24 Outubro 2024
Ministro goza de grande autonomia no governo. Ataca o piso da Saúde e Educação. Alçou seu aliado à Presidência do BC. E até assume que a Faria Lima tem razão em exigir cortes. Mas a última palavra sempre é de Lula; e o futuro lhe cobrará, se nada for mudado.
O artigo é publicado por Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 22-10-2024.
Desde a divulgação dos resultados das eleições de outubro de 2022 tornou-se sistemático o questionamento a respeito de quais seriam as verdadeiras intenções de Lula no que se refere à política econômica de seu terceiro mandato. Por vários momentos havia dúvidas quanto ao alinhamento do presidente com relação à agenda tipicamente ajustada com os interesses do financismo, tal como têm sido propostas e encaminhadas as medidas de seu ministro da Fazenda (MF). Fernando Haddad convenceu o chefe quanto à necessidade de não revogar o teto de gastos introduzido na Constituição por Temer em 2016, tal como debatido durante a campanha eleitoral. A solução final foi a inclusão de um dispositivo na PEC da Transição, ainda no final de 2022, por meio do qual o novo governo se comprometia em aprovar uma Lei Complementar tratando daquilo que passou a ser conhecido por Novo Arcabouço Fiscal (NAF).
Haddad tentou convencer Lula, no começo de 2023, a não incluir no reajuste do salário mínimo os ganhos de crescimento do PIB, para além da reposição inflacionária. Mas, nesse caso, o responsável pela área econômica foi obrigado a obedecer ao presidente, que não aceitou o recuo proposto em relação a uma de suas promessas mais simbólicas. Em compensação, o chefe do governo não avançou em suas ponderações quanto às dificuldades de cumprir com a meta de zerar o déficit primário em 2024. Em um momento no ano passado, Lula chegou a dizer que seria muito complicado o governo perseguir tal objetivo de política fiscal. Esse foi um dos assuntos em um café da manhã com jornalistas realizado no mês de outubro do ano passado.
(…) Tudo que a gente puder fazer para cumprir a meta fiscal a gente vai cumprir. O que eu posso dizer é que ela não precisa ser zero, o país não precisa disso. Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias para esse país. Eu acho que muitas vezes o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que ele sabe que não vai ser cumprida. E se o Brasil tiver déficit de 0,5%, de 0,25%, o que é? Nada (…) [GN]
Lula tem muita experiência acumulada no comando de equipes de governo e sabe exatamente os riscos e as consequências envolvidas com esse tipo de programa de austeridade. No entanto, ele optou por deixar o barco seguir e, no final de tudo, a equipe da Fazenda foi vitoriosa nas disputas internas palacianas. Ou seja, além de manter o NAF intacto, Haddad conseguiu obter de Lula o aval para perseguir uma meta fiscal inexequível. Valem todas as hipóteses para tentar explicar as razões de tal postura passiva do chefe do governo. A mais recorrente refere-se à tal da “correlação de forças” no interior do Congresso Nacional. Mas se é verdade que a atual composição do nosso parlamento é das mais conservadoras das últimas décadas, o fato é que não seria uma meta contemplando um déficit, como ponderava Lula na conversa acima descrita, que iria complicar a vida do governo. Inclusive pelo fato de 2024 ser um ano com eleições municipais e os parlamentares de todas as tendências verem com bons olhos mais recursos para serem aplicados em suas bases.
Mais à frente, tendo em vista a obsessão do presidente do Banco Central (BC) com a manutenção da Selic em níveis estratosféricos, um grupo cada vez mais amplo de economistas progressistas lançou uma proposta para minorar o arrocho monetário. Tratava-se simplesmente de flexibilizar meta de inflação pelo voto do Conselho Monetário Nacional (CMN). Como o Comitê de Política Monetária (Copom) utiliza esse índice para estabelecer a taxa referencial de juros, tratava-se de tornar a meta para o crescimento dos preços mais realista com a realidade da inflação. Com isso, retirar-se-ia o principal argumento das forças do financismo em sua batalha permanente por uma Selic elevada. Caso Lula quisesse também se valer de tal estratégia, bastaria orientar seus dois ministros membros do CMN (Fazenda e Planejamento) a votarem nesta direção. Mas nada foi feito neste sentido.
A partir do início do presente ano ganhou espaço nos grandes meios de comunicação o debate a respeito da sucessão de Roberto Campos Neto na presidência do BC. Ao invés de pautar uma discussão efetiva a respeito das alternativas de política monetária e também quanto às próprias funções do órgão regulador e fiscalizador do sistema bancário e financeiro, Haddad se limitou a fazer campanha aberta para que o nome escolhido pelo chefe para o cargo fosse o seu secretário-executivo no MF. Lula chegou a considerar publicamente a possibilidade de outros nomes, com mais experiência.
(…) Na hora que eu tiver que escolher o presidente do Banco Central vai ser uma pessoa madura, calejada, responsável, alguém que tenha respeito pelo cargo que exerce e alguém que não se submeta a pressões de mercado, e que faça aquilo que for de interesse de 213 milhões de brasileiros (…).
E convenhamos que uma pessoa com apenas 42 anos de idade e que nunca havia assumido nenhuma função no governo federal antes deste mandato não se encaixa exatamente nas definições oferecidas por Lula na entrevista acima. Houve muita especulação a respeito de quem estaria dentre as opções, em especial no quesito maturidade. Um dos nomes sempre lembrados para o cargo era o do economista André Lara Resende. Porém, mais uma vez, Lula se curvou à sugestão de Haddad e indicou o nome de Gabriel Galípolo para ser sabatinado pelo Senado Federal. Trata-se de alguém com ampla aceitação junto aos representantes do sistema financeiro e que apenas tem endossado nos últimos tempos as propostas do pessoal da Faria Lima a respeito de suas futuras funções. Ou seja, com muita certeza teremos um presidente no BC com mandato de quatro anos que, ao contrário do que pretendia Lula, estará permanente submetido às pressões do mercado das finanças.
Ainda por influência de Haddad, Lula tem dado sinais efusivos e entusiasmados com pautas de agrado e interesse do financismo local e global. Esse foi o caso, por exemplo, do encontro fora da agenda oficial que o presidente brasileiro manteve em Nova Iorque com dirigentes das agências de risco. Na viagem tradicional para marcar o início dos trabalhos da Assembleia Geral da ONU em setembro, ele se reuniu com representantes das empresas Moody’s e da Standard & Poor’s. Não restam dúvidas de que tal gesto inusitado teve por intenção prestigiar a política de austeridade fiscal de seu governo e solicitar uma melhora nas notas atribuídas por tais empresas de rating aos papéis brasileiros no mercado financeiro.
Em outra jogada de grande envergadura, o ministro da Fazenda convenceu Lula a receber em audiência os presidentes dos principais bancos privados do país. O encontro foi marcado por uma distribuição farta de elogios da banca ao trabalho da equipe econômica, em especial a Fernando Haddad. Ao conceder, de forma excepcional, um tratamento tão diferenciado ao povo do parasitismo financeiro, o presidente da República decidiu por sinalizar para o conjunto da sociedade sua opção preferencial. Ao contrário dos tempos passados em que começou sua militância no movimento sindical, ao lado dos setores progressistas da Igreja Católica, agora a sua opção mais relevante não está sendo pelos pobres.
Ora, com esse balanço parcial de quase dois anos deste terceiro mandato, o ministro da Fazenda tem todas as razões para seguir apostando que está muito bem cotado e prestigiado junto ao chefe do Palácio do Planalto. Até o presente momento, com exceção de um ou outro puxão de orelhas, Lula tem assegurado a Haddad o essencial das demandas apresentadas pelo colaborador. Esta suposta tranquilidade tem permitido ao ocupante da pasta da Fazenda caminhar com autonomia ainda maior em temas polêmicos e controversos.
Em entrevista concedida com exclusividade a uma jornalista da Folha de São Paulo, tudo indica que Haddad tenha se sentido mais à vontade para avançar avaliações e pautas. As perguntas eram formuladas sem a preocupação de lhe criar nenhuma saia justa. Pelo contrário, as questões eram aquilo que se chama no jargão do voleibol de “levantadas de bola” generosas para ele apenas cortar. A tranquilidade era tanta que o ministro até se permitiu cometer alguns sincericídios. Esse foi o caso do arcabouço fiscal, quando ele reconheceu aquilo que seus críticos sempre alertamos, mas os defensores chapas brancas nunca aceitaram. Ele assumiu, por exemplo, que o NAF é, na verdade, um teto de gastos.
(…) Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa não pode crescer acima de 70% da receita. E dentro do limite de 2,5%. (…)
Indagado a respeito do suposto problema com o crescimento da dívida pública, Haddad assume o lado da banca sem nenhuma dificuldade nem ponderação:
(…) A Faria Lima está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade. (…) O que a Faria Lima está apontando — na minha opinião, com algum exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%. (…)
Ora, se agregarmos a tais afirmações todas as declarações oferecidas por integrantes do segundo escalão dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, fica mais do que claro que a estratégia é mesmo a de atacar os pisos constitucionais para saúde e educação, além da desvinculação dos benefícios previdenciários em relação ao salário mínimo. A jornalista perguntou se o ministro levava a Lula as suas preocupações. Haddad não vacilou um segundo sequer em exibir sua opção austericida e ainda colocou Lula a seu lado na edição das maldades. Na verdade, trata-se de um reconhecimento a posteriori da natureza conservadora e restritiva do NAF, além do fato por nos alertado desde o início de que havia uma bomba implícita no modelo que não tardaria muito tempo a explodir.
(…) Falo o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes – a soma do salário mínimo, saúde, educação, BPC – é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o presidente exatamente o que estou falando para você. (…)
Enfim, este é – em toda a sua plenitude – o risco Haddad. O fator de perigo que pode conduzir o Brasil a um ponto de não retorno às esperanças apontadas pelos constituintes na Carta aprovada em 1988. O ministro da Fazenda está convencido da necessidade e da correção da pauta ortodoxa e liberaloide do povo da Faria Lima. Na verdade, trata-se de retomar a linha de continuidade dos sucessivos programas de ajustes e reformas estruturais que foram iniciados logo depois da promulgação da nova Constituição. Os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso lançaram as bases da privatização, da liberalização e da institucionalização da austeridade fiscal. Os governos Lula e Dilma pouco fizeram para reverter tal quadro. Depois do “golpeachment” de Rousseff, Temer e Bolsonaro retomaram o tema da destruição do Estado e do desmonte das políticas públicas.
Infelizmente, até o presente momento Lula 3.0 tampouco fez alguma coisa para reverter o quadro do desastre anterior. Pelo contrário, a depender da pauta conduzida pelo ministro da Fazenda, estamos estendendo a ponte para a continuidade do elo perdido do neoliberalismo. A linha implementada atualmente é quase um copiar/colar do nada saudoso programa do PMDB, a Ponte para o Futuro. Um desastre que o Partido dos Trabalhadores e as forças progressistas sempre criticaram. Aí é que reside o risco Haddad. Finalizar o trabalho de retirar as bases estruturais que possam sustentar algum modelo de arremedo de Estado de Bem Estar social em nossas terras para o Brasil.
Na condição de presidente da República, a última palavra sempre estará com Lula. Se ele continuar bancando o risco Haddad, o futuro lhe cobrará, em termos políticos e eleitorais, as consequências nefastas de tal opção equivocada.
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O risco Haddad. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU