14 Abril 2023
A China captura os mercados da América Latina, combinando a audácia econômica com a astúcia geopolítica.
O artigo é de Claudio Katz, professor de economia na Universidad Buenos Aires, autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular), publicado por A Terra é Redonda, 12-04-2023. A tradução é de Fernando Lima das Neves.
A China não improvisou seu desembarque generalizado na América Latina. Concebeu um plano estratégico de expansão codificado em dois livros brancos (2008 e 2016). Primeiro, priorizou a assinatura de Tratados de Livre-comércio com os países ligados ao seu próprio oceano. Posteriormente, incentivou a articulação destes acordos no conglomerado da zona da Aliança do Pacífico (AP).
Este avanço comercial foi seguido por uma onda de financiamento, que na última década atingiu 130 bilhões de dólares em empréstimos bancários e 72 bilhões em aquisições de empresas. Esta consolidação do crédito foi sustentada por uma sequência de investimentos diretos, centrados em obras de infraestrutura para melhorar a competitividade de seus fornecimentos.
Esta enorme rede de portos, estradas e corredores bioceânicos barateia a aquisição de matérias-primas e a alocação dos excedentes industriais. A América Latina já é o segundo maior destino desse tipo de obras, que se expandem num ritmo galopante. Com o apoio chinês, estão sendo construídas atualmente novas pontes no Panamá e na Guiana, metrô na Colômbia, dragagens no Brasil, Argentina e Uruguai, aeroportos no Equador, ferrovias e hidrovias no Peru e estradas no Chile (Fuenzalida, 2022).
A aquisição de empresas concentra-se nos segmentos estratégicos do gás, petróleo, mineração e metais. A China apetece o cobre do Peru, o lítio da Bolívia e o petróleo da Venezuela. As empresas estatais da nova potência desempenham um papel protagonista nestas captações. Elas antecipam ou determinam a presença posterior das empresas privadas. O setor público chinês alinha todas as sequências a serem seguidas em cada país, de acordo com um plano elaborado por Pequim.
A entidade financeira desse comando (Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura) fornece os fundos necessários para aumentar as taxas de investimento direto para níveis recordes na região. Estas médias anuais saltaram de 1,357 bilhão de dólares (2001-2009) para 10,817 bilhões de dólares (2010-2016) e transformaram a América Latina no segundo maior destino de alocações desse tipo.
A China começa a coroar sua penetração econômica integral com o fornecimento de tecnologia. Já disputa a primazia de seus equipamentos 5G, através de três empresas emblemáticas (Huawei, Alibaba e Tencent). Negocia contra o relógio em cada país a instalação desses equipamentos, em choque com seus concorrentes do Ocidente. Obteve acordos favoráveis no México, República Dominicana, Panamá e Equador, enquanto tateia a predisposição do Brasil e da Argentina (Lo Brutto; Crivelli, 2019).
A China captura os mercados da América Latina, combinando a audácia econômica com a astúcia geopolítica. Não confronta abertamente seu rival estadunidense, mas, para fechar acordos, exige que todos os seus clientes interrompam as relações diplomáticas com Taiwan.
Este reconhecimento do princípio de “uma só China” é a condição para qualquer acordo comercial ou financeiro com a nova potência. Por meio desta via indireta, Pequim consolida seu peso global e corrói a tradicional submissão dos governos latino-americanos aos ditames de Washington.
É impressionante a velocidade com que a China conseguiu impor esta mudança. A influência que Taiwan tinha conseguido manter até 2007 na América Central e no Caribe foi erodida pela diplomacia de Pequim, que voltou a seu favor o Panamá, a República Dominicana e El Salvador. Esta sequência demoliu as representações de Taipé, que apenas manteve escritórios em países pequenos ou secundários da região, após uma sequência surpreendente de rupturas (Regueiro, 2021).
Este resultado é muito impactante numa região tão sensível aos interesses dos Estados Unidos. O gigante do Norte sempre privilegiou a proximidade desta área e sua importância para o comércio mundial. A China penetrou no coração da influência ianque, erradicando as delegações taiwanesas e tornando-se o segundo maior parceiro da região.
