão claramente. Claro que houve um segundo momento de discussão fechada entre os chefes de Estado, mas Trump tem tentado resgatar algo que os EUA perdem gradualmente, que é o protagonismo, a imagem do país como o grande mediador das relações diplomáticas internacionais.

IHU – Qual é a melhor chave de leitura para compreender o tarifaço dos EUA ao Brasil?

Paulo Niccoli Ramirez – Essa é uma interessante discussão porque há uma premissa plausível nos EUA de apenas retaliar ou criar tarifas em situações eminentemente econômicas em que a balança comercial seja desfavorável aos EUA. Então, por exemplo, com outras nações, nem o Congresso norte-americano nem a Justiça podem fazer muita coisa quando não há, de fato, esse déficit. Não é o caso brasileiro. Os EUA têm vantagens nas relações comerciais com o Brasil, têm superávit. 

Justificativas para o tarifaço

Se a discussão for sobretudo econômica, não faz sentido retaliar o Brasil, o que demonstra que há uma discussão para além desta, que são duas. A primeira tem a ver com Bolsonaro. Ele pertence a uma aliança internacional de extrema-direita que envolve o próprio Trump, Milei e, na Europa, a primeira-ministra italiana, o chefe de Estado da Hungria e o presidente da Turquia. São todos políticos com tons autoritários, autocráticos, beirando ao fascismo. Nesse caso, claro que há um interesse norte-americano em promover algum bolsonarista ou alguém apoiado por Bolsonaro nas eleições do próximo ano. Então, a justificativa não é somente econômica, mas política e geopolítica. 

Há algum tempo, o Brasil é o grande protagonista entre a América Central e a América do Sul e existem interesses dos chineses, principalmente com os países do BRICS, de estabelecer novas rotas comerciais na América Latina, que engloba a chamada Nova Rota da Seda. Entre os projetos ousados dos chineses está o desenvolvimento de uma rota ferroviária que ligaria o oceano Atlântico até o oceano Pacífico, com porto no Peru. Isso fará com que o próprio canal do Panamá, em pouco tempo, se torne obsoleto.

Além disso, em cada estação de trem nessa rota que liga o Pacífico e o Atlântico, o plano chinês inclui instalar polos de consumo e produção de mercadorias, dinamizando suas vendas e, ao mesmo tempo, contribuindo para o desenvolvimento regional. Claro que isso afeta os EUA pelo escoamento e menor dependência da América Latina em relação ao país do norte, algo que vem desde o fim do século XIX, com o Plano Monroe, em que se falava da América para os americanos. A ideia basicamente era transformar a América Latina e a América Central em um quintal dos EUA num projeto imperialista e colonial que existe até hoje.

Resumindo, o que acontece é que existe o temor dos EUA de que o Brasil, por ser protagonista da América do Sul, influencie as demais nações a tomarem o mesmo rumo, de terem uma aproximação maior com os chineses do que com o próprio EUA. Há uma questão geopolítica aí porque Trump anunciou que os países pertencentes ao BRICS seriam sobretaxados, fora as ameaças em termos não só da rota comercial, mas de criar um sistema financeiro à margem do dólar, através da comercialização de moedas locais ou criação de uma moeda comum entre os países que pertencem ao BRICS. O processo de desdolarização afeta os interesses americanos e é uma demonstração de que a hegemonia americana não é mais a mesma como foi no passado. Hoje, existem países que conseguem afrontar economicamente os EUA, como é o caso da China. Claro que, diante dos tarifaços, o Brasil está mais propenso a estar mais próximo da China do que dos EUA.

IHU – Está em curso uma clara tentativa de intervenção política dos EUA no Brasil ou tudo isso faz parte do jogo político e ideológico de Trump, sem envolver propriamente o Estado, no sentido de garantir a eleição de um presidente alinhado ideologicamente a ele?

Paulo Niccoli Ramirez – Tem muitas diferenças entre o que Trump está fazendo e outras formas de influência norte-americana no Brasil. Antes, essa influência era feita via investimentos, lobbismo com políticos ou empresas norte-americanas que estavam no Brasil e atuavam muito mais junto ao Congresso em termos de aprovação ou não de leis. Mas esta é a primeira vez que um governo norte-americano resolve retaliar membros do STF.

Isto é muito estranho, já que há uma regra dentro da diplomacia internacional de não intervir nos poderes autônomos dentro das democracias. Então, as sanções a Alexandre de Moraes e a outros membros do STF é a indicação de que há uma tentativa explícita de intervenção norte-americana nos processos políticos brasileiros, o que demonstra também uma intervenção sobre a soberania nacional. Isso está explícito.

