“Não existem imaculados. Só Maria o é. Todos podemos cometer pecados teológicos”, afirma o teólogo
"Um duplo Sínodo sobre a Sinodalidade pode ser um evento do qual a Igreja poderá sair diferente de como entrou", diz o teólogo Andrea Grillo ao responder às questões feitas pelos internautas que participaram da conferência intitulada Do "dispositivo Ratzinger" à "Opção Francisco". Rupturas e continuidades na Igreja no século XXI, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no ciclo de estudos “A Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal”.
Na avaliação dele, as duas sessões do processo sinodal, a serem realizadas em outubro deste ano e em outubro de 2024, tornarão possíveis o debate e sua sedimentação e, posteriormente, a deliberação. "Se somente uma parte das coisas que estão lá forem discutidas e se, em relação a elas, houver uma deliberação, o Sínodo terá sido muito útil para ativar percursos de novidade, que essencialmente significam as duas coisas que mencionei no fim da minha conferência: introduzir processos de exercício da autoridade e reconhecer novos sujeitos".
A seguir, publicamos, no formato de entrevista, as questões dos participantes do evento dirigidas ao professor Grillo.
As demais conferências do ciclo podem ser acessadas neste link.
Andrea Grillo (Foto: Susana Rocca | IHU)
Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia, da Itália.
IHU – Qual sua leitura do caso Martin Lintner?
Andrea Grillo – O caso Lintner representa um uso das normativas institucionais vigentes completamente distorcido. Ou seja, tecnicamente um teólogo que contesta o Catecismo sempre pode ser bloqueado. No caso do professor Lintner, não foi bloqueado o ensino, mas, como se tratava de uma promoção a reitor – e era preciso uma permissão do Vaticano –, o Vaticano disse que, como ele havia criticado o Catecismo, não seria concedida a permissão. É uma lei injusta, mas o Vaticano pode fazê-lo. Há inúmeros artigos do Catecismo da Igreja Católica que precisam ser revistos e há teólogos corajosos, como Lintner, que falam isso há anos. O problema aqui é um problema pessoal.
No início da conferência, mencionei duas imoralidades. Por um lado, podemos dizer que é imoral que um teólogo competente como Lintner não possa se tornar reitor. Essa é a primeira imoralidade. Mas a verdadeira imoralidade é que tenha um procedimento jurídico com base no qual o teólogo merece confiança somente se valida o Catecismo. Isso não é possível. O teólogo pode, por um lado, repetir o Catecismo, mas, se não estiver convencido, precisa dizer por que não está convencido. A Igreja precisa de teólogos que devem criticar os documentos não infalíveis como o Catecismo.
IHU – Dom Víctor Manuel Fernández disse que foi investigado na Inquisição. O que significa a nomeação dele ao Dicastério para a Doutrina da Fé?
Andrea Grillo – Uma vez o Papa Francisco disse que se os teólogos receberem uma carta da Doutrina da Fé, não precisam se apavorar; isso pode acontecer com todos. Todos os teólogos que escrevem podem receber uma carta na qual é exigido que expliquem algo. Não é escandaloso que a pessoa que hoje é prefeito, dez ou 20 anos atrás tenha recebido uma carta do Ofício que hoje dirige. É importante relembrar que quando um sacerdote – não lembro o nome dele – foi chamado por seu arcebispo, nos anos 1930, e foi suspenso de todos os seus cargos, isso correu porque, do contrário, nos próximos 30 anos, todos iriam pensar como ele. Não existem imaculados. Só Maria o é. Todos podemos cometer pecados teológicos.
O sentido da nomeação é mudar o estilo do Ofício, recolocar no centro a promoção da Teologia e não a defesa do erro. A Igreja sempre precisou se defender dos erros, mas a teimosia moderna de combater os erros nunca foi tão obsessiva quanto no começo do século XX até hoje com o Concílio Vaticano II. O convite de sair dessa lógica, entrando em uma lógica de promoção, é uma grande novidade. Mas isso precisa se concretizar. O que isso vai significar na organização dos escritórios em todas as formas de promover as diferentes ações, ainda vamos ver.
O problema, a questão de fundo, é que a Igreja se iludiu em achar que poderia controlar o pensamento nas formas de 500 anos atrás. Até 1965, tínhamos o livro do Index, o livro dos livros proibidos, que existia em todos os Estados modernos. Em 1855-1856, na civilização católica os escritores jesuítas queriam que fosse colocado no Index um livro protestante famosíssimo que tratava da igualdade entre brancos e negros. Isso aconteceu anos atrás, mas sair disso tudo é difícil. Não temos mais aquele Index, mas temos um Ofício censório que Francisco quer transformar em um incentivo à promoção de práticas diferentes. Dom Víctor Manual Fernández é o primeiro ao qual o Papa diz para mudar a forma de ser prefeito, de fazer o dicastério. Esse é um novo horizonte, com certeza.
