“O que resta hoje é um rentismo para os pobres como compensação do megarentismo para os ricos”. Entrevista especial com Roberto Dutra

O cientista avalia que o país precisa de um projeto de transformação e qualificação capaz de gerar resultados na economia, na educação, no direito, na segurança pública, na saúde e na própria política

Foto: Pixabay

Por: Elstor Hanzen | 06 Fevereiro 2025

O Brasil democrático da constituição de 1988 conseguiu ampliar a população incluída na economia, educação, saúde, direito e na própria política. Mas, hoje se mostra incapaz de transformar e qualificar a produção organizada das modalidades de inclusão em todos esses sistemas sociais. Para Roberto Dutra, há uma estagnação desses serviços e sobre a qual o governo sequer tem noção da profundidade do problema. “Essa mediocridade multidimensional democratizada, acessível, é não apenas o traço principal do legado da constituição de 1988, é também o cerne da política lulista. Mais ainda neste terceiro mandato”, destaca.

O doutor em sociologia e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF - reconhece melhorias do governo na educação, desenvolvimento social, economia, embora as considere “voos de galinha incapazes de fazer decolar processos robustos de desenvolvimento econômico e social”. “Terceira gestão é claramente a pior das três. Um governo medíocre e um presidente fraco, tentando reeditar velhas fórmulas em um contexto novo, marcado pela desilusão com a falsa promessa de cidadania, direitos e inclusão no deserto econômico”.

Ressalta que o governo parece uma mera interrupção no processo de fortalecimento da direita, provocada pela incompetência e fraqueza de Bolsonaro. Enquanto isso, alerta, “a direita radical, seja ela mais ou menos extrema em termos de guerra cultural, tem ampliado seu trabalho de base”.

Nesta entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail, afirma também que há um distanciamento do governo e o PT em relação à nova classe trabalhadora e à pequena burguesia. Segundo Dutra, as notícias falsas que fizeram o governo recuar não fizeram sucesso à toa. “Tocaram um terreno de medos reais que afetam mais de 47 milhões de pessoas que trabalham na informalidade, sem condições econômicas de arcar com suas obrigações financeiras e tributárias. A ideia de regular o Pix obviamente é correta, mas deveria ter sido elaborada com todo cuidado e sensibilidade para não despertar este medo”.

Para ele, isso mostra falta de sintonia fina com a base social o que, por outro lado, sobra com os medos e interesses do “mercado dos rentistas”. “O que resta hoje é um rentismo para os pobres como compensação do megarentismo para os ricos”, avalia.

Roberto Dutra Torres Junior | Foto: Arquivo Pessoal

Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - Ipea. É autor de, entre outros, Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion (Konstanz: UVK Verlag, 2013).

Confira a entrevista.

IHU - No início do governo Lula III, havia entendimento que os desafios mais urgentes eram econômicos e sociais. Essa expectativa foi cumprida nos primeiros dois anos?

Roberto Dutra – Nesses dois anos, o governo não foi capaz de indicar um caminho de soluções para nossos mais urgentes e importantes problemas econômicos e sociais. Como pontuou o jornalista Vinicius Torres Freire da Folha de São Paulo: nesses 40 anos de redemocratização, o Brasil moderno vive seu período de maior deserto econômico.

O legado econômico da constituição de 1988 é um claro fracasso. Primarismo produtivo, desindustrialização, baixa produtividade do trabalho, taxas irrisórias de investimento, renda per capta crescendo de modo lento e bem abaixo da média de países com muitos menos recursos que nós, como Grécia e Turquia. Isso não é destino inevitável. É falta de projeto nacional de desenvolvimento. O suposto legado social da nova república é coisa pequena que rapidamente se corrói na ausência de sua contraparte econômica e produtiva.

O que resta hoje é um rentismo para os pobres como compensação do megarentismo para os ricos. A pequena burguesia e a nova classe trabalhadora estão completamente abandonadas. E a mediocridade vai se generalizando por todos os sistemas da sociedade. Temos um sistema de ensino estagnado em seu processo de qualificação e sem nenhum acoplamento duradouro e estimulante com processos de desenvolvimento econômico. Os supostos avanços na inclusão social não passam de ampliação do acesso a sistemas sociais mediocrizados.

IHU – Há uma estagnação nos serviços públicos?