Geralmente, o tipo de pressão feita pelos EUA pós-Guerra Fria ocorria por meio de lobbismo, de investimentos em certos setores, que acabam influenciando certos políticos, mas nunca vimos os EUA agindo diretamente contra decisões jurídicas de um país democrático, como é o Brasil. Este país copiou o modelo democrático norte-americano. É interessante percebermos isso. A consolidação de um presidente eleito, com um mandato, com tempo limitado, a independência do STF – claro que isso já vinha de Montesquieu, na França iluminista do século XVIII –, e a invenção da figura do presidente foram aplicados definitivamente pelos EUA. 

É interessante perceber que há uma diferença imensa nas formas de influência americana. Claro que durante a Guerra Fria havia financiamento direto deles para golpes militares, mas, hoje, isso se chama, na Ciência Política, de golpes brandos ou golpes suaves, que acontecem por meio da influência norte-americana nos meios de comunicação e redes sociais via estímulo a manifestações de rua que zelem pelo interesse norte-americano. Temos visto os bolsonaristas marchando com bandeiras dos EUA e de Israel. Só que o caráter sui generis dessa situação é que, pela primeira vez, os EUA decidiram intervir sobre uma Corte. Isso não tem precedentes na política norte-americana, pelo menos em termos de intervenções sobre as democracias. É algo muito novo e desestabiliza o cenário político internacional. O que ocorre com o Brasil hoje pode servir de modelo para que os EUA realizem o mesmo em outras nações.

IHU – As sanções específicas ao ministro Alexandre de Moraes têm relação direta com a família Bolsonaro ou têm mais a ver com os próprios interesses do governo norte-americano em relação às big techs?

Paulo Niccoli Ramirez – Eu diria que as duas coisas porque a Austrália também tem uma legislação de controle das redes sociais, mas nem por isso houve alguma intervenção na Corte australiana por parte dos EUA. Não é o que acontece no Brasil; por isso, este é um caso muito específico. Ainda que fosse apenas uma situação econômica, o governo norte-americano interviria através do tarifaço. Mas é um ponto fora da curva a tentativa de criar sanções contra membros do STF, membros de um tribunal. Pelo menos desde a Guerra Fria não temos precedentes disto na política internacional. Nenhum país fez isso contra o outro, salvo quando eram casos de ditaduras, o que não é o caso brasileiro.

Pacto internacional

Existe, sim, um pacto internacional de aliança de políticos de extrema-direita. Ao mesmo tempo que Trump atende aos interesses da família Bolsonaro, ele também, nessa questão simbólica que discutimos na primeira questão, mostra-se como autoridade absoluta nas relações internacionais, o que é muito complicado porque em nenhum outro país isso foi feito, ao menos onde existe democracia. Temos este duplo cenário: há um interesse econômico, mas também um interesse político simultaneamente. Não dá para desvincular as duas coisas. Trump tem mostrado exatamente essa feição, e o guru intelectual de Trump, Steve Bannon, se reúne periodicamente com o Eduardo Bolsonaro.

Claro que Trump, sozinho, não teria tomado essas decisões e, possivelmente, nem tivesse consciência do que é o Brasil porque o Brasil estava na vigésima posição para baixo nos interesses norte-americanos no mundo. Ou seja, o Brasil não era um problema para os EUA. O Brasil nunca representou uma ameaça nem política nem econômica para a eles. Essa chave vira com a eleição de Trump e com a iminente prisão de Bolsonaro. É aí que começam a usar as justificativas de todo tipo, como a de que Alexandre de Moraes está cerceando a liberdade de expressão nas redes sociais, o que não é verdade.

Interesse das big techs

O que existe, sim, é um interesse econômico das big techs em ganhar recursos financeiros através de notícias falsas. Esse é um ponto muito pouco debatido. Fake news dá dinheiro para as big techs e para os influenciadores. Essa fonte de renda, que é tão lucrativa e abastece a rede internacional da extrema-direita, tem as redes sociais como sua fonte.

Então, existem problemas geopolíticos, problemas de ordem econômica e, ao mesmo tempo, política de intervenção dos EUA nesses territórios. Isso começa pelo Brasil, mas diria que o Brasil é um laboratório para os EUA. Primeiro, porque é uma grande nação. Segundo, porque tem capacidade de influenciar outros países da região. Terceiro, porque é o país mais próximo dos EUA que compõe o BRICS. Por mais que Trump retalie a Índia, não ousaria tomar as mesmas atitudes lá porque o país tem fronteiras com a China e está mais próxima da Rússia, tornando inviáveis ações mais ríspidas como as que foram feitas no Brasil.

IHU – O que significa o envio de forças militares dos EUA para a América Latina, com a justificativa de combater cartéis de droga? A presença militar na região seria uma reação a esse cenário que você descreve, de aproximação comercial dos países da América Latina com a China, ou tem algum sentido a tese de que a América Latina pode ser o próximo inimigo dos EUA?

Paulo Niccoli Ramirez – Essa é uma grande questão. Há uns três anos, entrevistei Evo Morales na casa dele, um ano e meio depois de ele ter sofrido um golpe de Estado em 2019. Fui entrevistá-lo no início de 2022 e ele disse algo muito interessante: que tinha um temor de que os EUA voltassem as suas forças militares para a América Latina por conta do interesse econômico em termos de exploração de terras raras, terras que tenham lítio, que são fundamentais ao desenvolvimento das big techs e da quarta revolução industrial.

Vale dizer que, ao mesmo tempo que há um horizonte para o fim da negociação da guerra da Ucrânia – que foi exatamente quando os EUA direcionaram a indústria bélica para abastecer a Ucrânia, diga-se de passagem –, os EUA talvez já tenham esgotado esse papel, negociando mais terras raras com a Ucrânia, e agora seja a hora de a indústria militar norte-americana se voltar para outra região, a América Latina, curiosamente.

Então, assim como o Brasil serve de laboratório econômico em termos de retaliações e de intervenções jurídicas sobre os tribunais, a Venezuela, por sua vez, serve de laboratório militar para os EUA. É claro que enviaram quatro navios para as fronteiras marítimas venezuelanas, e esse número não é nem suficiente para ganhar uma guerra nem para intervir na Venezuela, mas é um sinal de alerta do que está por vir. Ou seja, os países que não estiverem alinhados com os EUA deverão sofrer não só retaliações econômicas, mas também retaliações ao ao Judiciário, Executivo, Congresso, aos corpos políticos, e inclusive uma eventual intervenção militar.

É interessante perceber isso porque os EUA não vivem só de tarifaços e não viverão. A indústria bélica é um instrumento importante e cruel dentro dos EUA para mover a economia nacional. Tudo que eles não gastam em benefícios sociais públicos, como saúde, moradia e educação, investem na indústria bélica, que tem o papel de chantagear as outras nações a aceitarem as regras impostas pelo país em relação às dinâmicas econômicas. É isso que está no horizonte.

IHU – Teóricos de diferentes áreas do conhecimento estão tentando explicar a emergência da extrema-direita no mundo e a associam a vários fatores, como o surgimento de governos nacionalistas, a emergência de um novo tipo de fascismo ou o ressentimento de parcelas da população que foram empobrecidas por causa das dinâmicas da globalização. Outros a associam à crise mais ampla do progressismo. Alguma dessas interpretações explica a emergência da extrema-direita no Brasil? Como explica a adesão de uma parcela significativa da população à extrema-direita e essa virada na política, com ampla polarização? Isso é parte do jogo democrático, é manifestação de um antipetismo, de um ressentimento em relação a pautas sociais ou apoio a pautas fascistas? Analisando o cenário brasileiro à luz do que acontece em vários países do mundo, como compreende a emergência da extrema-direita no país?

Paulo Niccoli Ramirez – Bem interessante esta questão. A ascensão da extrema-direita ocorre em função das contradições que o capitalismo e o neoliberalismo, junto com a globalização, causaram desde o fim da União Soviética, da Guerra Fria. A promessa que se tinha na década de 1990 era a de que, sob a hegemonia do neoliberalismo, as economias iriam se dinamizar, a quantidade de miseráveis seria reduzida, assim como seriam produzidos empregos, empreendedorismo e uma sociedade global de livre circulação de mercadorias e, no caso da Europa, de livre circulação de indivíduos também. Mas não foi exatamente isso que aconteceu porque o capitalismo, por si só, é um sistema econômico contraditório e os sistemas nacionais foram perdendo protagonismo em termos de políticas sociais, seja para as aposentadorias e os direitos trabalhistas, seja para os programas voltados ao bem-estar da população. Obviamente, o que ocorreu foi uma perda da qualidade de vida da maioria das populações na Europa, na América Latina, de certa forma, mas, principalmente, nos EUA.

O fato de que o capitalismo neoliberal criou tantas contradições, gerou tantos endividamentos e pouco papel social nas políticas sociais, fez com que, sem uma alternativa econômica, política e social para os próprios problemas plantados pelo neoliberalismo, surgisse como alternativa de direita um discurso ideológico de mascaramento da realidade, que é o discurso ultrarreligioso, ultranacionalista, com a intenção de fazer aquilo que fazem todas as lideranças fascistas: resgatar o mundo que foi perdido.

Quando Trump anuncia o slogan a 'Tornar a América Grande Novamente' [Make America Great Again] ou quando Bolsonaro fala 'Deus acima de tudo e o Brasil acima de todos', isso é reflexo da tentativa de criar um falso imaginário na população de que é preciso resgatar os velhos tempos, o mundo como era antes. Junto com esse discurso surge todo o discurso conservador contra os imigrantes, a população LGBTQIAP+, contra os discursos antirracistas. Isso ocorre porque, graças às contradições do capitalismo e ao acirramento dessas contradições, grupos sociais antes marginalizados foram ganhando protagonismo pelas redes sociais, jogando em cena suas reivindicações e, ao mesmo tempo, afetando a moralidade dos conservadores. Essa é uma crítica que muitos cientistas sociais norte-americanos fazem aos progressistas. Não em relação ao conteúdo da sua crítica e reivindicações, mas à forma de apresentar essas ideias às populações conservadoras. Claro que uma pessoa criada no meio religioso e conservador, ao ouvir as demandas LGBTQIPA+ e antirracista, tem sua moralidade no sentido de achar que vão tirar o seu emprego, que estão lutando a favor dos imigrantes, que querem colocar educação sexual nas escolas, e assim por diante. O problema não está no conteúdo, mas na forma de comunicação, vão dizer os cientistas políticos norte-americanos porque isso afeta o imaginário das populações mais conservadoras.

As crises criadas pelo próprio capitalismo, como a bolha imobiliária norte-americana de 2008, explica muito bem a ascensão da extrema-direita mundo afora, ainda mais nos EUA. Isso permitiu que um discurso alternativo e falseador viesse à tona como se fosse a solução de todos os problemas econômicos e sociais.

Vemos isso também no Brasil. Por quê? Não podemos esquecer que os dois primeiros governos Lula e até o terceiro ano de mandato da Dilma, o Brasil cresceu muito economicamente, alavancando o consumo das famílias e o acesso aos produtos da própria globalização: celulares, computadores, as pessoas viajavam para fora do país mesmo sem serem ricas. O que veio depois de 2014 foi uma decorada do modelo econômico petista. A desvalorização das commodities afetou muito a arrecadação no Brasil e, consequentemente, isso teve impactos econômicos gigantescos. Entre eles, a queda dos salários proporcionalmente ao custo de vida. Isso envolve também a queda no bem-estar, na qualidade de vida e é nessa brecha que começam a surgir os discursos extremistas. Em 2013, vimos o sequestro das manifestações contra o aumento da passagem por grupos conservadores, com outras pautas, como foi o caso do surgimento do Movimento Brasil Livre (MBL), que é abastecido por essa rede internacional conservadora, tanto de estratégias comunicacionais quanto financeiras. E aí foram surgindo outros grupos, pedindo a ditadura, o retorno da monarquia, e todo tipo de absurdo.

A decadência econômica e o fato de que o neoliberalismo é incapaz de resolver os problemas econômicos fazem com que surja um discurso moralista e assim a extrema-direita foi se alavancando. Na Europa acontece a mesma coisa. A crise econômica europeia hoje, pós-covid, e antes disso, com a crise de 2008, gerou o discurso ultranacionalista que culpabiliza os imigrantes pela falta de emprego, ou pela criminalidade, coisa que o Trump também faz nos Estados Unidos.

Então, sempre que há um processo de transição drástico, em que a maioria da população não é beneficiada, há um território fértil para a ascensão de extremismos nacionalistas, como aconteceu na Alemanha e na Itália, após a Primeira Guerra Mundial, o que explica, em boa medida, a ascensão de Mussolini e Hitler. Apresentam-se valores nacionalistas, discursos xenofóbicos e homofóbicos contra outras populações minoritárias e isso enaltece, em boa parte do segmento da opinião pública, a imagem de um líder forte. Isso acontece no Brasil de Bolsonaro e nos Estados Unidos de Trump. Esses são solos férteis onde o fascismo brota. 

IHU – Em contrapartida, alguns intelectuais têm chamado atenção para o fato de que o progressismo se articula em torno de discutir a extrema-direita em vez de colocar suas pautas, desejos e utopias na mesa. No caso do Brasil, acontece esse fenômeno? Como ultrapassar essa crise num contexto em que a extrema-direita mobiliza uma parte significativa da população?

Paulo Niccoli Ramirez – Não se trata propriamente de uma crise das ideias progressistas, mas das formas de comunicação do progressismo. Dentro de uma mentalidade tradicional, as culturas LGBTQIAP+, antirracista e ambientalista afetam o imaginário dos conservadores diante de um mundo que está em transição, seja pelo fluxo de informação e de democratização das vozes antes emudecidas e marginalizadas, seja em função do aumento do empobrecimento de boa parte da população mundial. É um mundo em transição em que as pautas progressistas afetam a moralidade dos conservadores.

Ao mesmo tempo, a crítica que se faz à forma de expressão das pautas progressistas é que elas tornaram problemas segmentados – individualizados – em pautas públicas. Um exemplo é a linguagem neutra que afeta não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos, parte do imaginário colonizado dos conservadores. Dizem que estão mudando as regras de português, mas os mesmos que fazem essa crítica são aqueles que adoram usar expressões gerenciais em inglês. Em nenhum momento questionam os termos em inglês que usam para falar do mundo dos negócios. Isso mostra um teor colonizado dentro do vocabulário desses indivíduos.

Voltando ao assunto, as formas de comunicação dos progressistas são vistas pela extrema-direita como agressivas. Então, existe essa crise, que não é dos progressistas, mas é do ponto de vista conservador, no sentido de dizer que estão tentando mudar usos, costumes e tradições em nome de ideias que são inovadoras, as quais atingem a moralidade dos conservadores. Claro que é sempre importante abrir espaços para diálogos e mudanças políticas em relação às populações que foram marginalizadas na sociedade. Mas os conservadores também veem isso com maus olhos porque vivemos um tempo de fragmentação política que é típica da pós-modernidade.

Se até o fim da Guerra Fria era comum vermos pessoas dizendo que eram de direita ou de esquerda, e quando se era de esquerda, se carregava todas as bandeiras da esquerda, hoje, o que acontece é que as redes sociais fragmentaram as pautas e as bandeiras são mais segmentadas e individualizadas. Isso faz com que a contrapartida da extrema-direita seja a percepção de que existe o nós e os outros e nesse nós estão os corretos: a unidade do país, o resgate de valores religiosos, políticos, a defesa dos nacionalismos. O conflito se dá por esse caminho.

Na medida em que as pautas se fragmentam nos setores progressistas, existem vários fronts de batalha comunicacional contra o conservadorismo, como as pautas ambientalistas, antirracistas, LGBTQIAP+, de reforma agrária, dos sem-teto, entre outras. Os conservadores se sentem atacados por todos os lados, buscando a glorificação por meio de um Estado forte e de uma figura política forte que seja capaz de unir toda a nação e eliminar o que é, na visão deles, os gargalos de desvios morais e comportamentais. 

IHU – A adesão a pautas fragmentadas e individuais não faz parte, em alguma medida, da própria crise do progressismo? A pauta do movimento pela moradia e uso social da propriedade, por exemplo, não é compartilhada pela sociedade brasileira de modo geral, apesar de todos os problemas relativos à moradia no país e à justiça social. Isso é assim por causa de um problema comunicacional do progressismo, que não sabe comunicar suas pautas, ou por que o progressismo não propõe e repropõe, de fato, essas pautas no país, com raras exceções de alguns movimentos?

Paulo Niccoli Ramirez – Não podemos esquecer que o Brasil é um país regido por uma herança escravocrata de defesa de proprietários de terra, assim como também do patriarcado. As lutas do movimento negro e feminista vão contra essa tradição, a qual, ideologicamente, alimenta setores da sociedade que não são abastados, como grupos de evangélicos mais radicalizados politicamente e o senso comum geral da sociedade. Então, a crise não está nas causas dos movimentos progressistas. O progressismo estaria em crise se não tivesse pauta nenhuma ou se os movimentos estivessem calados ou sem vontade de mobilização.

A crise existe do ponto de vista conservador porque os movimentos sociais continuam fazendo o que devem fazer sempre: ir às ruas, fazer manifestações. Hoje não há só manifestações nas ruas, mas nas redes sociais. A maneira como a extrema-direita entende a comunicação progressista é vista como uma crise da sociedade. Este é o ponto. Mas isso não é uma coisa que acontece só no Brasil. Em 2019, vimos isso no Chile, com as manifestações que solicitavam uma nova Constituição e a deposição do governo conservador de Piñera. Movimentos feministas, ambientalistas, LGBTQIAP+ e indígenas mapuches estavam nas ruas. Havia também indivíduos se manifestando contra a falta de políticas sociais. O Chile é o país que tem mais índices de idosos que se suicidam porque a previdência foi privatizada. Então, víamos vários segmentos fragmentados juntos se manifestando. Portanto, volto a dizer: o progressismo não tem uma crise nas suas reivindicatórias, nas suas lutas políticas, mas no acesso que os progressistas têm ao outro lado, ou seja, na forma como o progressismo se comunica com a sociedade como um todo.

Na eleição de 2018, quando Haddad era candidato, a grande acusação que os bolsonaristas fizeram contra a candidatura dele foi dizer que, caso ele fosse eleito, o fictício kit gay seria imposto nas escolas. Para uma pessoa simples, que se informa por bolhas nas redes sociais, a informação verdadeira parece ser essa e isso acaba chocando a moralidade da população conservadora. É por isso que existe o interesse de Trump para que não haja controle nas redes sociais contra fake news ou discurso de ódio, exatamente porque, além de isso ser lucrativo, alimenta o sistema de eleição e ascensão ao poder de figuras autoritárias ligadas à extrema-direita e aos conservadores. É isso que está em jogo.

IHU – Como interpreta a 33ª edição da Marcha para Jesus em São Paulo à luz da extrema-direita? O uso da bandeira de Israel, por exemplo, mais a presença de lideranças políticas como Tarcísio, tem qual significado simbólico? O que esta marcha está dizendo para o país em termos políticos, que ainda não está sendo bem compreendido?

Paulo Niccoli Ramirez – Do ponto de vista religioso e apenas religioso, a marcha é bem-vinda. Vivemos em um país com liberdade religiosa e assim como temos procissões católicas, é importante que os evangélicos também manifestam suas crenças e fé. A religião é uma manifestação cultural e, enquanto tal, deve ser respeitada.

Agora, o que é estranho, de fato, é o excessivo uso dos segmentos evangélicos para promoção de figuras políticas. Aliás, é algo que a Igreja Católica deixou de fazer há um bom tempo – João Paulo II proibiu essa combinação mais intensa entre política e religião, apesar de que um ou outro religioso acabe fazendo isso dentro do catolicismo. Mas os evangélicos não têm essa regra. O uso da Marcha para Jesus, que deveria ter uma finalidade religiosa, acaba tendo outra finalidade, que é política. Nós vemos manifestantes com bandeiras de Israel, entrando em um cenário geopolítico em que ocorre um genocídio com a população de Gaza. Ainda que pese toda a barbárie do Hamas naquele evento de outubro de dois anos atrás, a matança indiscriminada é injustificada. Isso mostra que muitos pastores evangélicos – não todos – acabam interferindo, do ponto de vista ideológico, na adesão de seus fiéis a uma defesa de uma visão colonialista e imperialista, que faz com que as pessoas tenham um apreço pela defesa norte-americana a Israel. 

Outro aspecto da Marcha, que envolve a política brasileira, é a defesa que alguns pastores fazem da eleição de muitos deputados, governadores e presidentes – como foi o caso do Bolsonaro. O que deveria ser uma manifestação religiosa, cultural e pacífica, acaba sendo usada como instrumento de manipulação política no sentido da ideologia. A ideologia não como uma ideia política, mas no sentido mais crítico, como muitos autores vão afirmar, principalmente Gramsci e Marx, ou seja, a ideologia como mascaramento da realidade.

Infelizmente existe esse processo no Brasil. Diria que há, inclusive, um abuso da fé. Utiliza-se da religião para gerar convencimento político. Existe uma proporção de margem de manobra para que os políticos, apoiados pelos pastores, consigam angariar uma quantidade de votos suficiente para eleger membros no legislativo, os quais têm um grau de influência nas decisões de candidaturas dos líderes do executivo. É isso que está acontecendo no Brasil.

Malafaia, nos áudios que vazaram semana passada, mostrava exatamente isso. O ideal é que escutemos de um líder religioso palavras de pacificação, independentemente se ele está no âmbito público ou privado. Malafaia estava no âmbito privado, falando palavras de baixo calão, xingando políticos e os filhos do próprio Bolsonaro. Isso mostra que existe uma relação promíscua não de todo o segmento evangélico, mas de uma influência de certos segmentos mais radicalizados. Isso não acontece só no Brasil; acontece na Bolívia, no Chile, na Argentina. É um fenômeno que tem abarcado boa parte da América Latina: a invasão evangélica na política.

É saudável para a democracia que tenhamos uma diversidade participativa. É saudável que tenhamos evangélicos participando, assim como empresários, sindicalistas, membros do movimento sem-terra, sem-teto, LGBTQIAP+, negro, entre outros. Entretanto, vale dizer que, diferentemente de outros segmentos sociais, os evangélicos e a extrema-direita conseguiram algo que ninguém conseguiu nas redes sociais: promover uma campanha eleitoral permanente, mesmo fora do período eleitoral. 

As big techs e as bolhas criadas dentro das redes sociais fazem com que o neopopulismo de hoje seja totalmente diferente daquele em que se usavam os meios de comunicação. Não era todos os dias que se ouvia Getúlio Vargas na rádio. Era algo muito pontual da vida dos cidadãos. Hoje, com as redes sociais, a história é bem diferente. Os pastores estão em todos os canais na madrugada, em várias rádios, em todas as redes sociais. Essa ideologia, que é perpetuada nas redes sociais, aparece todos os dias no MBL, no pastor falando isso ou aquilo sobre política. Claro que se fossem mensagens somente de fé, isso seria bem-vindo. É algo pessoal e deve ser respeitado. No entanto, o que acontece hoje é que os pastores extrapolaram as fronteiras da fé e estão agindo em locais muito sensíveis, usando a religião. Estão se aproveitando da religião para promover a ascensão de políticos autoritários. 

IHU – Nas redes sociais há uma campanha para Bolsonaro à presidência desde o fim do seu mandato, em dezembro de 2022.

Paulo Niccoli Ramirez – E é algo que precisa de monetização, de investimento, coisa que os movimentos progressistas não têm. Obviamente que a influência sobre a sociedade será maior desses grupos de extrema-direita e evangélicos porque eles têm de onde pegar o dinheiro. Sem falar que o sistema eleitoral de nenhum país pega isso porque os recursos vêm através de doações religiosas, com o objetivo de expandir a fé. Até aí não teria nenhum problema. O problema é quando isso entra junto com a política, favorecendo políticos que têm visões antidemocráticas, como estamos vendo não só no Brasil, mas na América Latina e nos Estados Unidos.

IHU – Como o julgamento de Bolsonaro no STF tende a impactar as articulações políticas da extrema-direita? Que reações vislumbra do ponto de vista político, mas também social, por parte dos apoiadores do ex-presidente?

Paulo Niccoli Ramirez – Não podemos esquecer que dentro do STF existem dois juízes escolhidos por Bolsonaro. Claro que são minoria, mas eles têm capacidade de pedir vistas do processo. O que significa dizer que o julgamento final poderá se estender até o fim do próximo ano, o que é muito perigoso para o processo eleitoral, já que, coincidindo com as eleições, isso tende a gerar um sentimento de frustração e de rebeldia dos segmentos bolsonaristas.

Não que Bolsonaro preso ou não vá incentivar ações armadas, mas pode ser que ocorram ações de cunho terrorista nos processos eleitorais, nas manifestações ou nas contramanifestações de esquerda nas redes sociais ou nas ruas. O ideal é que o processo fosse consumado este ano para a poeira baixar. Mas tenho a impressão de que, por haver dois ministros bolsonaristas – como o próprio Bolsonaro dizia, sendo um deles radicalmente evangélico –, isso pode ser usado como instrumento de artimanha política para prorrogar ao máximo possível a decisão.

Se o julgamento for para o próximo ano, diria que existem, sim, condições muito negativas de prejuízo ao processo eleitoral, com uma radicalização, seja dos candidatos, seja dos bolsonaristas, prejudicando o funcionamento das eleições, o direito de votar, o direito de muitos brasileiros se manifestarem contra Bolsonaro ou fazerem qualquer tipo de manifestação.

É um momento muito delicado da democracia brasileira. Os bolsonaristas não se sentirão apenas incentivados a tomarem medidas mais radicais em função de uma eventual prisão de Bolsonaro, mas se sentem acolhidos pelo papel que Trump tem exercido no Brasil, apoiando retaliações não só à economia brasileira, mas aos ministros do STF, especialmente a Alexandre de Moraes. Esse tipo de atitude encoraja atitudes mais radicalizadas, inclusive por parte dos cidadãos comuns, que hoje estão armados, se sentem prejudicados pelas decisões do STF ou mesmo do governo Lula. É um cenário que está em vista de ocorrer. Quanto mais esse processo se prorrogar, mais impacto ele vai ter sobre as eleições do próximo ano.

IHU – Com a fragmentação da extrema-direita e com a retomada do crescimento da popularidade do presidente Lula, o que se pode esperar para as eleições de 2026? Quais serão as consequências de mais uma eleição polarizada no país?

Paulo Niccoli Ramirez – Certamente a eleição será polarizada. Outra certeza que temos é que a terceira via não vai vingar como não tem vingado nas últimas eleições por causa de um cenário polarizado entre o PT e a extrema-direita.

Bolsonaro não deixou nenhum herdeiro político e não se sabe até que ponto terá a capacidade de transferir votos para um suposto sucessor diante das brigas internas na própria direita. Malafaia xinga um e outro, Carlos Bolsonaro xinga os pretensos substitutos de Bolsonaro. Há uma confusão muito grande e uma espécie de orfandade na direita brasileira.

Precisamos nos basear nos dados da última pesquisa. Lula, até meados de maio, estava com um processo de queda de popularidade e intenções de votos para o próximo ano. Quando veio a questão do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o governo, talvez pela primeira vez, conseguiu se comunicar razoavelmente bem com a população, mostrando que existe uma elite dentro do Congresso que não tem o menor interesse em aumentar os impostos contra os mais ricos ou aumentar taxas adicionais aos negócios que afetam, através do IOF, a classe média alta para cima. Em seguida, veio o problema do tarifaço. Isso começou a aumentar a popularidade de Lula, que começou a mostrar que há uma tentativa de interferência contra a soberania nacional do ponto de vista econômico e jurídico.

A intenção dos bolsonaristas é muito mais salvar Bolsonaro da prisão do que promover um candidato à presidência para o próximo ano. Tanto que não há nenhum nome de bom senso na direita, enquanto Lula é um nome de consenso entre setores progressistas e de centro-esquerda.

Metaforicamente, tanto a questão do IOF quanto a do tarifaço foram um presente que a direita brasileira deu ao Lula. Mesmo aqueles que eram mais próximos de Bolsonaro, como o agronegócio e empreendedores individuais, começaram a se sentir afetados pelas tarifas elevadas. Isso foi tirando o apoio ao bolsonarismo. Claro que o bolsonarismo ainda é muito grande e deverá continuar assim na próxima eleição. Mas tem um cenário por trás disso que é o de afetar o pragmatismo econômico. Por mais que um proprietário do agronegócio goste de Bolsonaro, ele vai olhar o seu lucro. Por mais que um trabalhador comum goste de Bolsonaro, ele está preocupado se poderá pagar as contas ou não.

Então, o tarifaço afetou, de fato, a opinião pública porque o que tem se mostrado é que vale tudo para salvar Bolsonaro, inclusive prejudicar a economia brasileira e a vida econômica de muitos cidadãos comuns. Isso melhora a condição do Lula porque ele passou a se apresentar não como o candidato da esquerda, mas o político que tenta, de alguma forma, resguardar os interesses nacionais. O capital político de Bolsonaro na última eleição, que foi cerca de 59 milhões de votos, é muito grande, mas, ao mesmo tempo, aspirantes a ocupar o lugar dele começam a disputar espaços entre si para ver quem chegará ao segundo turno.

Tem vários debates em torno disso. Um deles é que deverá haver várias candidaturas de bolsonaristas, passando por Ratinho, Zema, Tarcísio, Caiado e Eduardo Leite, que não é bem um bolsonarista. Existe esse vácuo de decisão sobre quem será o candidato. Isso traz um prejuízo porque falta estabelecer uma estrela guia na opinião pública da direita para saber quem será o candidato. Caso se mantenha esse cenário de várias candidaturas, isso vai gerar uma disputa interna entre os candidatos da direita porque está mais do que óbvio que Lula vai para o segundo turno. Quanto mais candidaturas de direita e menos um nome forte foi apresentado desde agora, isso vai fazer com que, no primeiro turno do próximo ano, haja não só uma crítica ao Lula, mas ataques aos candidatos da direita, ou seja, tiro amigo. Isso pode favorecer ainda mais o Lula, que já angariou algum capital político com o tarifaço e pode ser beneficiado no ano que vem com essas disputas entre os candidatos de direita, para ver quem disputará o segundo turno. O próprio Michel Temer, com sua experiência política, disse que o ideal é anunciar uma candidatura unificada dos candidatos de direita, com um nome forte, caso contrário, Lula deverá vencer mais uma eleição.

Lula também pode sair prejudicado com o tarifaço porque, por enquanto, ele consegue ganhar popularidade em termos de defesa da soberania e dos interesses econômicos brasileiros. Mas se a situação piorar, os tarifaços e as retaliações aumentarem, e nenhuma solução factível for apresentada à sociedade, isso pode gerar um desgaste da sua imagem. Ou seja, não resolveu nada. Tem muita coisa em aberto, mas hoje, Lula é o favorito. As pesquisas demonstram isso.

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