IHU – O senhor vê a abertura real para as mulheres na Igreja em curto, médio ou longo prazo? A Igreja nos dará o lugar que nos é de direito? Afinal, na história da Igreja já tivemos diáconas.
Andrea Grillo – Este problema que eu mencionei, falando da Ordinatio Sacerdotalis, é o clássico problema que pode ser resolvido de forma burocrática. A solução que esse documento dá é o triunfo da burocracia ao dizer que não tem o poder de admitir as mulheres ao ministério sacerdotal. No texto uma afirmação séria é feita, mas não é explicado o porquê. Não se apresentam as razões. Em uma passagem histórica, de 1994, podemos entender que a Igreja diga não, mas, se 30 anos depois isso não é explicado, há um problema cultural. Eu gostaria de citar o teólogo que morreu recentemente, Ghislain Lafont. Ele disse que não conseguia entender como se pode dizer uma palavra definitiva sobre um assunto que muda continuamente. Sobre a Encarnação de Jesus Cristo, a Assunção de Maria Virgem, tudo bem. Mas sobre quem é o homem e quem é a mulher? Uma Igreja que pensa já ter entendido o que é o homem e o que é a mulher e diz certas coisas, que certas coisas só os homens ou só as mulheres podem fazer, mostra que aqui há uma falta de conhecimento. A cultura contemporânea descobriu que a mulher tem uma autoridade pública e, se for assim, não pode não ser titular de um ministério eclesial. Por outro lado, temos entidades, ministérios instituídos, que perderam a reserva masculina; as mulheres se tornaram leitoras acólitas oficialmente. Se o Sínodo quiser, as mulheres vão poder, sim, se tornar diáconas. Sobre outros assuntos, as coisas são mais difíceis, mas o acesso ao diaconato está aberto; trata-se de reconhecer a autoridade oficial da Igreja também às mulheres. Isso não é impossível. Não sei quão rápido se chegará lá; não sou um profeta. Mas acho que é razoável pensar que dentro de alguns anos o diaconato feminino será instituído no catolicismo.
Do "dispositivo Ratzinger" à "Opção Francisco": rupturas e continuidades na Igreja do século XXI:
IHU – O senhor tem esperanças no Sínodo sobre a Sinodalidade? Em que aspectos há verdadeiras mudanças?
Andrea Grillo – Com certeza tenho expectativas porque a organização, quanto às duas datas, outubro de 2023 e outubro de 2024, torna possíveis um primeiro debate e sua sedimentação e, depois, um segundo debate para chegar à deliberação. Vou dizer duas coisas sobre isso. Primeiro, o processo de escuta é muito importante. Francisco quis fortemente que houvesse uma escuta em nível universal, a qual compôs o Instrumento de Trabalho, que está cheio de coisas significativamente novas.
Se somente uma parte das coisas que estão lá forem discutidas e se, em relação a elas, houver uma deliberação, o Sínodo terá sido muito útil para ativar percursos de novidade, que essencialmente significam as duas coisas que mencionei no fim da minha conferência: introduzir processos de exercício da autoridade e reconhecer novos sujeitos. Trata-se de entender como os processos decisórios e outros precisam encontrar um equilíbrio. Para isso, precisamos de uma deliberação para mudar o Código. Se tivermos coragem de mudá-lo, teremos acionado um percurso significativo. Acredito que isso seja possível, mas vai depender de uma série de fatores e intermediações que vão acontecer nesse e no próximo ano.
Recentemente, li um livro de Alberto Melloni, historiador, que lembra como, até um dia antes da abertura do Concílio Vaticano II, dizia-se que iria acabar em 15 dias e não iriam fazer nada. Durou três anos e meio e mudou a Igreja, não como gostaríamos que tivesse mudado, mas foi uma transição que representou um verdadeiro evento, com todas as suas diferenças. Então um duplo Sínodo sobre a Sinodalidade pode ser um evento do qual a Igreja poderá sair diferente de como entrou.
IHU – Minha pergunta diz respeito à categoria de liberdade de pensamento na Teologia. Qual deveria ser o papel das instituições vaticanas e curiais frente à tal liberdade dos teólogos e teólogas? Quais os limites dessas liberdades?
Andrea Grillo – Por um lado, o dispositivo de bloqueio, do qual falei acima, introduziu a pretensão de uma ausência de liberdade. O teólogo está livre para elogiar, concordar, mas não para criticar. Isso não funciona. Para São Tomás de Aquino, o magistério – o que nós chamamos de magistério – é dúplice: o magistério da cátedra pastoral, onde estão os bispos, e o magistério da cátedra escolar, aquele que é catedrático. Ou seja, o magistério dos bispos e dos teólogos. Quem decide são os bispos; o teólogo não pode decidir no lugar deles, mas, para decidir, os bispos precisam se confrontar com os teólogos. Isso vale também para o Sínodo. O Sínodo é feito de escutas; toda a Igreja é escutada, mas a mediação teológica não pode ser ultrapassada. A escuta do que a Igreja fala passa por meio das distinções das teorias que os teólogos elaboram sobre os diferentes assuntos. Não podemos pensar que tudo possa ser reduzido ao conhecimento pastoral, pois os pastores são aqueles que têm a última palavra – às vezes a primeira –, mas no meio não funciona assim: tem o povo e a interpretação da teologia. Por isso o magistério pastoral precisa da liberdade dos teólogos.
Se os teólogos não forem livres para mostrar os limites de um posicionamento, o magistério vai se convencer de que não precisa mudá-lo. Ao passo que há uma mudança, uma dinâmica desse magistério, o dispositivo de bloqueio pensa que os teólogos, quando assumem a palavra, só podem fazê-lo no âmbito do magistério autêntico. Mas isso, como um grande jurista alemão afirmou anos atrás, teria impedido superar o conceito de liberdade de consciência. Se o que o Código pensa é o que é verdadeiro, hoje a liberdade de consciência seria um pecado. O Concílio, graças a teólogos corajosos, pôde escrever um documento no qual a liberdade de consciência é um elemento constitutivo até mesmo da Revelação; não um elemento tolerado, mas constitutivo, um fundamento.
IHU – O Papa Francisco vem acabar com o clericalismo e buscar uma nova visão pastoral que vem ao encontro de todos?
Andrea Grillo – O clericalismo que hoje assumiu uma conotação negativa, como se fosse um fechamento da Igreja em si, nasceu como uma forma segundo a qual a Igreja podia sair e ser poder no mundo. A crise do clericalismo clássico deveu-se ao mundo moderno tardio no qual a igualdade e a liberdade são valores primários. Ao passo que o clericalismo vive de diferenças de hierarquia, de distinções, o mundo de hoje, ao menos a maioria, tem oposição a esse tipo de mentalidade de que o “bispo rei” está no comando. O mundo se transformou e a Igreja ficou para trás. Precisamos transformar a abordagem clerical em uma nova abordagem, que precisa de novas palavras, de novas formas de pensar e de raciocinar.
A palavra de Deus não fala a linguagem clerical, mas a tradição – desde o terceiro, quarto século, até anteontem – está repleta de formas clericais, de interpretações do sacerdócio, do diaconato. Despojar o ministério ordenado das suas vestes clericais não é algo simples; é complexo. Francisco é muito corajoso em lançar, por assim dizer, esse desafio que começou com o Concílio Vaticano II. Infelizmente, com o dispositivo de bloqueio não será possível ir muito para frente.
Um historiador italiano analisou quantas vezes a palavra clericalismo estava presente nos discursos de Bento XVI e nos discursos de Francisco, e a proporção realmente não tem comparação. Nos de Bento XVI aparece seis vezes a palavra e nos dez anos de Francisco, 112 vezes. Isso é para dizer como a sensibilidade em relação ao problema existia na época do Concílio Vaticano II, quase se perdeu durante o pontificado de João Paulo II e Bento XVI, e depois voltou de forma preponderante com Francisco – também porque é um homem não europeu, da América Latina e não da Europa. Tudo isso ajuda a ver com mais escândalo as formas de abuso de poder que o clericalismo envolve.
IHU – O Papa Francisco nomeou cardeal um ancião capuchinho que foi seu confessor na Igreja de Pompeia. Essa nomeação significa uma novidade em outros bloqueios?
Andrea Grillo – A liberdade com a qual um papa nomeia os cardeais faz parte de uma tradição mais clássica. É algo que representa o arbítrio de uma pessoa com poder, que escolhe de forma arbitrária, com lógicas diferentes, mas é aquele tipo de exercício de poder que cria problemas. Nisso poderíamos também ver um dispositivo de bloqueio pensando uma maneira de pensar a tradição. Francisco interpreta de forma clássica a forma de falar e de pensar sobre a penitência. Ele é muito livre em eliminar a penitência de elementos judiciais, mas é muito clássico em pensá-la também como penitência medieval. Talvez, então, esse lado da questão mereça uma revisão mais ampla. Para fazer penitência hoje, a Igreja precisa libertar-se de algumas categorias clássicas e pesadas. Isso, no Sínodo, com certeza, poderá ser enfrentado e abordado.