06 Agosto 2025
"Tarifaço pode ser só o começo. País está no plano de Washington para desestabilizar regiões estratégicas. É crucial que Lula entenda o desafio histórico e revogue o ajuste fiscal suicida, diante da necessária construção de um projeto nacional e de mobilização popular", escreve Pedro Alcântara, doutor em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em artigo publicado por Outras Palavras, 05-08-2025.
Antes de tudo, começar pelo óbvio. A primeira obviedade é a seguinte: os EUA, por meio de Donald Trump, declararam guerra ao Brasil. Sim, não se trata somente de um aumento tópico de tarifas comerciais. O aumento exorbitante de tarifas, que em si já é um grave e injustificado ataque contra nossa economia, é apenas uma sinalização das sucessivas ofensivas que estão por vir, todas visando nos rebaixar frente aos interesses dos EUA.
Os estadunidenses já dizem com todas as letras que querem ter acesso livre a terras raras e ao minério do Brasil, para contrapor a superioridade da China na acumulação dessas riquezas estratégicas. Falam abertamente em favorecer suas big techs em nosso país, atacando instrumentos bancários nacionais e nossa legislação. Aplicam sanções às autoridades do Brasil e anunciam publicamente o desejo de intervir em processos judiciais e de proteger a oposição bolsonarista nas nossas eleições internas de 2026. Querem nos obrigar a colaborar com eles nas disputas comerciais violentíssimas que possuem com a China. As tarifas são uma extorsão para facilitar a rendição. Trata-se de uma guerra neocolonial aberta e escandalosa.
Nossa elite econômica, amarrada até o pescoço com os interesses estadunidenses — e sob fortíssima dominação ideológica e cultural dos EUA —, quer que esse cenário seja tratado como um desentendimento pontual, a ser resolvido por negociações e com o mínimo de perdas comerciais. Passada a tempestade, voltaria o cenário de maior calmaria, ainda que tivéssemos que ceder algumas de nossas riquezas frente à extorsão.
E aqui chegamos à segunda obviedade: uma declaração de guerra se responde com instrumentos de guerra, mesmo que a elite econômica não queira. Não podemos cair no papo do “desentendimento temporário a ser negociado”, pois não é disso que se trata. A ficha precisa cair: o Brasil entrou na rota do novo plano americano de desestabilização de regiões estratégicas influenciadas pela China. Após o leste europeu, o Oriente Médio e outros, chegou a vez da América do Sul, leia-se, do Brasil. Será uma luta de longa duração que exigirá mudanças estruturais na economia brasileira, ou seremos levados à rendição e ao aprofundamento da dependência.
O compromisso fiscal firmado com as elites colonizadas a partir do arcabouço, no entanto, limita dramaticamente nossa possibilidade de resposta no fundamental plano da economia. Com ele, somos obrigados a seguir enfraquecendo a capacidade de resposta do nosso próprio Estado frente a um mundo em erupção, que caminha para um futuro perigoso e imprevisível. Contrariamente à receita utilizada pelos países que mais crescem hoje, a elite brasileira nos impõe uma cartilha econômica ideológica e decadente, nos obrigando a caminhar pelas novas rotas do mundo na companhia de fantasmas. A austeridade fiscal é suicida, pois impede uma ação estratégica do nosso Estado e nos transforma numa presa fácil.
Como um país que deseja sobreviver com soberania e alguma relevância no turbulento século XXI corta investimento público e gasto em tecnologia e infraestrutura para atingir uma irracional meta primária de déficit zero, enquanto países de ponta bancam endividamentos sustentáveis para impulsionar estrategicamente suas economias e produções? Enquanto a Ásia e países da África, potenciais competidores do Brasil, tentam acumular investimentos nós, com nossa imensa desigualdade social, estamos discutindo, pasmem, cortes nas Universidades públicas — maiores centros de pesquisa e inovação do país — para atingir uma inútil meta de gasto primário.
Há método nesse modelo. Ele assegura que a elite alimente a dependência externa para garantir seu lugar no mercado internacional, em detrimento do sofrido povo brasileiro. Interessa-lhe somente um jogo institucional interno bem organizado e o lucro com capital fictício e commodities. Por isso, combinam a defesa da soberania de nossas instituições, como o STF, e da punição dos que tentam desorganizá-las estruturalmente — os bolsonaristas — com a preservação da estrutura fiscal enquanto instrumento de dependência e de dominação interna. É a soberania abstrata proposta por esse modelo que queremos? Estão postas as condições objetivas para enfrentá-la.
Dito isso, o que pode ser feito? Lula e parte da sociedade organizada devem propor um novo pacto histórico em torno de um projeto de país verdadeiramente soberano, unindo as consignas “defesa da democracia” e “defesa da soberania” num pacto com as camadas médias democratas, setores da economia em contradição com os planos de Trump e as classes populares. No primeiro momento, a materialização disso deve ser a superação da atual política fiscal do arcabouço — ao mesmo tempo, em que o governo consolide um plano de contingência para a proteção dos setores econômicos que sofrerão impacto imediato das tarifas, retalie as big techs e as patentes estadunidenses e reafirme a soberania das instituições da nossa República.
Para fazer isso, precisamos assumir a excepcionalidade do momento, instituindo um regime fiscal e financeiro extraordinário para situações de calamidade e guerra, abrindo espaço para elevação dos gastos do Estado por um período limitado. Isso possibilitaria uma transição menos traumática, pois não seria o fim do arcabouço ainda, mas seu pontual congelamento. A inevitável resposta positiva do aumento da ação econômica do Estado combinado a um discurso que tem aderência nas massas fortaleceria o governo e prepararia bases para uma mudança estrutural mais sólida, após as eleições de 2026. O governo Bolsonaro usou a emenda 106 da Constituição para declarar calamidade e “furar o teto” durante a pandemia. É, portanto, possível.
Outra forma seria propor, via projeto de lei, alterações substanciais no arcabouço, elevando consideravelmente o teto para investimentos. Ambas as formas precisariam de aprovação do Congresso. Não é fácil, o governo não tem maioria nas casas. Porém, os ataques de Trump viraram a opinião pública a favor do país e promoveram uma rara coesão social, que ocorre somente em momentos históricos agudos.
Agarrar essa oportunidade com todas as forças é ser também pragmático, visto que o poderoso adversário externo buscará explorar as fragilidades do governo, entre elas sua falta de maioria no Congresso. É preciso ter a sociedade ao nosso lado e recuperar a força da instituição “Presidência da República”. Com o arcabouço, isso é impossível, pois as condições materiais para a boa relação entre presidente e povo estão prejudicadas. Para sua sobrevivência, o governo não pode permanecer isolado, nem viver somente de retórica até outubro de 2026, sobretudo porque a pressão e os ataques políticos aumentarão.
O ano de 2025 já vinha provando por A mais B que a estratégia de Lula 3 estava errada. O governo imaginava poder agradar a Faria Lima com um arcabouço que enfraquece o Estado e, ao mesmo tempo, fazer reformas estruturais na tributação exatamente em cima desses mesmos ricos para compensar na arrecadação. Um plano engenhoso, mas sem equilíbrio e extremamente arriscado. Basta o Congresso recusar as taxações e o STF corroborar que o caos se estabelece e a tesoura na vida do povo brasileiro corre solta. Esse plano fracassou. O que salvou a possibilidade de Lula mudar de rumo a tempo foram a arrogância do Congresso e a investida de Trump, seguida da boa resposta de Lula no plano político.
Os grandes líderes são feitos de sensibilidade aguçada para as oportunidades históricas. Lula tem uma oportunidade gigantesca à sua frente. Getúlio, em quem ele parece querer se espelhar, com todas as suas contradições, aproveitou a que lhe surgiu e projetou 50 anos de desenvolvimento do Brasil, com a definição do papel estratégico do Estado e a edificação de instituições que são até hoje essenciais ao nosso desenvolvimento. E os governos petistas, o que legarão ao país? Políticas públicas de assistência social que não sobrevivem há cinco anos da direita no poder? Não condiz com o tamanho de Lula, muito menos com a grandeza do Brasil.
Lula tem envergadura política e histórica para liderar o país na direção de um futuro verdadeiramente soberano. Demonstrou coragem ao enfrentar a elite nacional americanófoba e fundar os Brics, fortalecer o Mercosul e ao nos aproximar de África e Ásia. Sem esses movimentos estaríamos hoje muito mais vulneráveis. Ele teve coragem ao, em 2008, frente à crise mundial, convocar o povo brasileiro à implementação de um pacote econômico anticíclico. Pode agora, tal qual Getúlio, lançar bases para uma nova etapa de desenvolvimento do país, dessa vez mais democrática e ambientalmente responsável.
Nada de ações tópicas e rendição ao rentismo. Nossa riqueza natural, cultural, nosso povo brasileiro e nossa capacidade econômica não suportam mais ideias pequenas para resolver os problemas do Brasil. Que Lula perceba a encruzilhada histórica que cruzou decisivamente seu caminho. Contará, internamente, com o apoio do povo brasileiro, que demonstra estar disposto a defender nossa soberania. Terá, externamente, alternativas concretas para escapar da extrema dependência de um império — os EUA — que virou o epicentro do neofascismo mundial, gera caos e insegurança, pratica terrorismo econômico e sustenta o maior genocídio do século. Representa, hoje, uma fração sombria do mundo.
O primeiro sintoma de soberania é a capacidade de não se render. Que construamos uma soberania com o povo brasileiro e um futuro à altura do Brasil.