Roberto Dutra - O Brasil democrático da constituição de 1988 conseguiu ampliar a população incluída nos principais sistemas sociais como economia, educação, saúde, direito e a própria política. Mas se mostra incapaz de transformar e qualificar a produção organizada das modalidades de inclusão em todos estes sistemas. A estagnação da oferta não é apenas econômica. É também política, educacional, sanitária, jurídica, militar. Esta mediocridade multidimensional democratizada, acessível, é não apenas o traço principal do legado da constituição de 1988, é também o cerne da política lulista. Mais ainda neste terceiro mandato.

O governo não tem sequer noção do problema. Lula parece cada vez mais perdido e sem condições de liderar qualquer saída deste deserto de 40 anos. Embora nestes dois anos, possamos identificar avanços e melhorias pontuais, como no caso da reforma tributária, são meros voos de galinha incapazes de fazer decolar processos robustos de desenvolvimento econômico e social.

IHU - Sobre a meta de reconstrução do país. Ela foi satisfatória?

Roberto Dutra - A reconstrução do país só é possível com a superação desta mediocridade multidimensional democratizada. Salvar e preservar as formas instituições da democracia liberal e constitucional é sim importante e não pode ser desprezada. Mas sua sustentação no médio e no longo prazo depende de resultados econômicos e sociais. Democracias que não entregam resultados, sobretudo, para a maioria dos que trabalham e produzem, tendem a perder legitimidade. Não adianta abraçar prédios, criar muro de contenção para a extrema-direita e dar testemunho de boas intenções.

A reconstrução do país requer um projeto de transformação e qualificação na forma como organizamos e geramos resultados na economia, na educação, no direito, na segurança pública, na saúde e na própria política. Assim entendida, a reconstrução do país sequer está na agenda do governo.

IHU - Que espaço sociopolítico a direita e a extrema direita têm conquistado no país durante a gestão Lula III?

Roberto Dutra - A direita radical, seja ela mais ou menos extrema em termos de guerra cultural, tem ampliado seu trabalho de base. Parece ganhar cada vez mais a simpatia da pequena burguesa e da nova classe trabalhadora precarizada. O episódio da regulação do Pix é exemplar: o governo e o PT não conseguem compreender os medos, os sonhos e as esperanças do trabalhador que sonha com o negócio próprio e nem com os pequenos burgueses que já conduzem seus empreendimentos. A esquerda é completamente ignorante e arrogante com relação a estes segmentos sociais: acham que são todos pobres sem conhecimento de seus próprios interesses, corrompidos pela subjetividade neoliberal.

Indicador maior desta arrogância ignorante é o termo “pobre de direita”, uma ideia simplista e determinista usada por Jessé Souza para adornar e mimar a cegueira autoindulgente do PT e obviamente vender textos mofados e requentados. O PT não acredita no trabalho e na autonomia econômica do pequeno e do médio empresário. Só acredita no ricaço e no pobretão. É um partido dos trabalhadores que não acredita mais no trabalho. O governo Lula III parece uma mera interrupção no processo de fortalecimento da direita, provocada pela incompetência e fraqueza de Bolsonaro.

Seu fracasso tende a fortalecer o alinhamento das classes trabalhadoras e dos pequenos burgueses com a direita, ou seja, aprofundar o distanciamento da esquerda com a base social que ela deveria representar. A comparação com o interregno Biden entre Trump I e Trump II é até injusta, pois Biden fez um governo ousado economicamente e mostrou muito mais vigor que o Lula.

IHU - Como as oposições ao governo Lula têm se movimentado e de que maneira têm ampliado seu capital político?

Roberto Dutra - Como disse anteriormente, a oposição de direita vai muito bem em seu trabalho de base com a nova classe trabalhadora e os pequeno burgueses. O resultado disso é que hoje temos uma cultura popular de direita muito vistosa, uma demanda popular por políticas de direita que alimenta o surgimento de várias novas lideranças com Pablo Marçal, Nikolas Ferreira etc.

O problema da direita parece ser o controlar, unificar e programar sua oferta. Com a inviabilização jurídica do retorno de Bolsonaro, vemos crescer uma disputa acirrada pela liderança desta direita popular, e isto pode levar uma fragmentação capaz de fazer a direita desperdiçar oportunidades. Além disso, a direita continua sem programa para o país. Mesmo conseguindo abordar as preocupações e anseios de setores majoritários da população, e nisso superando a esquerda, a direita não oferece nenhuma política consequente para tirar o país da mediocridade multidimensional democratizada, mesmo que com desigualdade e dureza.

Ninguém conseguiu ainda, na direita, acumular o volume da capital político de Bolsonaro, que reedita a guerra cultural como orientação dominante e bloqueia o surgimento de uma direita programaticamente mais inteligente e consequente. Ele parece não ceder espaço a ninguém para além de seu círculo familiar mais próximo.

IHU - Quais são as áreas o governo que estão bem e em quais precisa melhorar ou mudar?

Roberto Dutra - O governo parece ter um bom diagnóstico da educação básica e o ministro Camilo Santana parece ter um caminho de soluções para os problemas. Esta é a única área que me parece boa. Existe uma política de reindustrialização muito bem desenhada no papel, mas completamente desconectada da realidade e da prática do governo, que realiza uma política macroeconômica totalmente hostil a investimentos produtivos e atraente ao rentismo improdutivo. O restante do governo é o reino completo da mediocridade.

IHU - Existia ou ainda existe um problema de comunicação no atual governo federal?

Roberto Dutra - A primeira-dama era quem de fato comandava a comunicação do governo. Uma irresponsabilidade e uma usurpação absurda consentida pelo presidente Lula. Um desastre totalmente previsível: uma primeira-dama impopular, esnobe e exibida manipulando e usurpando um presidente fraco e conivente durante quase dois anos de governo.

Isso é muito mais do que um problema de comunicação. É um problema de falta de condução do governo ou até mesmo de falta de autonomia pessoal, quase um caso para o conselho tutelar. Assusta-me ver supostas feministas defendendo a usurpação e manipulação de um idoso narcísico e fragilizado como método de ascensão e empoderamento feminino.

IHU - Como o senhor avalia o recente caso envolvendo o Pix?

Roberto Dutra - Esse caso é até aqui o melhor exemplo do distanciamento, entre o governo e o PT de um lado, e a nova classe trabalhadora e a pequena burguesia, de outro. O ministro Haddad e o governo em geral demonstraram uma completa falta de sintonia com os medos e preocupações dos milhões de trabalhadores e pequenos burgueses endividados ou devendo impostos.

As notícias falsas que fizeram o governo recuar não fizeram sucesso à toa. Tocaram um terreno de medos reais que afetam mais de 47 milhões de pessoas que trabalham na informalidade, sem condições econômicas de arcar com suas obrigações financeiras e tributárias. A ideia de regular o Pix obviamente é correta, mas deveria ter sido elaborada com todo cuidado e sensibilidade para não despertar este medo.

O caso mostra bem a contradição de governo cujo ministro da fazenda frequenta a cozinha dos ricaços da Faria Lima, e quem sintonia fina com os medos e interesses do “mercado dos rentistas”, mas que desconhece complemente a vida, os interesses e as condições do “mercado dos trabalhadores e pequeno burgueses”. É possível que o caso do Pix tenha criado um fosso irreversível em dois anos, entre o governo e essa base social.

IHU - Como se pode avaliar a gestão do governo Lula de agora em relação ao seus outros dois mandatos?

Roberto Dutra - Esta terceira gestão é claramente a pior das três. Um governo medíocre e um presidente fraco tentando reeditar velhas fórmulas em um contexto novo, marcado pela desilusão com a falsa promessa de cidadania, direitos e inclusão no deserto econômico.

IHU - Quais as prioridades e desafios para a segunda parte do governo Lula III?

Roberto Dutra - Para mim a prioridade deveria ser a de preparar novas lideranças para suceder a Lula. O presidente deveria adotar um gesto atípico de grandeza: anunciar sua aposentaria em 2025 e convocar o PT, que tem ainda bons quadros, e outros partidos aliados, para discutir um novo programa para o país, a ser apresentado no pleito de 2026 por um candidato a ser decidido em primárias, com debate e mobilização nacional em torno do processo. Ou seja, realizar um processo oposto ao que foi feito em 2010, quando Lula anulou e enganou lideranças como Marina Silva e Ciro Gomes para indicar sozinho e sem mobilização política e ideológica a pior das pretendentes ao cargo.

Leia mais