Pequim estabeleceu sua influência regional depois de afirmar sua presença no Panamá, quebrando o domínio esmagador de Washington sobre o istmo. Um governo pró-ianque e declaradamente neoliberal assegurou negócios com a China, depois da pressão dissuasiva exercida pelo gigante asiático com sua ameaça de construir um canal alternativo na Nicarágua.
O abandono desse projeto foi seguido pela ruptura com Taiwan, a conversão do Panamá no país centro-americano de maior investimento chinês e o local escolhido para uma linha de trem de alta velocidade (Quian; Vaca Narvaja, 2021). Estes dados representam um duro golpe para o domínio que os Estados Unidos têm exercido.
Pequim estendeu esta mesma estratégia à América do Sul e negocia com grande tenacidade a ruptura do Paraguai, que é um dos 15 países do mundo que ainda reconhece Taiwan. Também neste caso atua com grande paciência, ocupando gradualmente cada vez mais espaço sem um confronto aberto com Washington. As ofertas comerciais são o compromisso tentador que Pequim oferece para as elites pró-EUA. Exige que se dê prioridade aos ganhos econômicos, em detrimento das preferências ideológicas.
Durante a pandemia, a China acrescentou outra carta ao coquetel de atrações que disponibiliza aos governos latino-americanos para obter sua preferência. No cenário dramático que prevaleceu durante a infecção, desenvolveu uma inteligente diplomacia das máscaras com grandes ofertas de vacinas. Forneceu o material sanitário que a administração Trump recusava aos seus tradicionais protegidos no hemisfério.
Pequim forneceu quase 400 milhões de doses de vacinas e quase 40 milhões de peças sanitárias, quando esses produtos eram escassos e Washington respondia com indiferença aos pedidos de seus vizinhos do sul. O contraste entre a boa vontade de Xi Jin Ping e o egoísmo brutal de Trump acrescentou outro impulso à aproximação entre a América Latina e a China.
A China concentra suas baterias na esfera econômica, evitando confrontos na esfera geopolítica ou militar. Escolheu o campo de batalha mais favorável para seu perfil atual. Circum-navega o mundo da guerra e aposta todas as suas cartas no avanço da Rota da Seda.
Tal direção coloca a nova potência num terreno muito distante da norma imperial, o que pressupõe o uso de forças extraeconômicas para obter vantagens na luta por maiores porções do mercado mundial.
Este distanciamento do imperialismo tradicional distingue a China do rumo adotado no passado por outras potências. Não repete o caminho do Japão ou da Alemanha, que no século passado optaram pela confrontação militar.
A China protege suas fronteiras, moderniza suas tropas e aumenta seu orçamento militar no mesmo ritmo de seu desenvolvimento produtivo. Mas não emprega esta força em todo o mundo no compasso da vertiginosa internacionalização de sua economia. Separa estritamente seus negócios do suporte militar, e seus investimentos não estão acompanhados de bases militares, tropas ou efetivos que garantam o reembolso de seus investimentos.
Pequim arrisca-se para conformar uma nova rede de negócios mais autônoma em relação à velha proteção imperialista. Espera que a própria globalização da economia contraponha as tendências ao deslocamento e ao consequente desenlace de confronto. A viabilidade desse horizonte no médio prazo é muito duvidosa, mas, neste interregno, criou um cenário inédito. Uma potência captura enormes parcelas da economia mundial, sem a correspondente força militar. O imperialismo norte-americano não encontrou até agora resposta a tal desafio.
A China responde com grande contundência a qualquer ameaça em suas fronteiras terrestres e estende sua presença ao cordão marítimo do país. Lembra-nos com grandes demonstrações de força que Taiwan faz parte de seu território. Mas esta firmeza militar não se estende a outras partes do planeta, onde a nova potência se tornou um investidor dominante ou parceiro principal. Nessas regiões da Ásia, África e América Latina, continua privilegiando os acordos de livre-comércio, a aquisição de empresas ou a simples captação de recursos naturais.
Após várias décadas de intensa expansão, só instalou uma base militar, num ponto estratégico da África (Djibuti), e não esteve envolvida em qualquer conflito armado. Enfrentou tensões armadas com a Índia nos anos 1960 e entrou em conflito com o Vietnã na crise do Camboja. Mas estes fatos do passado não reaparecem na estratégia de defesa atual.
O comportamento da China na América Latina oferece outro exemplo categórico desta direção. Pequim sabe que Washington é sensível a qualquer presença estrangeira num território que considera seu. Por este motivo, é particularmente cautelosa nesta região. Evita interferir na esfera política e limita-se a ganhar posições através de negócios frutíferos. Sua única exigência extraeconômica envolve seus próprios interesses na reafirmação do princípio de “uma só China”, por meio de rupturas com Taiwan.
A singularidade desta política salta à vista quando comparada com a de Moscou. Embora os interesses econômicos da Rússia na região sejam infinitamente menores do que os da China, Putin exibiu em várias ocasiões a presença de suas tropas em exercícios militares conjuntos com a Venezuela. Com tais ações, emprega uma lógica geopolítica de reciprocidade para dissuadir agressões de Washington em suas próprias fronteiras eurasiáticas.
Esse tipo de presença militar simbólica no hemisfério de um inimigo é totalmente inconcebível para a China. Ao contrário da Rússia, restringe sua ação militar ao seu próprio campo e afasta qualquer ação fora dessa órbita. Este comportamento exclui, por enquanto, a nova potência oriental do círculo imperial.
Os porta-vozes da Casa Branca costumam denunciar os propósitos imperialistas da presença da China na América Latina. Alertam contra o expansionismo de Pequim e destacam sua intenção de restabelecer sua dominação milenar a partir de um novo alicerce ao sul do Rio Grande. Salientam que a penetração comercial constitui a antecipação de um futuro estabelecimento político e militar (Povse, 2022).
Tais advertências nunca incluem qualquer tipo de prova. Os agentes do imperialismo norte-americano observam seu rival como um colega que deveria seguir sua própria conduta. Mas esta suposição não tem, até agora, qualquer confirmação.
Um abismo gigantesco separa a expansão chinesa do padrão imperial estadunidense. Pequim não conta com bases militares na Colômbia, nem mantém uma frota no Caribe. Tampouco utiliza suas embaixadas para organizar conspirações. Não financiou os complôs de Guaidó, o golpe de estado de Añez, a queda de Zelaya, a remoção de Aristide ou a destituição de Lugo.
A China também não repete as incursões da CIA, as operações da DEA ou as capturas do FBI. Faz negócios com todos os governos, sem interferir na política interna. O contraste com o intervencionismo descarado de Washington é gritante.
Estes contrastes elementares são omitidos na apresentação da China como uma potência que retoma suas antigas ambições imperiais. Os denunciantes compensam sua falta de dados com avisos de acontecimentos futuros. Reconhecem que seu rival não tem bases militares na região, mas anunciam sua breve instalação. Aceitam que a economia é o principal instrumento de seu concorrente, mas alertam contra os efeitos coloniais desta modalidade. Confirmam o respeito da China pela soberania latino-americana, mas anunciam a iminente violação deste princípio.
Alguns expoentes dessas inconsistências afirmam que a dominação chinesa irromperá através da cultura, idioma ou costumes (Urbano, 2021). Mas não explicam como este deslocamento abrupto do predomínio ocidental na vida social latino-americana se produziria. Também escondem o pesadelo oposto de um século de preconceitos raciais contra as minorias asiáticas na região.
A campanha contra o “neocolonialismo” chinês que difunde uma publicação da força aérea estadunidense é particularmente ridícula (Urbano, 2021). Omite sua especialidade em bombardear populações civis em vários continentes. Basta observar a lista destas incursões para notar a hipocrisia de Washington. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos têm levado a cabo ataques contra a Coreia e a China (1950-53), Guatemala (1954, 1960), Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), Congo (1964), Laos (1964-1973), Vietnã (1961-1973), Camboja (1969-1970), Granada (1983), Líbano (1983, 1984), Líbia (1986, 2011, 2015), El Salvador (1980), Nicarágua (1980), Irã (1987), Panamá (1989), Iraque (1991, 2003, 2015), Kuwait (1991), Somália (1993, 2007-2008, 2011), Bósnia (1994, 1995), Sudão (1998), Afeganistão (1998, 2001-2015), Iugoslávia (1999), Iêmen (2002, 2009, 2011), Paquistão (2007-2015) e Síria (2014-2015).
Os denunciantes da China esquecem esta sequência atroz para ressaltar os efeitos malignos da “diplomacia da dívida” de Pequim. Eles consideram que seu rival utilizará este instrumento para subjugar as economias insolventes da região.
De fato, existe esse perigo, mas sua enunciação carece de credibilidade na boca dos especialistas em cobrar responsabilidades com invasões de marines e ajustes do FMI. O que é visto como uma ameaça da China é a prática habitual dos Estados Unidos nos últimos dois séculos.
Os críticos imperialistas da presença asiática também não omitem a contraposição reiterada entre a democracia promovida por Washington e o autoritarismo encorajado por Pequim. Mas a difusão deste mito colide com o recorde de ditaduras concebidas pelo Departamento de Estado na região.
Outros porta-vozes da Casa Branca eludem os elogios aos Estados Unidos em suas denúncias sobre a presença chinesa. A duplicidade deste contraponto é tão falsa que preferem evitá-la. Limitam-se a advertir sobre o avanço de seu rival, com simples apelos para conter essa expansão. Alguns acreditam que a primeira potência já perdeu seu domínio da África e deve priorizar a conservação da América Latina (Donoso, 2022).
Estas confissões ilustram o grau de retrocesso imperial que uma parte da elite estadunidense constata. Observam de forma mais realista a perda estratégica de posições em seu próprio continente, sem encontrar receitas para inverter esta retração.
A denúncia errônea da China como uma potência semelhante aos Estados Unidos baseia-se, às vezes, na banalização do conceito de imperialismo. A fim de suscitar o interesse do leitor, qualquer avanço comercial ou financeiro de Pequim é tipificado nestes termos. A noção é apresentada como sinônimo de vileza, sem qualquer preocupação com seus pressupostos conceituais.
Esta visão tende a confundir a dependência econômica, que é gerada pelos acordos desfavoráveis subscritos pela América Latina com o gigante asiático, com a opressão política imperial. Ambos processos mantêm vínculos potenciais, mas podem se desenvolver por rotas separadas, e é importante registrar os momentos em que os dois percursos se cruzam ou divergem.
O imperialismo supõe o uso explícito ou implícito da força para garantir a supremacia das empresas de uma potência opressora no território de uma economia dominada. Há inúmeras provas desse tipo de agressão por parte dos Estados Unidos, mas até agora não há indício desses atropelos por parte da China. Esta diferença é confirmada em todos os países da América Latina.
A ação militar estrangeira é um típico ato imperial do qual se afasta a China. Enquanto se mantiver distante dele, continuará operando abaixo do limiar imperialista. Não há dúvida de que sua expansão no mundo (e sua consequente transformação numa potência dominante) abrirá uma séria tentação de se tornar uma força opressora. Mas esta eventualidade constitui até agora uma possibilidade, um presságio ou um cálculo e não uma realidade verificável. Sempre que não se verifique nos fatos, é inadequado colocar a China nas fileiras dos impérios.
Tal passagem ao status imperial explícito dependerá da dimensão alcançada pelo capitalismo chinês. Nos últimos dois séculos, foram muito frequentes as incursões militares dos grandes Estados no exterior para auxiliar seus parceiros capitalistas. Mas esta dinâmica atual na China exigiria uma grande consolidação da classe dominante, com sua consequente capacidade de garantir socorros militares aos governantes em Pequim.
Essa sequência era muito comum na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. Mas a China ainda não enfrenta esse tipo de cenário, pois o regime político dominante advém de uma experiência socialista, mantém características híbridas e ainda não completou sua transição para o capitalismo. Por esta razão, as ações típicas do intervencionismo imperialista não são observadas.
A consolidação definitiva do capitalismo no interior da China e seu correlato imperialista no exterior estão limitados por dois fatores. Por um lado, a onipresença do setor público (central, provincial e municipal) em 40% do produto bruto (Mendoza, 2021); e, por outro lado, a liderança institucional do Partido Comunista. Já existe uma classe dominante muito poderosa e estabelecida, mas que não controla os instrumentos do Estado e tem possibilidades limitadas de exigir intervenções em benefício próprio.
A impressionante expansão do PIB – que aumentou 86 vezes entre 1978 e 2020 e tirou 800 milhões de pessoas da pobreza – tem um efeito contraditório sobre essa evolução. Por um lado, deu origem a um circuito capitalista que garante os interesses de uma minoria privilegiada. Por outro, consolidou uma incidência inédita da intervenção estatal, o que reforça o contrapeso das maiorias populares à perpetuação do lucro e da exploração. Esta originalidade do desenvolvimento da China torna necessário tratar com muita cautela as previsões sobre o futuro de uma economia híbrida, sujeita à gestão reguladora do Estado.
A equiparação da China com os Estados Unidos é também um erro frequente de alguns analistas de esquerda. Costumam atribuir às duas potências um status semelhante ao dos estados imperiais, que disputam nos mesmos termos o botim da periferia.
Uma variante desta visão considera que a China foi socialista no passado, depois adotou um perfil capitalista e atualmente amadurece sua conversão imperialista. Considera que este novo status é verificado em sua passagem de uma economia exportadora de mercadorias a outra que investe capital. Acredita que esta mudança impulsionou o fortalecimento do “poder brando”, que complementa o desenvolvimento de sua força militar. Os Tratados de Livre-comércio e a Rota da Seda são vistos como instrumentos opressores, semelhantes aos que foram forjados pelos Estados Unidos (Laufer, 2019).
Esta visão confunde as relações de dominação que Washington mantém em todo seu “quintal” com a rede de dependência que a China criou na região. No primeiro caso, os ganhos econômicos baseiam-se no controle geopolítico-militar, que está ausente na segunda estrutura.
Esta diferença é omitida ou relativizada, afirmando-se que a China está desenvolvendo em tempo recorde o que os Estados Unidos erigiram após um longo século. Mas se Pequim ainda não constituiu este emaranhado de poder, também não deve ser classificado como uma força imperial existente. Se essa estrutura está sendo erguida, é também possível que nunca seja concluída. O imperialismo não é um conceito estabelecido no universo das hipóteses.
A igualação da rivalidade sino-estadunidense restringe as evidências dessa luta à esfera econômica. Por esta razão, observa essa disputa como uma competição intercapitalista entre duas potências de mesmo signo. Essa visão ressalta analogias formais, sem notar o comportamento diferenciado dos dois concorrentes.
Os investimentos da China em mineração, agricultura e combustíveis têm muitos pontos de contato com os corredores extrativistas da IIRSA [Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], que os Estados Unidos promovem há décadas. Porém, no primeiro caso, a gestão desta infraestrutura depende das empresas e dos estados nacionais que assinaram estes contratos. Não opera ali o aparelho militar, judicial, político e midiático que os Estados Unidos mantêm em todo o continente para assegurar seus negócios.
Não há dúvida de que, face a ambas as situações, devem ser promovidas políticas de proteção dos bens comuns a fim de fortalecer os processos de integração regional que permitam a utilização destes recursos de forma produtiva. Sobre este corolário, não existem divergências significativas na esquerda latino-americana. A discrepância reside na forma como os processos políticos soberanos devem ser posicionados em relação ao dominador estadunidense e ao financiador, cliente ou investidor chinês. A igualdade de tratamento de ambos os casos obstrui a batalha efetiva pela unidade regional.
O mesmo problema é gerado pelo desconhecimento dos conflitos que opõem as duas potências, assumindo que as grandes empresas dos dois países participam do mesmo capital transnacional indistinto. Esta perspectiva revela uma relação simbiótica de benefício mútuo entre os dois gigantes.
Mas o chamado capital transnacional se refere apenas a misturas de fundos provenientes de diferentes países. Esta variedade limitada de empresas não substitui as empresas protagonistas do capitalismo atual, nem reduz a preeminência de Estados nacionais altamente diferenciados na gestão dos instrumentos da economia. Nem mesmo no auge da globalização houve uma fusão geral destes capitais, e nunca surgiram classes dominantes ou estados transnacionalizados (Katz, 2011: 205-219).
Os defensores desta abordagem perderam a influência que tiveram na última década, e os problemas de sua visão vieram à tona na tese errônea de uma fusão de empresas sino-americanas. A expectativa de tal convergência foi completamente demolida pelo atual cenário de rivalidade. Esta concorrência reflete-se também no novo cenário de duas posturas sobre os acordos de livre-comércio.
Nos anos 1990, a bandeira do comércio sem tarifas aduaneiras foi principalmente levantada pelos Estados Unidos. Este emblema estendeu-se posteriormente de forma mais limitada à Europa e ao Japão, mas sofreu uma mutação completa quando a China o adotou como sua grande bandeira. A cúpula do livre-comércio de Davos tornou-se uma arena de elogios generalizados a Pequim, e Washington perdeu sua bússola. Ficou preso numa indefinição que persiste até hoje (Santos; Cernadas, 2022).
As correntes protecionistas e globalistas estão travando uma luta dentro dos Estados Unidos que paralisa a Casa Branca. Este choque levou à impotência de Barack Obama, à relutância de Donald Trump e às vacilações de Joe Biden. Por conta desta sequência, os acordos de livre-comércio tornaram-se um batata quente que nenhum presidente ianque consegue encaminhar. Enquanto a China tem um propósito muito claro na promoção destes acordos, seu rival oscila no compasso de grandes conflitos internos.
Apontar as diferenças substanciais que separam a China dos Estados Unidos não significa ignorar o afastamento da perspectiva socialista, o que implica o restabelecimento de uma classe capitalista no gigante asiático. A crítica a esta regressão é indispensável para fortalecer a batalha que se trava naquele país contra a restauração definitiva do capitalismo.
É imprescindível esclarecer tal confrontação, antes que este processo leve a um fato consumado irreversível. O principal erro de grande parte da esquerda face à URSS foi o silêncio diante de uma ameaça semelhante. Esta passividade destruiu todas as tentativas de renovação do socialismo.
A apresentação da China – por diferentes autores – como epicentro do atual projeto socialista reproduz este erro. Esta visão não se limita a destacar os progressos econômicos e sociais indiscutíveis alcançados pela nova potência. Considera que o rumo seguido pelo gigante asiático é a trilha ser percorrida pelo socialismo do novo século.
Tais avaliações lembram os escritos do comunismo oficial, que no século passado enalteciam os avanços da URSS sem qualquer observação crítica. O colapso vertiginoso desse sistema deixou os veneradores desse regime sem palavras.
A China está num caminho muito diferente da União Soviética. Seus líderes tomaram consciência do que aconteceu com seu vizinho e em cada decisão avaliam o perigo dessa repetição. Mas a melhor contribuição externa para tais alertas é apontar as disjuntivas que enfrenta a nova potência. Em vez de copiar o que aconteceu na URSS ou de avançar no sentido de uma mera atualização do socialismo, a China enfrenta uma disjuntiva constante entre essa renovação e o retorno ao capitalismo.
Esta disputa está presente em cada passo adotado pelo gigante asiático, desde que foi reconstituída uma classe burguesa que acumula capital, extrai mais-valia, controla empresas e procura conquistar o poder político. Os instrumentos deste sistema permanecem nas mãos do Partido Comunista e de uma elite que mantém o equilíbrio entre o crescimento e as melhorias sociais. Estes contrapesos ficariam rompidos se os capitalistas estendessem seu protagonismo econômico ao controle do sistema político.
A renovação do socialismo é apenas uma possibilidade entre várias alternativas em jogo, que dependerá em grande medida da centralidade obtida pelas correntes de esquerda. Esta perspectiva exige políticas de redistribuição de renda, redução das desigualdades e limitações drásticas ao enriquecimento dos novos milionários do Oriente (Katz, 2020).
Para recuperar um projeto socialista à escala global, é necessário analisar estas tensões, tomando partido das vertentes revolucionárias e evitando a simples repetição dos discursos protocolares do oficialismo.
A transparência sobre as tensões que a China enfrenta – em sua encruzilhada entre as direções socialista e capitalista – é também essencial para definir estratégias nas regiões que estreitam os laços comerciais com a China. Se se supõe simplesmente que Pequim encarna a dinâmica contemporânea do socialismo, então só caberia reforçar os termos atuais da relação com este farol do pós-capitalismo.
Esta política seria semelhante à estratégia seguida por grande parte da esquerda em relação à URSS, que era vista como o grande pilar do bloco socialista. Ao contrário desse antecedente, a China evita pronunciamentos e afinidades políticas com os diferentes regimes do planeta. Exalta apenas o comércio, o investimento e os negócios com governos neoliberais, heterodoxos, progressistas ou reacionários. Isto não só contradiz a simples apresentação de Pequim como principal ponto de referência do socialismo, como também leva à consideração de estratégias que não convergem com a política externa da China.
Os dilemas colocados pelos Tratados de Livre-comércio e pela Rota da Seda exemplificam essas disjuntivas. Ambos os projetos incluem o duplo conteúdo da expansão produtiva mundial do gigante asiático e o enriquecimento dos capitalistas chineses. O equilíbrio entre os dois processos é determinado pela direção estatal dos acordos e pela rede de transportes.
É muito difícil sustentar que, em seu formato atual, estas iniciativas fortaleçam um horizonte socialista para o mundo. As correntes da esquerda chinesa opõem-se a esta crença em seu país e os questionamentos são mais frontais na maior parte da periferia. A América Latina oferece um exemplo desta inconveniência.
Todos os tratados promovidos pela China aumentam a subordinação econômica e a dependência. O gigante asiático consolidou seu status de economia credora, que lucra com a troca desigual, captura excedentes e se apropria da renda.
A China não atua como um dominador imperial, mas também não favorece a América Latina. Os acordos atuais agravam a primarização e a drenagem de mais-valia. A nova potência não é apenas um parceiro, nem faz parte do Sul Global. Sua expansão externa é guiada por princípios de maximização do lucro e não por normas de cooperação.
Pequim amolda os acordos com cada país da região de acordo com sua própria conveniência. No Peru e na Venezuela, articulou parcerias com empresas estatais. Na Argentina e no Brasil, optou pela compra de empresas estabelecidas. No Peru, tornou-se um ator importante nos setores de energia e mineração. Controla 25% do cobre, 100% do minério de ferro e 30% do petróleo. Essa flexibilidade dos tratados com cada país é determinada na China por rigorosos cálculos de lucro.
A América Latina precisa de uma estratégia própria para retomar seu desenvolvimento e criar as bases para uma direção socialista. Estes pilares podem estar em sintonia, mas não convergem espontaneamente com a política externa da China. O gigante asiático é um parceiro potencial neste desenvolvimento, mas não um aliado natural, e é essencial registrar essas diferenças, observando o que aconteceu em outras partes do mundo.
A China avança em diferentes partes do mundo reforçando a centralidade de sua própria economia às custas do rival estadunidense. Este duplo movimento poderia fortalecer o desenvolvimento da periferia se contemplasse acordos em linha com este desenvolvimento e não meros lucros para os capitalistas locais associados ao gigante asiático. Apenas o primeiro tipo de enlace sustentaria um projeto emancipatório comum.
A estratégia da China em seu entorno regional não está orientada por estes princípios. Ela gera avanços e êxitos que reforçam sua influência, mas sem laços visíveis com futuros socialistas.
O recente acordo da RCEP [Parceria Econômica Regional Abrangente] é um exemplo deste divórcio. A China assinou um acordo de livre-comércio com quase todos os países do Indo-Pacífico. Este tratado inclui não apenas a Indonésia, Brunei, Camboja, Vietnã, Laos, Malásia, Myanmar, Filipinas, Singapura e Tailândia, mas também vários aliados dos Estados Unidos (Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia).
A China assegurou este acordo após uma ofensiva fulminante. Primeiro desarticulou o projeto fracassado de Obama para a região (TPP [Parceria Transpacífica]), que o Japão tentou alterar com um tratado de substituição (CPTPP [Acordo Global e Progressivo para a Parceria Transpacífica]). Depois conteve o giro protecionista de Trump (Pérez Llana, 2022) e finalmente reduziu o espaço para a recente iniciativa comercial de Joe Biden (IPEF [Marco Econômico do Indo-Pacífico para a Prosperidade]) (Aróstica, 2022).
Pequim derrubou, um após outro, todos os obstáculos que Washington tentou erguer para conter sua primazia econômica nesta área estratégica. Aproveitou as enormes desavenças que geram os Tratados de Livre-comércio no establishment norte-americano e a impotência manifesta dos parceiros da Casa Branca. Neutralizou especialmente o Japão, que atua em relação à China da mesma forma que a Alemanha em relação à Rússia. Tóquio procura agir autonomamente em relação ao mandante estadunidense, mas alinha-se com o Ocidente ao menor puxão de orelha (Ledger, 2022).
O mesmo ocorre com a Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul, que foram convocados pelo Pentágono para assinar um tratado militar (QUAD [Diálogo de Segurança Quadrilateral]), que contraria sua aproximação de Pequim. O conflito de Taiwan e as exigências de livre navegação no Mar da China foram reavivadas pela Casa Branca justamente para minar as conquistas obtidas pela China com a RCEP. O acordo improvisado de Biden (IPEF) é apenas um complemento a esta pressão militar.
No momento, a Índia é o único país importante que mantém uma posição de real autonomia em relação aos dois grandes concorrentes. Sua velha rivalidade com a China levou-a a rejeitar o RCEP, os Tratados de Livre-comércio e a Rota da Seda para apostar num projeto próprio de desenvolvimento econômico. Juntou-se ao QUAD dos Estados Unidos para contrabalançar a nova afinidade do Paquistão com a China. Seus últimos governos optaram por um giro pró-ocidental, que também preserva uma direção geopolítica própria.
A Indonésia e a Malásia, que lideravam o bloco ASEAN [Associação de Nações do Sudeste Asiático], também evoluíram para uma postura de maior autonomia, recusando-se a aderir ao QUAD. Mas não conseguiram conter a pressão comercial chinesa, o que levou à sua integração à RCEP (Serbin, 2021). Pequim impôs a transformação dos acordos bilaterais em multilaterais, a desarticulação da união aduaneira e a dissolução de todos os passos para a criação de uma moeda da ASEAN.
Este resultado poderia ser visto com olhos sul-americanos, como uma antecipação do que acontecerá com o MERCOSUL se os Tratados de Livre-comércio com a China continuarem a avançar em seu formato atual. Uma variante de RCEP na região poderia sepultar os projetos de integração que estão sendo delineados na América Latina.
O que aconteceu no Indo-Pacífico é instrutivo para nossa região. Ali, verifica-se mais claramente o avanço econômico da China e a resposta geopolítico-militar dos Estados Unidos. As mesmas tendências despontam na América Latina, com a diferença que Washington não tolera em seu “quintal” os movimentos que Pequim faz com maior audácia em sua zona fronteiriça.
Mas o mais importante não é avaliar quem ganha o jogo em cada região, mas que políticas são favoráveis aos povos da periferia. Estas orientações exigem estratégias de resistência a Washington e de negociação com Pequim.
A China compete com empresas desvinculadas da pressão militar, em oposição a um rival que dá prioridade ao emprego militar para resguardar suas empresas em dificuldades. Esta diferença não transforma o dragão asiático na potência que colabora com a América Latina, que exalta a fraseologia diplomática.
Os elogios à “cooperação Sul-Sul”, através de acordos que permitiriam “a todos ganhar” através da “aprendizagem mútua” (Quian; Vaca Narvaja, 2021), são compreensíveis nos códigos dos ministérios das relações exteriores. Mas estas figuras não esclarecem a realidade do cenário sino-latino-americano.
Muitos analistas repetem estas avaliações por admiração pelo desenvolvimento alcançado pela China ou por um desejo de contágio através da mera associação com o novo gigante. Com esta perspectiva, alimentam todas as crenças numa cooperação mutuamente favorável, o que não se verifica nas relações atuais.
O reconhecimento desta ausência é o ponto de partida para a promoção de outros tipos de acordos que fortaleçam o desenvolvimento latino-americano, juntamente com a meta popular de um futuro de crescente igualdade social. Este objetivo exige também uma batalha teórica contra o neoliberalismo.
Fuenzalida Santos, Eduardo (2022) El plan económico de EE.UU. para Latinoamérica: ¿un “globo pinchado”?
Lo Brutto, Giuseppe; Crivelli Minutti, Eduardo (2019). Las relaciones entre China y América Latina en la segunda década del siglo XXI, CUADERNOS DEL CEL, Vol. VI.
Regueiro Bello, Lourdes (2021). María Centroamérica en la disputa geopolítica entre China y Estados Unidos.
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A presença da China na América Latina. Artigo de Claudio Katz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU