22 Fevereiro 2021
"A novidade do ato do Papa Francisco consiste nisso: mulheres podem ser chamadas e receber oficialmente, através de um rito litúrgico próprio chamado “instituição”, o ministério de leitor(a) – relacionado com a Palavra – e o ministério de acólito(a) – relacionado com a Eucaristia", escreve Antônio José de Almeida, doutor e mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e graduado em Teologia pela mesma universidade, e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Palmas-PR, professor aposentado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e padre da Diocese de Apucarana, no Paraná.
A notícia de que o Papa Francisco modificara o Cânon 230, § 1º do Código de Direito Canônico, permitindo, com isso, que mulheres possam assumir os ministérios de leitor e de acólito, foi recebida com as mais variadas reações.
Os maximalistas viram no gesto um passo para um futuro sacerdócio feminino, ideia com que sonham os progressistas e que os conservadores abominam. Para os minimalistas, o Papa não fez senão legitimar uma prática comum na Igreja Católica, uma vez que mulheres há décadas proclamam as leituras nas missas e servem como acólitas. Os que militam por uma maior participação dos leigos e leigas na vida e missão da Igreja ressaltam que homens e mulheres cristãos são, pelo batismo, iguais em dignidade e, portanto, não se justifica que as mulheres não possam assumir todos os ministérios não-ordenados que os homens assumem. De fato, elas acolhem a Palavra, a vivem, a testemunham nas mais variadas situações: por que não podem proclamá-la como leitoras? Elas têm uma participação consciente e ativa na celebração da Eucaristia: por que não podem servir o altar como acólitas? Qual o impedimento? O impedimento – finalmente removido – tem uma história e é justamente esta história que foi interrompida. Daí o valor simbólico do ato do Papa Francisco, que se torna, neste sentido, histórico também.
A história documenta que a atribuição a mulheres de funções ministeriais é escassa. Os ministérios, mesmo os mais simples e banais, foram, mesmo na Igreja antiga – para a qual olhamos, não sem razão, com admiração e como um modelo – território de homens. Tertuliano, por exemplo, em sua obra O véu das virgens, escreve com a maior naturalidade, como se se tratasse de uma lei natural e divina: “Não é permitido à mulher falar na Igreja e ainda mais batizar, fazer o sacrifício, nem reivindicar para si nenhuma função própria do homem e ainda menos do ministério sacerdotal.” (De virginibus velandis, 9,1). Para ele – aliás, para todos os escritores cristãos antigos e medievais... e mais – a mulher não pode aspirar aos mesmos direitos dos leigos.
Na famosa lista dos ministérios feita pelo bispo de Roma Cornélio em 251, temos um retrato completo e em ordem decrescente dos ministérios em Roma: bispo, presbíteros, diáconos, subdiáconos (as futuras “ordens maiores”), acólitos, exorcistas, leitores e os ostiários (“ordens menores”). Todos reservados aos homens. Quando, mais tarde, se imporá uma trajetória pré-estabelecida de acesso às ordens maiores – o chamado cursus clericalis (carreira clerical) – estes “graus” serão os “degraus” da escalada. Esse quadro organizativo, nesta ordem, permanecerá tal – ao menos teoricamente – até o Concílio Vaticano II. Não se tem notícia de mulheres exercendo os ministérios de acólito, de exorcista, de leitor, de ostiário. Muito menos, obviamente, que uma mulher, num contexto androcêntrico (machista) e patriarcal assim, pudesse ser “instituída” leitora ou acólita. Ela podia fazer parte dos grupos oficialmente reconhecidos das “viúvas”, das “virgens” (monjas ou não) e, mais tarde – em vários lugares – das “diaconisas”.
Em tempos recentes, as coisas começaram a mudar. Pelo menos do Vaticano II para cá, em muitíssimos lugares, mulheres proclamam a primeira ou a segunda leitura na liturgia e atuam como acólitas. O Cardeal Ratzinger, na apresentação do Código de Direito Canônico, em 1983, reconheceu este fato, mas deixou claro que se tratava de algo ocasional e supletivo. Em que consiste, então, a novidade introduzida pelo Papa Francisco?
A novidade é que agora as mulheres podem ser “instituídas” leitoras e acólitas. O que é a “instituição” de um leitor ou leitora, de um acólito ou acólita? É um rito litúrgico específico pelo qual a pessoa é assumida oficialmente numa função eclesial. Ela não é “ordenada” leitor(a) ou acólito(a) – ordenados são o bispo, o presbítero e o diácono – mas “instituída”. A distinção entre uma situação e outra é documentada claramente numa obra do início do século III (em torno do ano 215), chamada Tradição Apostólica, atribuída a Hipólito Romano. A Tradição Apostólica, que recolhe, sobretudo, a prática litúrgica anterior a ela já consolidada, distingue, com toda a clareza teológica, entre “ordenação” e “instituição”. Diz que, para que alguém se torne bispo, presbítero ou diácono, são-lhe “impostas as mãos” (quirotonia), enquanto, para outros ministérios, a pessoa é colocada, estabelecida, constituída numa determinada posição: “uma viúva não é ordenada ao ser instituída (kathístasthai)” (TA, 10). A respeito do leitor a Tradição Apostólica diz: “O leitor é instituído (kathístasthai) quando o bispo lhe entrega o livro, porque ele não recebe a imposição das mãos (cheirotonia)” (TA, 11). Em outras palavras: a imposição das mãos (cheirotonia) acompanhada da oração (consacratória) introduz alguém no ministério pastoral, na ‘hierarquia’ da Igreja; a instituição (katástasis) não introduz a pessoa na hierarquia da Igreja, mas lhe atribui, também com um rito e uma oração específica, uma função importante na Igreja. A novidade do ato do Papa Francisco consiste nisso: mulheres podem ser chamadas e receber oficialmente, através de um rito litúrgico próprio chamado “instituição”, o ministério de leitor(a) – relacionado com a Palavra – e o ministério de acólito(a) – relacionado com a Eucaristia.
Desde quando Paulo VI, em 15 de agosto de 1972, através do motu proprio Ministeria quaedam, reformou as anteriormente chamadas ordens menores, restringindo-as a duas (justamente a de Leitor e Acólito) e definindo-as como “ministérios” que podiam ser conferidos estavelmente a leigos que permaneceriam tais, bispos e teólogos e vários sínodos universais sucessivos passaram a dizer (e a solicitar) que estes dois ministérios não deveriam ser limitados aos homens, mas ser conferidos às mulheres também. Por que Paulo VI não fez isso? O argumento da veneranda tradição (em letra minúscula) da Igreja e da passagem obrigatória pelos ministérios de leitor e acólito dos futuros diáconos, presbíteros e bispos – ministérios reservados aos homens – impediu Paulo VI de abrir os ministérios instituídos às mulheres. Uma exclusão teologicamente insustentável. Uma pena, porém, pois Ministeria quaedam, sob outros aspectos, é um documento corajoso e fecundo.
O que o segundo papa do Concílio – Paulo VI – não fez – e seus sucessores menos ainda, coube a um “filho” do Concílio fazer. Francisco se convenceu de que aquilo que a Igreja pede ao mundo (à sociedade civil), ela deve viver dentro de si própria, para que suas palavras sejam críveis. Vale a pena ouvir Gaudium et spes: “As mulheres trabalham já em quase todos os setores de atividade; mas convém que possam exercer plenamente a sua participação, segundo a própria índole. Será um dever para todos reconhecer e fomentar a necessária e específica participação das mulheres...” (GS 60) E, sobretudo, Apostolicam actuositatem: “Os leigos exercem o seu apostolado multiforme tanto na Igreja como no mundo... E como hoje a mulher tem cada vez mais parte ativa em toda a vida social, é da maior importância que ela tome uma participação mais ampla também nos vários campos do apostolado da Igreja.” (AA 9)
Pessoalmente, acredito que uma sugestão, partida da América Latina e defendida por vários Padres sinodais no Sínodo da Amazônia, teve seu peso sobre o Papa Francisco. Literalmente: “Recomendamos que, como gesto simbólico da valorização ministerial da mulher na Igreja, se reconheça que tanto homens como mulheres podem ser instituídos oficialmente como leitores e acólitos, revendo – como se tem insistido em tantos âmbitos, inclusive em sínodos universais – o cânon 230, § 1.”
Na verdade, “não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um, em Cristo Jesus” (Gl 3,28)!
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Mulheres leitoras e acólitas: Significado da mudança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU